Empresas que prestam serviço para o Ifood não estão informando ao governo sobre funcionários; entregadores lutam por direitos trabalhistas na Justiça
Por José Cícero, em Agência Pública
Dez empresas de entregas terceirizadas que trabalham com o iFood não registraram nenhum funcionário entre 2018 e 2020 na base de dados do Governo Federal. Um levantamento exclusivo feito pela Agência Pública descobriu que oito empresas que prestam serviço para a plataforma não tinham funcionários cadastrados junto ao CNPJ na base de dados do Ministério da Economia. Outras duas não informaram se possuíam funcionários na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). As informações foram enviadas pelo Ministério da Economia através de um pedido de acesso à informação.
Em maio, a Pública revelou que entregadores que atuam para o iFood através da terceirizada Sis Moto Entregas, com sede no Rio de Janeiro, não tinham seus direitos trabalhistas garantidos apesar de um contrato da empresa com a plataforma. No documento, a Sis Moto se obrigou, além de registrar a carteira de trabalho de seus entregadores, a enviar “mensalmente ou sempre que solicitada, a cópia da Guia do Inss; cópia autenticada do FGTS, cópia autenticada do CAGED/RAIS”.
A reportagem entrou em contato com o iFood para apurar se a Sis Moto apresentou a relação de empregados voluntariamente ou se as informações foram solicitadas pela empresa. Até o fechamento da reportagem, a questão não foi respondida. Por mensagem, a assessoria afirmou apenas que “o que iFood exige que sejam cumpridas as legislações vigentes” e que “são realizadas pesquisas periódicas para avaliação dos OLs”, no entanto, conforme dados enviados pelo Ministério, de 2018 a 2020, não consta nenhum funcionário registrado no CAGED, vinculado a este operador logístico.
De acordo com a Lei do CAGED, toda empresa tem a obrigação de informar ao Ministério do Trabalho, sempre que há admissão ou dispensa de funcionários sob o regime da CLT. Caso a instituição não faça a comunicação, será aplicado uma multa no valor de um salário-mínimo regional, por empregado. Os dados são utilizados pelo Programa de Seguro-Desemprego, elaboração de programas sociais, estudos, pesquisas e programas ligados ao mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que subsidia a tomada de decisões para ações governamentais.
Ao todo, a Pública questionou o Ministério da Economia sobre os funcionários de onze empresas que atuam em parceria com o iFood: RTS Express Transporte de Entregas Rápidas, Carlos Rozendo da Silva Sobrinho, SL Representação Comercial de Material de Construção, F. Rosendo Ferreira, A.G. Ruchet Express, BR Teixeira Express, CSM Express e THL Entregas Rápidas. Segundo a nossa apuração, essas empresas estão entre as que mais realizam entregas para o iFood no município de São Paulo. Das onze, apenas uma apresentou registro de funcionários com vínculo empregatício: a CR Express Entregas Rápidas, que informou 45 funcionários ao Ministério da Economia, sendo: 16 em 2018, 15 em 2019 e 14 em 2020. A informação, contudo, não detalha se são entregadores ou uma equipe que atua na área administrativa.
A assessoria de imprensa do iFood respondeu que a empresa mantém contrato de intermediação com parceiros especializados em entregas rápidas para dar conta de demandas em determinados turnos e regiões. A plataforma ressaltou que esses Operadores Logísticos “podem optar por posicionar seus entregadores em locais e horários mais benéficos para alavancar suas entregas e suprir tais picos. Quem determina a modalidade de contratação de seus entregadores, seja ela MEI, Simples ou CLT é o OL”. No entanto, reforçou que mantém um processo de análise e pesquisa de avaliação dos parceiros que inclui: “monitorar dados cadastrais e situação na receita federal, dados financeiros, processos trabalhistas, regularidade de certidões, infrações trabalhistas, entre outros”.
MPT investigou parceiros do iFood em São Paulo, Belo Horizonte e Recife
Em 2019, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) acionou o iFood sob alegação de fraudar normas trabalhistas, sonegando a relação de emprego mantida com os entregadores. Na Ação Civil Pública (ACP), assinada por sete procuradores(as) do Trabalho, consta que não há autonomia na relação do aplicativo com o entregador.
De acordo com levantamento feito pelo MPT — relatado na ação —, os procuradores listaram 35 pessoas jurídicas contratadas pelo iFood para realizar a entrega através de entregadores próprios na cidade de São Paulo. Dessa lista, apenas uma empresa possuía 250 empregados no CAGED’. As demais não tinham registro de sequer um trabalhador. Além da capital paulista, o órgão também investigou a relação entre as empresas nas cidades de Recife e Belo Horizonte.
