Corações mortos. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Afogado em formol, o coração não pulsa mais. É ainda coração, mas sempre o mesmo. Inerte. Coração vivo tem seus tempos. O da batida e o do bater que define o tempo de vida. Coração morto tem um tempo só. O da pretensão da eternidade. Ou o da lenta decrepitude que, apesar do formol e de todas as outras químicas e físicas da conservação, invariavelmente vem. Tudo morre, até coração morto.

A condição do coração morto é a da mais absoluta definição. No isolamento do vidro, apenas afeta-se do pouco que vem de fora. Sem sobressaltos. Já coração vivo, por pulsar, é inconstante. Bombeia sangue e aquece quereres e pensares impermanentes. Coração vivo faz sonhar e desejar. Faz olhar para o futuro. Coração morto não vê futuro. Só um presente que se quer eterno. Seu futuro é o sempre.

Há uma estranha condição de pessoas de corações mortos. São corações sem formol e desenvidraçados, mas que funcionam como seus semelhantes de carne inerte. Eles pulsam, mas não impulsionam. Corações vivos são máquinas de bombear, sentir e pensar, já os corações mortos são só carne de se afetar. Corações mortos agem como se não sentissem ou pensassem, só se afetam. Tudo lhes vem de fora, nada de dentro, porque dentro está morto. Se vem desgosto de fora, desgostam-se. Se o que vem é raiva, enraivecem-se. Se o que lhes vem é mentira, mentem. Andam, falam, gesticulam e, claro, pensam, mas do andar ao pensar nada parece seu mesmo pois tudo é afetação. Afetados como um coração morto que vai para onde levam o vidro.

É difícil dizer quando e como um coração morre e continua batendo no peito de alguém. Desgosto, desilusão, tristeza, medo ou, talvez, uma ideia ou sentimento mortificante. Uma mentira repetida e ilustrada, daquelas que nos fazem descrer do que pensamos e sentimos? Ou as alfinetadas de um quotidiano bruto e injusto difícil de entender? Talvez, já tenha nascido morto. Ou, quem sabe, todo coração nasça meio morto e seja necessário algum amor, carinho, proteção e boas ideias para que a vida pulsante, pensante e sensível ali floresça. Será? Quem sabe? E o que sabê-lo importa, se o importante é o coração que agora temos e aqueles com quem convivemos?

Nossa vitalidade cardíaca é tudo o que temos. Ela é nosso presente e futuro. É por ela que somos capazes de amar, respeitar, aceitar e tolerar até quem nos entristece. Até quem tem o coração frio. Importa saber como mantê-lo vivo. Como não carregar no peito, desapercebidamente, uma carne pulsante mas inerte de pensamentos e sentimentos. Viver sem sonhos, planos e futuro, é viver sem viver. É como estar preso num vidro formolizado. É ser levado para onde te afetam levar. É não ser, sendo coisa, massa, relíquia de uma vida passada e um futuro incerto.

No salão sisudo, corações mortos contemplavam o coração morto pulsando lembranças de tempos por eles não vividos. Comemoravam o passado. Lamentavam o presente. Entre coquetéis e vaidades, afirmavam suas ideias e sentimentos afetados com a convicção de um coração que, por estar morto, encontrou a sua forma definitiva de ser no mundo e deseja ao mundo todo o mesmo estado de mórbida definição. Como um coração mumificado em formol, não queriam futuro, mas o eterno e definitivo jeito de ser sem ideias e sentimentos, ou apenas as afetações de uma relíquia para ser admirada por corações mortos de fome.

‘Lenço queimado 3’, de Joan Miró.

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