Para atraí-la para seu campo político, presidente atribuiu poderes atípicos à corporação. Agentes são pressionados a afrouxar fiscalização de armas pessoais. E cada vez mais atuam longe das rodovias, em operações brutais e sem inteligência
Por Allan de Abreu, da Piauí, no Outras Palavras
Silvinei Vasques, um homem baixo, corpulento e falante, tinha reações contraditórias naquele domingo. Às vezes, estava eufórico. Outras vezes, irritado. Sua empolgação vinha do resultado da operação da tropa de elite da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a corporação que dirige desde abril de 2021. Naquela manhã de outubro do ano passado, os policiais haviam acabado de matar todos os 26 homens que planejavam um assalto a uma agência do Banco do Brasil em Varginha, no Sul de Minas Gerais. Não sobrou um único criminoso vivo, e os policiais saíram sem um arranhão. Mas, de vez em quando, ele ficava irritado ao lembrar que a Polícia Federal, algumas semanas antes, tomara a decisão de não ter qualquer participação direta naquela operação – e, pior ainda, fez o que pôde para evitá-la justamente por suspeitar que acabaria numa chacina. Movido pelos dois sentimentos contraditórios, Vasques telefonou, ainda na parte da manhã, para o presidente Jair Bolsonaro.
Sua intenção era comemorar o resultado da operação, pois sabia que Bolsonaro ficaria feliz com a morte dos 26 homens, e também reclamar do comportamento da Polícia Federal. Além da recusa em participar da ação, a PF tentou neutralizar a ação dos policiais rodoviários ao comunicar à Polícia Militar de Varginha que um bando de criminosos estava prestes a assaltar um banco. Sem saber que os policiais rodoviários preparavam uma emboscada contra o grupo, a direção da PM local tentou afugentar os assaltantes despachando todos os seus veículos para a rua, em patrulhamento ostensivo. “A PF queria fazer um trabalho legítimo, investigando e prendendo toda a quadrilha. Mas desde o começo da investigação ficou claro que a PRF não queria agir na legalidade”, diz um policial federal envolvido no caso, que pede o anonimato para evitar retaliações do governo. Vasques achou que o comportamento da PF era inadmissível e queria que Bolsonaro soubesse disso.
Naquela manhã, o presidente estava em Roma para a reunião do G20, o grupo que reúne os países com as maiores economias do mundo. Sem conseguir alcançar Bolsonaro, Vasques ligou então para o ministro da Justiça, Anderson Torres, cuja pasta cuida tanto da PF quanto da PRF. Depois de ouvir as reclamações, Torres acionou o delegado Luís Flávio Zampronha, que na época integrava a direção da PF, e lhe pediu que cobrasse explicações do superintendente da corporação em Minas Gerais, Marcelo Sálvio Rezende Vieira. Zampronha cumpriu a ordem. “Por que a PF não quis ajudar?”, perguntou ele, em telefonema a Marcelo Vieira. “Calma aí que essa história ainda vai dar merda”, respondeu Vieira, de acordo com o relato obtido pela piauí por dois policiais próximos de ambos.
Assim que saiu a notícia da chacina em Varginha, dois filhos de Bolsonaro correram às redes sociais para exaltar a ação. “Apreensão de fuzis, munições, granadas, explosivos e, após confronto, 25 criminosos tiveram a conversa antecipada com o Capiroto”, escreveu o senador Flávio Bolsonaro no Facebook. “Parabéns aos nossos policiais pelo brilhante trabalho. Todos estão bem.” O deputado Eduardo Bolsonaro também fez festa no Twitter. “Nenhum policial morto. Parabéns PRF e PM-MG”, escreveu e, em seguida, fez a provocação de praxe. “Fiquem tranquilos, só vagabundos reclamarão. #GrandeDia.” Vasques, o diretor da PRF, só conseguiu falar com o presidente – pessoalmente – na tarde de 8 de novembro, quando a comitiva presidencial já estava de volta a Brasília. Não se sabe como Bolsonaro reagiu ao saber da recusa da PF em ajudar na operação.
A reação de Bolsonaro e filhos à matança em Varginha é ao mesmo tempo previsível e reveladora. Previsível porque a família é sabidamente entusiasta da violência policial e costuma celebrar chacinas como a que ocorreu na cidade mineira. A mais recente, festejada pelo presidente, ocorreu em maio passado, na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, na qual morreram pelo menos 23 pessoas. Mas o aplauso à operação em Varginha também revela o papel singular que a Polícia Rodoviária Federal passou a representar no governo de Bolsonaro. De todas as forças policiais do Estado, incluindo as polícias militares, a PRF tem sido a mais maleável às intenções do presidente de colocar uma força armada a serviço de seus interesses e, se for o caso, acima da lei. “A PRF não se constrange em ser bolsonarista porque não há uma cultura organizacional de resistência às ingerências políticas”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG que estuda o assunto e busca dar transparência aos dados sobre violência e políticas de segurança.
