Trabalho Honesto. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

No mercado, as filas estavam enormes! Não porque houvesse uma multidão comprando, mas porque os caixas eram poucos. Faltava gente porque o lugar era daqueles que fazia de tudo para funcionar com menos gente. Um dia, pensou Amélia, não vai ter gente nos caixas fazendo malabarismos com as mãos para registrar produtos e perguntando se vai pagar no débito ou crédito. Vai ser tudo máquina. Talvez, também não tenha fila. Vai ficar mais rápido para menos gente comprar.

Reparou na idade de quem trabalha no mercado. Jovens. Que futuro terão? Quando o futuro chega no trabalho, o futuro de quem trabalha torna-se angustiante. Mas ele sempre chega para economizar, para ficar mais rápido, mais fácil, para ganhar mais. É o futuro melhor, dizem. Comemorado como novidade, sempre boa só porque é novidade. Chegam com festa para comemorar o que será melhor para todo mundo. “Para todo mundo…”, deixou escapar baixinho dos lábios enquanto olhava para o rapaz de sorriso ingênuo que empacotava as compras.

Na sessão de frios, o gerente sorridente para os clientes e estressado com os funcionários explicava baixinho que deveriam pegar os produtos daquela gôndola refrigerada e levar para o depósito para ganharem novas etiquetas, com novos preços e prazos de validade. Quando retornarem, Augusto anunciará com voz de locutor de rádio AM que “deu a louca no gerente” e oferecerá por R$20 o que antes custava R$15 dizendo que custava R$25. Clientes comprarão envaidecidos da astúcia que tiveram em pagar menos do que outros.

A confusão causada pelo idoso que discutia com o sujeito forte e arrogante que ocupava a fila preferencial foi providencial para Vladson. Deu-lhe tempo suficiente para esconder um saco de feijão e outro de farinha nas roupas folgadas. Equilibrar tudo sem dar na pinta era difícil, mas ele tinha ginga suficiente para ser discreto no furto. Anda mais no de comida. A fome é uma professora incrível!

O sujeito grandão estava quase batendo no idoso sem que ninguém fizesse nada, nem mesmo o segurança cujo olhar estava fixo em Vladson. Ele também teve quem o ensinasse a reconhecer suspeitos, e a juventude negra, magra e malvestida era suspeita. Só quando o idoso foi empurrado é que o segurança foi acalmar o “doutor” jovem na fila dos idosos. Ficou chateado quando percebeu que Vladson aproveitou a oportunidade para escapar. “Na próxima, eu te pego!”, pensou.

Pelas câmeras, a quilômetros dali, Doutor Gervásio frequentemente ligava seu computador para acessar as câmeras de vigilância. Conseguia ver o mesmo que os seguranças assistiam em pequenas salas geladas e sem janelas nos seus mercados. Só que seu olhar era diferente. Seguranças vigiavam suspeitos. Doutor Gervásio vigiava trabalhadores. Fazia questão de lembrá-los disso todo mês, citando um ou outro flagrante de cochilo indevido ou de tempo demais gasto para ir ao banheiro.

Naquele dia, não viu a briga na fila e nem o furto de Vladson. Talvez, até as percebesse e tomasse como mau exemplo de distração do segurança, que permitiu o prejuízo de um saco de feijão e outro de farinha. Mas estava ocupado com outros afazeres. Precisava dar um jeito em um fiscal que descobriu seu esquema de sonegação. Nada que o Deputado Generoso não pudesse resolver em uma conversa com o Governador, mas aquilo tudo lhe tomaria tempo e, claro, dinheiro. “Como é difícil trabalhar honestamente neste país!”, lamentou. Passou o resto do dia pensando, entre uma distração e outra, que só uma mudança radical, um golpe, poderia mudar este país para que gente de bem como ele pudesse trabalhar em paz.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Maria Eduarda M. E Souza.

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