Na capital de Pernambuco, o iFood apresentou contrato com sete operadores logísticos, mas apenas dois tinham funcionários registrados. As outras cinco empresas “nunca contrataram empregados para prestar serviços à iFood”, aponta o documento que também aponta a realidade comercial dessa parceira na cidade de Belo Horizonte, onde foi apresentado acordo “com apenas 04 operadores logísticos (para atender toda a demanda da capital!). Entretanto, a consulta ao CAGED e depoimentos de empregados revelou que, dos 04 operadores (OL) citados, apenas 2 deles tinham empregados cadastrados e outros jamais empregaram pessoas, contrariando toda a tese do iFood”, descreve o MPT na ação.
Conforme o documento, “após exaustiva análise técnica e jurídica sobre os ‘serviços’ oferecidos pelo iFood, resta irrefutável que o trabalho desenvolvido pelos condutores, através de suas plataformas tecnológicas, não proporciona a tão sonhada emancipação do trabalhador, conferindo-lhe liberdade e autonomia para exercer suas atividades profissionais. Ao contrário, transforma os condutores profissionais em seres autômatos, verdadeiras marionetes de um sistema de software empresarial que controla e direciona diuturnamente, passo a passo o seu labor”, dizem os procuradores.
No entendimento do MPT, o iFood “inseriu uma peça a mais na engrenagem de seu empreendimento econômico, um testa de ferro”. O documento aponta ainda que “as tais empresas especializadas ou operadores logísticos nada mais são que intermediários cirurgicamente escolhidos para mascarar e obstaculizar, ainda mais, a relação de emprego latente.”
Em janeiro de 2020, a juíza da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, Hirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, julgou improcedentes os pedidos constantes na ação. O valor da causa era de R$ 24 milhões. O MPT recorreu da decisão.
Entregadores se sentem forçados a atuarem via OL
*Eduardo, 24 anos, trabalha com entregas há cerca de três anos, mas há dois tem atuado exclusivamente com delivery através do iFood. “Quando me cadastrei no App, não queria ser OL porque você vira funcionário dos caras e a minha ideia era ser autônomo, mas, como Nuvem não estava tocando, sou obrigado a trabalhar desse jeito. Eu até tentei sair, mas meu líder disse que pra mim virar Nuvem, tenho que ficar 35 dias sem fazer entregas. Não dá pra ficar parado todo esse tempo”, relata. O entregador atualmente está vinculado ao Operador Logístico RTS Entregas.
*Fernanda, que atualmente faz entregas para o iFood através da OL Sis Moto, tem a experiência de anteriormente ter trabalhado com dois Operadores Logísticos e conhece como funciona a relação dos entregadores com essas empresas, no entanto, “mesmo sabendo que OL tem muitas regras, não deu para ficar com Nuvem porque não chamava”.
A entregadora pretende voltar a atuar como Nuvem, mesmo avaliando que tem menos chamadas, “pelo menos vou ter tempo de ir no banheiro”. Fernanda relata que certa vez precisou rejeitar uma corrida porque necessitava usar o banheiro e foi punida por isso. “Eu estava muito apertada, não tinha como segurar mais. Depois que eu rejeitei a corrida, porque como OL você não pode fazer isso, o líder me ligou perguntando porque eu tinha rejeitado. Eu expliquei, mas no outro dia ele me tirou do grupo e eu não tive como escolher o turno pra trabalhar. Fiquei dois dias em casa. Só voltei porque estava implorando pra ele me deixar trabalhar”.
A pessoa que quer fazer entregas pelo iFood tem duas opções de vínculo com o aplicativo: Nuvem ou OL. Na primeira, ele é autônomo, na segunda fica atrelado ao Operador Logístico, no qual, segundo o iFood, são empresas que “têm liberdade para conduzir seus negócios e são responsáveis por contratar os seus entregadores e fazer toda a gestão sobre eles.”
De acordo com Eduardo, Fernanda e outros entregadores ouvidos pela reportagem, que trabalham com diferentes OLs, o processo de vínculo e a atuação com os operadores logísticos acontece da seguinte forma: primeiro, mesmo o indivíduo já tendo cadastro na plataforma, deve enviar ao OL cópia da habilitação ou RG, e-mail e telefone; após a liberação, ele é convidado a entrar num grupo de Telegram ou WhatsApp para escolher em quais turnos pretende trabalhar. “Geralmente eles mandam os turnos no dia anterior e a gente escolhe os horários que quer trabalhar”, conta o entregador.