Desde os primeiros meses do mandato, o presidente Bolsonaro prestigiou a Polícia Rodoviária Federal e tentou ampliar seu leque de atuação. Em outubro de 2019, o então ministro Sergio Moro, da Justiça, assinou portaria autorizando a PRF a auxiliar “as demais instituições de segurança pública na prevenção e no enfrentamento ao crime”. A portaria dava à corporação poderes de investigar e cumprir mandado judicial – ações típicas de polícias judiciárias (como a Polícia Federal e as polícias civis) e não de polícias ostensivas, como a PRF. Pela primeira vez na história, a PRF assumia funções então típicas da PF, abrindo um contencioso entre as duas forças policiais. “Há nítidos sinais de que a corporação quer ir além da prevenção e repressão criminal nas rodovias federais, transformando-se numa polícia com maior abrangência territorial”, escreveu o sociólogo Luis Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública, da PUC Minas, em artigo para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Incomodada com essa ampliação dos poderes da PRF, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a suspensão da portaria. O ministro Dias Toffoli, do STF, acatou o pedido, sob o argumento de que novas atribuições da PRF só poderiam ser criadas por meio de lei, mas acabou vencido pelo plenário. A portaria continuou em vigor. No entanto, pressionado por agentes da PF, o então ministro da Justiça, André Mendonça, sucessor de Moro, acabou anulando a portaria em janeiro de 2021. Mas manteve a possibilidade de os policiais rodoviários participarem de operações em conjunto com outras polícias ou com o Ministério Público – uma prerrogativa raramente oferecida às forças de patrulhamento rodoviário em outros países.
Enquanto ampliava os poderes da PRF, o governo se empenhou em fortalecer a corporação. Entre 2019 e 2021, o órgão recebeu 704 milhões de reais em investimentos, o que representa 54% a mais do que havia recebido no triênio anterior. Em 2022, os irmãos Flávio e Eduardo Bolsonaro mandaram 3,6 milhões de reais para a PRF por meio do orçamento secreto. Desde 2020, a corporação fechou quinze contratos para a blindagem de veículos, no valor total de 39,9 milhões de reais, todos com a Combat Armor Defense do Brasil, cujo dono é próximo do deputado Eduardo Bolsonaro. Além disso, seu efetivo cresceu no atual governo. Passou de 9,9 mil policiais para 12,2 mil. Ao mesmo tempo em que ganhava mais dinheiro e mais poderes, a PRF foi estimulada a se afastar cada vez mais de sua missão original – e enfraqueceu a vigilância dos 75 mil km de rodovias federais. Bolsonaro pressionou a PRF a deixar de punir o transporte de armas pessoais e estimulou a corporação a amolecer o tratamento contra infrações cometidas por caminhoneiros, sua base eleitoral.
Em agosto de 2019, Bolsonaro chegou a mandar tirar todos os radares das rodovias federais para acabar com “a indústria das ‘multagens’ eletrônicas”. Em quatro meses, o número de mortos nas estradas aumentou 15%. A Justiça derrubou a decisão e os radares foram acionados de novo, mas o controle nunca voltou a ser o mesmo. Em 2019, a fiscalização com radares móveis somou 42 mil horas. No ano passado, segundo levantamento do portal UOL, não chegou a 20 mil. Até na Via Dutra, a rodovia mais movimentada do país, que liga Rio de Janeiro e São Paulo, dois postos de fiscalização foram fechados: um em Itatiaia, outro próximo à Serra das Araras. Como resultado, as mortes nas rodovias federais pararam de diminuir. No ano passado, foram 5 381 óbitos, 1,7% a mais do que no ano anterior. (A PRF diz que isso aconteceu por causa do aumento no fluxo de veículos nas rodovias federais no “período pós-pandemia”, mas a explicação não combina com o calendário: 2021 foi o ano mais duro da Covid.)
Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, ONG que trabalha para reduzir os acidentes, resume a situação: “No atual governo, a Polícia Rodoviária tornou-se um instrumento político nas mãos do presidente. Negligenciaram a fiscalização do trânsito para assumir outras funções fora das rodovias.” De fato, no processo de bolsonarização, a PRF expandiu suas ações longe das estradas. De 2019 até o mês de junho passado, policiais rodoviários prenderam 1 226 pessoas em municípios onde não há nenhuma estrada federal. Também se tornou, durante o governo Bolsonaro, uma polícia que mata cada vez mais. Em 2019, foram quatro mortes. Em 2020, subiram para dezesseis. No ano passado, chegaram a 35. Neste ano, só até junho, já estão em 38.
Com mais dinheiro e o respaldo político do presidente, a PRF está virando uma polícia comum, com o agravante de que suas ações são fiscalizadas com pouco rigor pela corregedoria do órgão, o que acaba por estimular seus agentes a atuarem à sombra da lei. Durante seis semanas, a piauí reconstituiu a matança de Varginha com base em documentos, laudos e entrevistas com quatro autoridades envolvidas direta ou indiretamente no caso – todas falaram sob anonimato para evitar retaliação dos próprios policiais rodoviários e do governo. A conclusão inevitável é que a chacina de Varginha foi um festival de ilegalidades.
Em setembro de 2021, semanas após um grande assalto a bancos em Araçatuba, no interior paulista, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal começaram a seguir os passos de Ítallo Dias Alves, um jovem de 25 anos, morador de Uberaba, em Minas Gerais. Não havia indício de que estivesse envolvido no assalto em Araçatuba, mas Alves era suspeito de ser um dos líderes do “novo cangaço”, como são chamadas as quadrilhas de criminosos que invadem cidades do interior, em geral à noite ou de madrugada, assumem o controle do lugar e roubam grandes quantidades de dinheiro dos bancos.
Os policiais instalaram um rastreador no carro de Alves (medida que prescinde de mandado judicial) e começaram a acompanhar seus passos. O rastreador é um aparelho, instalado embaixo do veículo, que informa à polícia a sua localização em tempo real. Tudo corria dentro da lei, até que a PRF resolveu executar uma ação ilegal: simulou uma abordagem rotineira na beira da estrada, parou o carro de Alves, pediu seu celular e, sem que o suspeito percebesse, instalou no aparelho um aplicativo chamado “Bruno Espião”, que clona todas as ações do aparelho-alvo em um segundo celular, incluindo as conversas por aplicativo. O software foi criado por um jovem mineiro para que os pais controlassem a rotina dos filhos, com o consentimento destes, mas a PRF tem usado a ferramenta para interceptar conversas de terceiros, o que só pode ser feito com aval da Justiça.
Como a PRF não tinha ordem judicial para clonar o celular do suspeito, a PF sentiu cheiro de queimado e decidiu abandonar a investigação. A determinação foi dada pela direção da corporação em Minas Gerais, incluindo o superintendente, Marcelo Vieira. “O objetivo da Polícia Federal era instaurar um inquérito formal, reunir provas contra a quadrilha, solicitar mandados de prisão e só então deflagrar a operação, colocando todos na cadeia. É assim que funciona. Quando percebemos que a Polícia Rodoviária queria matar todo mundo sem investigar nada, pulamos fora”, diz um policial federal que acompanhou o caso de perto.
Com o rastreador (legal) e o Bruno Espião (ilegal), os policiais rodoviários descobriram que uma quadrilha planejava fazer um assalto a banco em Varginha na madrugada de 1º de novembro do ano passado, uma segunda-feira. Também descobriram que os criminosos se dividiam em duas chácaras, ambas próximas a Varginha, mas não conseguiam saber a localização exata. Por isso, na tarde de sábado, dia 30 de outubro, segundo as informações prestadas à Polícia Federal por uma testemunha que participou do planejamento do assalto, mas não estava nas chácaras no dia da chacina, uma equipe da PRF abordou Alves e o caminhoneiro Francinaldo Araújo da Silva em um posto de combustível de Muzambinho, cidade a 140 km de Varginha. Ali, constataram que o caminhão tinha um fundo falso sob a carroceria, que seria usado para esconder a quadrilha na fuga depois do assalto. Segundo a PF, a dupla foi pressionada – não se sabe com que métodos – a revelar a localização das chácaras e quantos assaltantes havia em cada uma delas.
Os criminosos alugaram os dois sítios nas extremidades Sul e Norte de Varginha, a 12 km uma da outra, ainda de acordo com aquela mesma testemunha. A primeira chácara abrigou dezoito homens (um deles era o caseiro que, segundo familiares, tinha uma deficiência mental e não integrava a quadrilha) e o armamento: vinte fuzis e seis pistolas, que só seriam desembalados no domingo, horas antes do assalto. A missão desse grupo era revidar a ação policial, a começar pelo batalhão da PM cuja sede fica a apenas 2 km da chácara. A segunda casa foi ocupada por oito homens com 40 kg de explosivos que dinamitariam os cofres da agência do Banco do Brasil, no Centro da cidade, de onde os criminosos esperavam roubar 65 milhões de reais.
À noite, 28 policiais rodoviários – lotados no Comando de Operações Especiais (COE) e no Grupo de Resposta Rápida (GRR), subordinado ao próprio COE – rumaram em direção a Varginha. Chegando lá, já na madrugada, juntaram-se ao grupo 22 policiais militares do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), vindo de Belo Horizonte. Foi nesse meio-tempo que o superintendente da PF, Marcelo Vieira, avisou a PM de Varginha do assalto iminente. As viaturas da PM começaram então a circular pela cidade, numa tentativa de dissuadir os criminosos. Poucas horas depois, no entanto, o comando da PM em Belo Horizonte mandou um recado determinando que as viaturas voltassem aos quartéis, deixando o caminho livre para a PRF e o Bope. Começava a se desenhar a chacina.
A primeira invasão se deu na chácara onde estavam o armamento e os dezoito homens (dezessete criminosos e o caseiro). Os 28 policiais rodoviários entraram pela frente do imóvel, um sobrado cercado por um muro de finas placas de cimento, e os 22 membros do Bope cercaram os fundos da chácara, que dava para um pequeno riacho. A partir desse ponto, como sempre acontece nas ações policiais que acabam em matança generalizada, a versão dos policiais rodoviários não faz sentido. Em depoimento à PF e à sindicância da própria PRF, disseram que, assim que pularam o portão principal, um dos criminosos começou a atirar do primeiro andar do sobrado, motivando “intenso tiroteio”. No fim, morreram todos os dezoito ocupantes da casa – três deles com mais de dez tiros – e os policiais não tiveram um único ferimento.