Após escolher os turnos que pretende trabalhar, o entregador, no horário combinado, deve ir até a região que o Operador Logístico administra e somente lá a empresa loga ele no aplicativo iFood para que ele comece a trabalhar. Ou seja, ele não tem a opção, por exemplo, de fazer entregas em outro lugares, apenas no local e horário pré-agendado.
Para o advogado especialista em direito trabalhista Jefferson Almeida, há diversos elementos e aspectos que caracterizam o vínculo empregatício entre o entregador e as empresas. De acordo com Almeida, nessa forma de relação geralmente existe a pessoalidade, ou seja, “a pessoa tem que prestar o serviço pessoalmente; a habitualidade, por ser um serviço contínuo, e deveria ser um serviço esporádico. Por exemplo, todo dia ele comparece; há subordinação do contratante com o prestador de serviço e uma compensação pelo serviço prestado pelo empregado”, aponta.
Segundo o advogado, “a subordinação não precisa ser diretamente com uma pessoa física do iFood, a subordinação acontece de forma virtual, ou seja, você se compromete a fazer aquele serviço e as ordens de serviços estão ali posta para você, se você não fizer, além de você não receber, você pode ser punido, sendo excluído da plataforma, por exemplo. Então, é como se fosse um empregado normal que tivesse com o seu patrão. A questão é que não existe um patrão ali dando as ordens. Ela acontece de forma meio que coletiva, para várias pessoas ao mesmo tempo, mas ela existe”.
Jerfferson ressalta que “o direito do trabalho está mais preocupado com os fatos do que com a forma, só que às vezes, são feitos vários contratos para fraudar as relações trabalhistas. Por isso que a primazia da realidade, ou seja, o princípio das realidades sobre as formas. Por isso que a testemunha é considerada a rainha das provas num processo de trabalho. A testemunha consegue relatar pro juiz o dia a dia do trabalhador e aquele depoimento tem muito mais força do que um documento fraudulento”, diz.
CPI dos Apps investiga relação entre iFood e OLs
A relação entre entregadores, Operador Logístico e iFood tem chamado a atenção dos parlamentares que compõem a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI dos Apps) que investiga e analisa os contratos, custos e serviços prestados por empresas tecnológicas no Município de São Paulo.
Na sessão que aconteceu no dia 3 de maio deste ano, o dono da empresa THL Entregas, Thiago Henrique de Lima, foi convidado a prestar depoimento à CPI e esclarecer como tem sido a parceria com o iFood desde 2018. Acompanhado de dois advogados, ele ficou cerca de 1h30 explicando a relação comercial. No entanto, nem todas perguntas feitas pelos integrantes da Comissão foram respondidas pelo empresário naquele momento — em especial as relacionadas ao contrato e a emissão de notas fiscais para o iFood que, segundo ele, “hoje é o principal cliente”. O vereador Marlon Luz (MDB) questionou a Lima se a empresa emitia notas de serviços para o iFood, “Depois eu respondo isso por escrito”, disse o empresário. A reportagem entrou em contato com a empresa por e-mail, porém até a publicação, não houve retorno.
As questões não respondidas pelo dono da OL, juntamente com outros pontos relatados no decorrer da sessão, chamaram a atenção do vereador: “Me parece que aqui a gente tem uma empresa de fachada, uma empresa laranja para fazer exigência (acho que a gente tem dados suficientes para isso) de pessoas para trabalhar em certos horários, em certos locais, sem os devidos cumprimentos das leis trabalhistas e utilizando toda infraestrutura do aplicativo ao qual os entregadores prestam ser, que é o próprio iFood”, analisou o vereador.
Segundo relato do empresário na CPI, cerca de mil motoqueiros fazem entregas para a THL no Município de São Paulo. No total, são por volta de 1,8 mil entregadores trabalhando em diversos estados. A reportagem apurou que a empresa atua em pelo menos 25 regiões da capital paulista; cobre todo ABCD (São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano e Diadema); e nove cidades da região metropolitana: Barueri, Carapicuíba, Arujá, Caieiras, Franco Da Rocha, Mogi Das Cruzes, Mauá, Suzano.
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Em maio, a Pública revelou que entregadores não tinham seus direitos trabalhistas garantidos apesar de contrato da terceirizada com o iFood prever esses direitos (José Cícero/Agência Pública)