Para essa versão fazer sentido, todos os dezoito homens deveriam estar na chácara, incluindo Alves e o caminhoneiro Silva. Por isso, os policiais disseram à PF e à corregedoria da PRF que ambos estavam no imóvel quando houve a suposta troca de tiros, e que encontraram o caminhão abandonado no posto de combustível. O que intriga os investigadores é que o caminhão, vital para a fuga da quadrilha, estivesse abandonado faltando poucas horas para o roubo. No inquérito instaurado pela PF para apurar o caso (como envolve policiais rodoviários federais, a investigação do crime é de competência federal), os policiais obtiveram apenas fragmentos das imagens das câmeras de segurança do posto, que não mostram a abordagem dos policiais à dupla. O dono do posto alegou problemas técnicos no equipamento.
Para os agentes federais envolvidos na investigação, o saldo da operação é a maior das ilegalidades: os criminosos foram executados, incluindo Alves e o caminhoneiro. Segundo a única testemunha que sobreviveu porque não estava em nenhuma das chácaras, quando o primeiro sítio foi invadido, às cinco da madrugada, os criminosos estavam dormindo, já que haviam promovido um churrasco na noite anterior. Quase todos os corpos tinham álcool no sangue, segundo laudos do Instituto Médico Legal (IML). O ferimento de um dos cadáveres aponta que a bala atravessou o braço direito e entrou na maçã direita do rosto – indicativo claro, segundo peritos ouvidos pela piauí, de que tentou se proteger com o braço no momento em que levou o tiro no rosto.
Com a eliminação de todos na primeira chácara, oito policiais rodoviários e quatro PMs foram até a segunda propriedade. Ali, segundo disseram em depoimento, a cena repetiu-se de mesmíssimo modo e com um desfecho idêntico: foram recebidos a tiros, revidaram e mataram todos sem sofrer um arranhão. No entanto, segundo a testemunha, nenhuma das oito vítimas da segunda chácara estava armada, já que o imóvel é cercado por vizinhos e qualquer descuido poderia resultar em alguma denúncia à polícia. Para os investigadores, há poucas dúvidas de que houve uma segunda chacina.
Embora os 25 criminosos mais o caseiro estivessem mortos (alguns sem um pedaço do cérebro), às 6h30 todos foram levados na caçamba de uma caminhonete da PRF, amontoados, para o Hospital Bom Pastor e uma outra unidade de pronto atendimento da cidade. Em depoimento à PF, médicos e enfermeiros disseram que os policiais estavam exaltados, “exigindo que o atendimento fosse realizado o mais rápido possível”. Quando um médico perguntou se todos estavam mortos, um dos policiais respondeu rispidamente: “Você é o médico, você é que vai dizer.” Para a Polícia Federal, foi mais uma ilegalidade. Em vez de urgência para prestar socorro, a correria foi apenas para alterar a cena do crime e dificultar a investigação da chacina.
A Polícia Federal instaurou inquérito contra todos os cinquenta policiais rodoviários e militares para apurar o crime de homicídio. No fim de julho, a PF aguardava o laudo de perícia do Instituto Nacional de Criminalística (INC) que, a partir de poças de sangue e vestígios de DNA encontrados nas duas chácaras, pretende reconstituir em imagens 3d o que de fato aconteceu naquele início de manhã de 31 de outubro em Varginha. Mas, em junho, o INC foi pressionado pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério da Justiça a adiar a conclusão do laudo para depois das eleições de outubro a fim de não causar dano à campanha do presidente Bolsonaro. Procurados, nem o INC, nem o superintendente da PF em Minas, Marcelo Vieira, quiseram se manifestar.
A PRF, por sua vez, abriu uma sindicância, ouviu os policiais envolvidos e deu-se por satisfeita, isentando todos de qualquer infração. “Não se vislumbra qualquer irregularidade praticada, em tese, pelos policiais rodoviários federais que atuaram na operação”, diz a conclusão da investigação interna. Dos 28 policiais rodoviários que participaram da matança em Varginha, quatro foram promovidos a cargos de chefia depois do episódio. Um deles, Felipo Jesus Medeiros, tornou-se superintendente da corporação em Roraima.
A piauí pediu um posicionamento da PRF em relação às incongruências da versão dos seus policiais no episódio de Varginha. Em uma resposta curta, a corporação negou o uso do aplicativo Bruno Espião e disse ter adotado “todos os procedimentos e análises preliminares possíveis e pertinentes acerca desses fatos e condutas, não tendo sido identificado nenhum indício de irregularidade acerca dos acontecimentos”. A Polícia Militar, por sua vez, disse que o caso foi “devidamente apurado” pela própria corporação, mas não informou as conclusões da investigação. (Os 22 PMs têm se negado a depor à PF, sob o argumento de que o caso é de competência da Justiça Militar.) A defesa dos policiais rodoviários envolvidos não se pronunciou.
Diante de casos de violência brutal, a PRF parece hoje uma sombra da força que surgiu em 1928 com o nome singelo de Polícia de Estradas e que, na década de 1960, já batizada de Patrulha Rodoviária Federal, ganhou popularidade entre a garotada com o seriado Vigilante Rodoviário, exibido na TV Tupi, em que o inspetor Carlos e seu cão Lobo combatiam o crime nas estradas a bordo de um Simca Chambord ou uma Harley-Davidson. Naquela época, a PRF era apenas uma guarda armada. Ao flagrar algum crime na estrada, detinha o infrator e o levava até a delegacia.
Na Constituição de 1988, a corporação ganhou o nome de Polícia Rodoviária Federal e passou a integrar o sistema de segurança pública brasileiro, já com poderes para investigar por conta própria crimes relacionados ao sistema viário. Dois anos depois, deixou de ser subordinada ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (dner) e ficou debaixo do guarda-chuva do Ministério da Justiça, ao lado da Polícia Federal, inaugurando aí a rixa que se arrasta até hoje. Os delegados da PF chamam os policiais rodoviários, jocosamente, de “patrulheiros”, para lembrá-los dos tempos em que eram apenas guardas armados na beira da pista, um tipo de policiamento tido como inferior.
Nas duas primeiras décadas deste século, a PRF envolveu-se em dois escândalos. Em um deles, soube-se que policiais rodoviários recebiam propina no Rio de Janeiro para permitir a circulação de caminhões-tanque com combustível adulterado. Em outro, por meio da CPI dos Grampos, na Câmara dos Deputados, soube-se que a PRF vinha fazendo interceptações telefônicas ilegais, a pedido da Polícia Federal e do Ministério Público. Mas, mesmo assim, a corporação ganhou espaço. Conseguiu aprovar uma lei exigindo curso superior para quem fizesse concurso na corporação, melhorou sua política salarial e montou um lobby no Congresso para buscar mais verba. No governo Bolsonaro, seu primeiro diretor–geral foi Adriano Furtado, próximo do então ministro da Justiça Sergio Moro. Furtado deixou o cargo em 2020 depois de cometer uma falha capital, na visão de Bolsonaro: lamentou publicamente a morte de um policial rodoviário causada pela Covid. O presidente não gostou e, para o seu lugar, escalou Eduardo Aggio de Sá, na época assessor da Secretaria–Geral da Presidência da República.
Com Aggio de Sá, a PRF tentou ampliar os laços com o governo. Os policiais rodoviários passaram a ser presença obrigatória nas motociatas de Bolsonaro, nas quais a PRF ignora abertamente uma infração recorrente do presidente, a de não usar capacete. Mas não conseguiu avançar o quanto desejava. Tentou atuar diretamente em investigações policiais, nos moldes daquela portaria de Sergio Moro, buscou estender seus braços aos portos e aeroportos e propôs à Força Aérea Brasileira (FAB) participar de operações ligadas ao transporte de cocaína em aeronaves. Não teve sucesso e, em abril de 2021, ao divulgar que a PRF fizera uma investigação que, na verdade, fora realizada pela PF, Aggio de Sá acabou demitido.
Assim, chegou a vez do policial rodoviário Silvinei Vasques, indicado para o cargo por Flávio Bolsonaro. Nascido no interior do Paraná mas criado em Santa Catarina, Vasques, de 47 anos, segundo dos quatro filhos homens de um motorista e uma dona de casa, é dono de uma biografia profissional pouco recomendável para um agente da lei. Em 1997, com apenas dois anos de carreira na PRF, Vasques e outros quinze policiais rodoviários foram acusados de pedir propina para permitir que uma empresa de guincho atuasse nas rodovias federais da região de Joinville, em Santa Catarina. Quem não se submetia à chantagem ilegal era impedido de trabalhar na região. Segundo consta no inquérito, Vasques ameaçou matar um deles “com um tiro na testa”, pois “nada tinha a perder”. Ao investigar o caso, a Polícia Federal descobriu depósitos suspeitos nas contas bancárias dos policiais, incluindo Vasques. A investigação, porém, se arrastou por oito anos, o Ministério Público Federal só denunciou os policiais em 2009 e, dois anos depois, o Tribunal Regional Federal (TRF) determinou que o crime estava prescrito.
Em 2000, Vasques espancou o frentista de um posto de combustível no interior de Goiás com socos no abdome e nas costas, depois que o funcionário se recusou a lavar um dos cinco veículos da PRF no posto. A ação criminal por lesão corporal e abuso de autoridade também acabou prescrita. A vítima ganhou o direito a uma indenização de 71 mil reais do governo federal e, desde 2017, a Advocacia-Geral da União cobra de Vasques o ressarcimento do valor. O policial já foi condenado em primeira instância, mas recorreu ao TRF. O caso fez com que a corregedoria da PRF e o Ministério da Justiça pedissem a expulsão de Vasques da corporação. Mas a investigação demorou para ser concluída e, mais uma vez, a punição prescreveu.
É esse o policial que comanda a PRF e que, ao longo de sua carreira na corporação, respondeu a oito sindicâncias internas. Quem quiser saber detalhes de cada uma delas só terá acesso aos dados no ano de 2121, pois o governo federal, para proteger o policial, decretou sigilo de cem anos sobre os processos. A decisão do governo foi tomada quando o portal Metrópoles, com base na Lei de Acesso à Informação, pediu para conhecer o conteúdo das sindicâncias.
Enquanto enfrentava acusações e condenações, Vasques sempre esteve atento à política, embora não à ideologia. Licenciou-se da corporação entre 2007 e 2009 para ser secretário de Transportes, de Administração, de Segurança e Defesa Social da Prefeitura de São José, na Região Metropolitana de Florianópolis. Já foi filiado ao pl e foi próximo da petista Ideli Salvatti, ex-ministra-chefe das Relações Institucionais, a quem ofereceu mimos como voar no helicóptero da PRF para participar de compromissos oficiais, segundo revelou o jornal Correio Braziliense em 2013. Um ano depois, com a ajuda de Salvatti, Vasques conseguiu levar a Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal (UniPRF) para Florianópolis. A academia foi instalada no campus de uma antiga universidade, alugado por 295 mil mensais.
Em 2019, guiado pela mudança de poder, pediu para assumir o comando da PRF no Rio de Janeiro, onde aproveitou para estreitar laços com o bolsonarismo. Por causa do seu passado na corporação, a nomeação teve resistência da Casa Civil, responsável por analisar o currículo de servidores em cargos de direção, e só foi efetivada em abril daquele ano. Empossado, aproximou–se do então governador Wilson Witzel, hoje desafeto da família Bolsonaro, do então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, hoje no ostracismo político, e de Flávio Bolsonaro, a quem oferecia segurança, prestada por uma equipe de policiais rodoviários, sempre que o parlamentar estava no Rio. Em pouco tempo, caiu nas graças do clã Bolsonaro e foi recompensado com a direção-geral da PRF, por indicação de Flávio.
Uma vez no comando da corporação, Silvinei Vaques cumpriu à risca a cartilha bolsonarista – no acessório e no principal. Quando o deputado Eduardo Bolsonaro ficou irritado com a abordagem de policiais rodoviários a um motorista que levava uma arma no carro no interior paulista, Vasques correu para mudar o modo como a PRF fazia a fiscalização. Quando o ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, hoje candidato bolsonarista ao governo de São Paulo, reclamou das multas aos motoristas de caminhões com traseira elevada, Vasques foi acionado – e, segundo o próprio Freitas contou num grupo de WhatsApp, combinou “com o diretor-geral da PRF que montaremos um grupo de trabalho para fazer um ‘revogaço’ de normas”.
Mas Vasques é impetuoso também no principal da cartilha bolsonarista. Sua gestão tem sido marcada pelo investimento em inteligência da PRF, com a compra de softwares de rastreamento, identificação e interceptação de números de aparelhos celulares. É um mau sinal. A PRF é uma polícia ostensiva, e não judiciária, como a Polícia Federal, a quem cabe investigar crimes. Por isso, é estranho seu interesse em investigações sigilosas, muitas delas com equipamentos invasivos, cujo uso só é possível com autorização judicial. “Não há controle nem transparência sobre a atividade de inteligência policial no Brasil, o que aumenta o risco de que esses equipamentos sejam utilizados com fins políticos, violando uma série de garantias fundamentais”, alerta Gabriel de Carvalho Sampaio, da Conectas Direitos Humanos, uma ONG na qual ele coordena um programa de combate à violência institucional.
O incremento em inteligência começou pouco antes do governo de Bolsonaro. Em março de 2018, ainda sob Michel Temer, a superintendência da PRF em Goiás contratou a TechBiz Forense Digital, que representa no Brasil a empresa israelense Cellebrite, conhecida por desenvolver programas de espionagem. Entre os produtos adquiridos por 791 mil reais, conforme o contrato obtido pela piauí, está um software que extrai conteúdo armazenado em nuvem (UFED Cloud Analyzer), algo que só pode ser feito com aval da Justiça. Procurada pela revista para explicar a compra do software, a PRF informou que usa a ferramenta para “prestar apoio técnico, mediante expressa autorização judicial, às polícias judiciárias e ao Ministério Público”. A piauí quis saber se alguma vez, de 2018 para cá, a Justiça autorizou a PRF a extrair conteúdo das nuvens. A corporação disse que não pode revelar essa informação, pois “o inquérito policial é sigiloso por natureza e, como a PRF atua em apoio, as informações sobre eles devem ser fornecidas pela autoridade policial responsável”.
Em dezembro, um mês antes do começo do governo Bolsonaro, a Superintendência Regional da PRF no Rio de Janeiro usou 5 milhões de reais para contratar a Cognyte Brasil, subsidiária da empresa homônima, também israelense, para o “monitoramento de redes sociais”, o que, em tese, dispensa medidas judiciais. A PRF diz que precisa monitorar as redes para investigar delitos ligados direta ou indiretamente a rodovias, como tráfico de armas, narcotráfico e roubo de veículos. (Meses depois, já como superintendente no Rio, Vasques assinou convênio com o Ministério Público do estado para “viabilizar o intercâmbio de dados e informações”. Inclui–se, aí, informações de inteligência.)
Foi no governo Bolsonaro, no entanto, que o setor de inteligência da PRF ganhou impulso. Tanto que, em fevereiro passado, a Conectas pediu ao Ministério Público Federal que investigue uma plataforma chamada Córtex. Pouco conhecida, essa plataforma reúne mais de 160 bases de dados de pessoas físicas e de empresas, como números de CPF, endereços, telefones e rendimentos, inclusive o monitoramento de placas de veículos por câmeras da PRF. Formalmente criada em 2021, a Córtex é gerenciada por um órgão do Ministério da Justiça, cujo nome é Secretaria de Operações Integradas (Seopi). A Seopi também é pouco conhecida, mas ganhou notoriedade quando o repórter Rubens Valente revelou no portal UOL que o órgão havia produzido um dossiê com informações sobre policiais antifascistas. O dossiê fora feito logo depois que os policiais lançaram um manifesto contra a “neutralização dos movimentos populares” e a favor de uma “aliança popular antifascismo”.
Em setembro do ano passado, cinco meses depois de assumir a direção-geral, Vasques fechou novo contrato com a Cognyte pelo mesmo valor de 5 milhões de reais para “migração do sistema Verint Web Intelligence”. De acordo com o contrato obtido pela piauí com base na Lei de Acesso à Informação, entre as “atividades de inteligência” do sistema está “coletar dados nos aplicativos de trocas de mensagem WhatsApp e Telegram, de forma não intrusiva”. O contrato diz que a PRF precisa do software para cumprir dois objetivos: ficar no encalço de organizações criminosas, cujos integrantes usam as plataformas, e dos movimentos sociais, cujas mobilizações de rua podem “afetar a livre circulação nas rodovias federais”.
O software é semelhante ao Cellebrite, que organiza as informações que aparecem nos aplicativos de mensagem, como conversas, áudios e vídeos. O problema é que, para obter tais informações, é preciso introduzir um aplicativo espião no celular do investigado, o que só pode ser feito com autorização da Justiça. Por isso, o Ministério Público Federal considera o contrato da PRF ilegal. “Não se trata de investigação com o objetivo de instaurar um inquérito policial, mas de atividade de inteligência, de coleta e análise de informações, algo que pode ou não se tornar um inquérito”, diz um procurador especializado no assunto, que pede o anonimato para não se indispor com as polícias. “E quebrar sigilo sem ordem judicial no trabalho de inteligência é crime.” Indagada sobre esse aspecto, a PRF disse apenas que “por não ser intrusiva, [a tecnologia] está em conformidade com a legislação pátria”. Um dos proprietários da representante brasileira da Cognyte, Lincoln Egydio Lopes, não quis se manifestar, alegando sigilo contratual.
Sete meses depois da chacina de Varginha, as tropas de elite da PRF voltaram suas atenções para a Vila Cruzeiro, uma comunidade carioca ocupada pela facção criminosa Comando Vermelho (CV). Oficialmente, a chacina que resultou da operação, com a morte de pelo menos 23 pessoas, foi comandada pelo Bope. No mesmo dia, a entrevista à imprensa para falar da matança na Vila Cruzeiro foi conduzida pelo secretário da Polícia Militar, Luiz Henrique Marinho Pires, e, para todos os efeitos, a PRF teve uma participação lateral. Só que foi o contrário. O Bope atuou como coadjuvante e quem comandou a operação foi a própria PRF. “A tropa de elite da Polícia Rodoviária foi protagonista o tempo todo. O Bope só assumiu a bronca porque a legislação impede essa liderança da PRF”, disse à piauí uma fonte que participou da operação policial.
A liderança da PRF afronta o Ministério da Justiça que, em janeiro de 2021, determinou que a corporação poderia apenas “prestar apoio logístico” a outras polícias nesse tipo de operação. Nos primeiros dias de maio, a Polícia Federal soube que havia líderes do CV do Pará escondidos na Vila Cruzeiro, entre eles Marlon da Silva Costa, o Déo, suspeito de participar de ataques a policiais paraenses. Embora o caso não tivesse qualquer conexão com as rodovias federais, a PRF foi informada da suspeita e acionou, novamente, o GRR e o COE, cujo chefe, Alexandre Carlos de Souza e Silva, encarregou-se de coordenar a operação na Vila Cruzeiro, com aval do diretor Vasques.
Na noite de 23 de maio, uma segunda-feira, a PRF acompanhou, não se sabe como, uma reunião de integrantes do CV na Vila Cruzeiro na qual ficou decidido que, entre o fim da madrugada e o início da manhã do dia seguinte, o grupo seria reforçado com outros integrantes do CV do vizinho Complexo do Alemão e tentaria tomar duas comunidades da facção rival Terceiro Comando Puro (TCP): Timbau, no Complexo da Maré, e São Carlos, no Estácio.
Como sabiam que, para chegar ao Complexo do Alemão, os criminosos passariam por um pequeno morro coberto de mata nos arredores, 41 policiais do GRR e do COE (dos quais cinco haviam participado da chacina em Varginha), posicionaram-se ali na madrugada do dia 24, com o apoio de dez caminhonetes blindadas. Outros quarenta policiais do Bope estavam na retaguarda. Quando os criminosos do CV entraram na mata, por volta das 4h30, os policiais rodoviários começaram a atirar com seus fuzis M-15 e 7.62. No total, os policiais fizeram 1,4 mil disparos.
Depois de uma manhã inteira de tiroteio, a operação resultou na segunda mais letal da história do Rio. Entre os 23 mortos, havia cinco foragidos da Justiça e uma moradora da comunidade da Chatuba, que morreu atingida por uma bala perdida. Do lado da polícia, houve um perito da Polícia Civil ferido sem gravidade. De novo, há suspeitas de execução. Segundo o laudo do IML, ao qual piauí teve acesso, um dos corpos levou um tiro na nuca. A exemplo do que ocorreu em Varginha, boa parte dos cadáveres foi levada ao Hospital Getúlio Vargas, na Penha.
Ainda naquela terça-feira, dia 24, Bolsonaro elogiou a operação no Twitter. “Parabéns aos guerreiros do Bope e da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que neutralizaram pelo menos vinte marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa”, escreveu, acrescentando em seguida: “A ação contou com apoio da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.” Na entrevista, o comandante do Bope, Uirá do Nascimento Ferreira, fez questão de responsabilizar o STF pelo fato de criminosos de outros estados se refugiarem no Rio. Isso porque em 2020, em razão da pandemia e da multiplicação de chacinas promovidas pelas forças policiais, o STF restringiu as operações policiais no estado.
O Ministério Público Federal abriu investigação sobre o caso. “Não cabe à PRF fazer uma operação policial em um local longe de estradas federais, como é o caso da Vila Cruzeiro”, afirmou à piauí o procurador Eduardo Santos de Oliveira Benones. Em 8 de junho, a pedido de Benones, a Justiça Federal, em decisão liminar, proibiu a participação da PRF em operações policiais fora das rodovias. Para a juíza Frana Elizabeth Mendes, a PRF tem a reponsabilidade de fazer o patrulhamento ostensivo, fiscalizar e controlar as rodovias federais, “não havendo nenhuma norma que atribua ao aludido órgão o exercício de atividades de polícia judiciária e administrativa fora dos limites estabelecidos na Constituição Federal, quais sejam e repita-se, nas rodovias federais”. A liminar seria cassada dias depois pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Até o fim de julho, a investigação do MPF sobre as mortes não havia sido concluída. Ao contrário do que ocorreu em Varginha, o Instituto Nacional de Criminalística não foi acionado pela Polícia Civil para periciar o local do crime e reconstituir o suposto confronto. Procurado, o delegado Alexandre Herdy Barros Silva, titular da Delegacia de Homicídios da Capital, não quis se pronunciar.
Um dia depois da chacina no Rio de Janeiro, às onze da manhã do dia 25, Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi parado por uma equipe de policiais rodoviários porque dirigia uma moto sem capacete na rodovia BR-101, em Umbaúba, no interior de Sergipe. Era a mesma infração que Bolsonaro comete nas suas motociatas diante dos olhos dos homens da PRF. Santos foi revistado, espirraram gás de pimenta no seu rosto, aplicaram um “mata-leão”, jogaram o rapaz na traseira de uma viatura, atiraram uma bomba de gás lacrimogêneo e fecharam a porta. Santos, que fazia tratamento psiquiátrico, morreu em pouco mais de um minuto, no que ficou conhecido como “câmara de gás” da PRF. Em nota divulgada no mesmo dia, a corporação disse que usou “instrumentos de menor potencial ofensivo” para conter Santos e que “o abordado veio a passar mal” na viatura “durante o deslocamento” até a delegacia, sendo “socorrido de imediato”.
Era uma nota inteiramente mentirosa – e mentirosa diante dos olhos do país inteiro, que viu as imagens gravadas por testemunhas. Mesmo assim, a PRF levou quatro dias para mudar o discurso por completo. Em nova nota à imprensa, sem pedir desculpas pelo que dissera antes, afirmou que assistia “com indignação os fatos ocorridos” em Sergipe e que “não compactua” com as medidas adotadas na abordagem, nem com “qualquer afronta aos direitos humanos”. O presidente Bolsonaro levou cinco dias para falar do episódio – e sem qualquer indignação. “Não podemos generalizar tudo o que acontece no nosso Brasil. A PRF faz um trabalho excepcional para todos nós. A Justiça vai decidir esse caso. Tenho certeza que será feita a justiça e todos nós queremos isso aí. Sem exageros e sem pressa por parte da mídia que sempre tem lado, o lado da bandidagem.”
O inquérito da Polícia Federal que investiga o caso não havia sido concluído até o fechamento desta edição da piauí. Os três policiais rodoviários envolvidos na morte por asfixia de Santos também são alvo de uma sindicância da PRF. Recentemente, em reunião com integrantes da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável pelo controle externo das polícias, o diretor-geral Silvinei Vasques prometeu suspender temporariamente as ações das tropas de elite da PRF, mas sem se comprometer com prazos. (No dia 21 de julho, a PRF emprestou oito caminhonetes blindadas para a PM numa ação no Complexo do Alemão, que terminou em outra chacina: dezoito mortos, entre eles uma moradora que estava dentro do seu carro. Dessa vez, a corporação não participou diretamente do confronto.) Com a bênção de Vasques, Alexandre Silva, o policial rodoviário que coordenou a operação na Vila Cruzeiro e, sozinho, deu 63 tiros naquela manhã, virou superintendente da PRF no Rio de Janeiro em 23 de junho, na véspera do aniversário de um mês da matança. Dias depois, recebeu do Bope o diploma informal de “soldado cruel”, tradicionalmente dado a policiais com dedo leve no gatilho. Procurado pela piauí, ele não quis se pronunciar.
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PRF participa de operação que resultou em chacina na Vila Cruzeiro, na cidade do Rio de Janeiro. Foto: Divulgação / PRF