A morte do “Índio do Buraco”, o guardião da última fronteira

Por Fábio Luís Griggi Pedrosa, em ConJur

O 24 de agosto de 2022 entrará para a história como um dia de triste memória. Durante uma ronda realizada na Terra Indígena (TI) Tanaru, localizada no estado de Rondônia, no município de Chupinguaia, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) da Funai encontrou morto o índio isolado que era o último representante do grupo étnico desconhecido e, agora, declarado oficialmente extinto.

Nos idos de 1996, este índio ganharia fama mundial após arremessar suas flechas sobre membros da Funai que tentavam contato. Ele também costumava adentrar sua cabana, onde havia um buraco ao centro, sempre que pressentia a presença de não índios. Símbolo de resistência indígena, nascia naquele instante o mito da floresta que ficaria conhecido pelo epíteto “Índio do Buraco”.

O buraco guarda grande simbolismo místico para os indígenas, especialmente os Kadiwéus, descendentes dos Guaikurús, que acreditam que o Criador Gô-noêno-hôdi tirou de um buraco todos os povos e deu a cada um funções diferentes. A uns distribuiu instrumentos que tornaram possível a agricultura, a outros concedeu habilidades manuais para o artesanato e assim por diante, contemplou cada etnia.

O índio, sem nome conhecido, tinha fundadas razões para se manter isolado. Sua etnia  fora vítima da ação genocida de grileiros e madeireiros inescrupulosos, integrantes da chamada sociedade envolvente que, por pura ganância, roubaram suas terras, praticaram atos de violência física a seu povo, destruíram sua aldeia, forçando assim o único sobrevivente daquela chacina a fugir pela floresta.

O “Índio do Buraco” tinha, portanto, sólidos motivos para descrer dessas tentativas de reaproximação da autoproclamada sociedade civilizada. Seus antepassados foram traídos, com promessas vãs de paz, terras, e de presentes, mas no fim acabaram mortos. Assim, fazia-se eremita por puro instinto de sobrevivência. O trauma de sobreviver a todo tipo de violência o fez suspeitar de todos os não índios, mas não de tudo ao seu redor. Sua intensa sinergia com o meio ambiente é exemplo fantástico de que é possível a simbiose entre o ser humano e a “mãe natureza”.

O corpo deste verdadeiro guardião da floresta foi encontrado enrijecido dentro de sua tapiri, deitado na rede esticada, como que a descansar após uma longa viagem. Em redor, havia pertences e utensílios diversos, dentre os quais o inseparável arco mais o conjunto de setas, com os quais se defendera em 1996 na ação que o fizera mundialmente conhecido. Seu corpo estava iluminado e aquecido por duas fogueiras que crepitavam, ainda acesas.

Com as réstias das fogueiras era possível notar que o corpo daquele bravo indígena reluzia recoberto da mais rica e colorida arte plumária, mesclando meticulosamente plumas de tucanos, araras e papagaios.

Estaria especialmente paramentado com vistas ao ritual de despedida para o qual se preparara, já pressentindo a morte? Nunca saberemos.

O certo é que, de forma serena, o último herói brasileiro expirou. Sua partida coincide com a extinção de sua etnia, da rica coleção de seu povo, suas crenças, seus símbolos, seus conhecimentos, sua história, enfim, desaparece uma parte rica de nossa história. A humanidade, enlutada, certamente fica mais empobrecida.

O “Índio do Buraco” foi, e seguirá sendo, símbolo da resistência na luta desigual travada por seu povo originário contra as injustiças sociais e as ações predatórias da sociedade nacional, um verdadeiro “avis rara”.

Este silvícola tornou-se um exótico ser, invisível aos olhos da sociedade nacional e, por conseguinte, do mundo. Era a lenda viva da floresta. Sua morte se compara à queima da Biblioteca de Alexandria ou à perda de um dos seres mais iluminados que já habitou entre nós e cuja falta nos relega à completa escuridão das trevas da ignorância, ao mesmo tempo que desnuda a incapacidade de exercermos uma visão heterogênea de mundo, de respeito à pluralidade étnica.

Estima-se que atualmente existam espalhadas pelo Brasil 726 terras indígenas, a abrigar 305 povos originários que, somados, perfazem o total de 897 mil índios, registrando 274 línguas, embora 57% dessa população já não mais utilizem o seu linguajar nativo.

Quando do descobrimento do país, a população indígena chegou a registrar 3,5 milhões de indivíduos. Hoje, as terras reservadas a esses povos correspondem a 13% do território nacional.

O índio isolado Tanaru desfraldou ao mundo  que o observara de soslaio  bandeiras imaginárias de sustentabilidade, da sensibilidade, do respeito à liberdade, da convivência com a diversidade, ideais que ecoaram para além das fronteiras de sua aldeia e, até, do seu país.

O sangue do recém-extinto grupo étnico do índio Tanaru ainda respinga nas roupas de todos nós e continuará a respingar nas das gerações do porvir. Nossa dívida com a etnia do ‘índio do buraco’ foi e será sempre impagável. Com a morte do último representante, sequer temos a quem fazê-lo. O dinheiro, que tanto valorizamos, mas que nenhuma serventia tivera ao silvícola, perdeu completamente o sentido.

Se a própria existência do “Índio do Buraco” foi uma incógnita para a maior parte da população, melhor sorte não se reservaria a sua melancólica partida. Seu funeral, previsto para os próximos dias, deverá ocorrer de forma acanhada, simples, discreta, sem honras militares nem pompa ou cortejo fúnebre, como, de resto, fora sua vida. A cerimônia não será transmitida em tempo real, mas assistida por bichos de toda sorte. Far-se-á silêncio na floresta. Na morte, por certo, este guerreiro será novamente ignorado pelo mundo civilizado.

Este Tanaru teria sido o general mais destemido de que se tem notícia. Encheria de orgulho qualquer exército que pudesse tê-lo em suas frentes de combate, pois, sozinho, enfrentou o mundo, defendeu sua etnia até o último suspiro, com toda sua força, com toda sua bravura, sem nunca ter se rendido ou esmorecido diante das dificuldades.

Não se dobrou à tirania de seus algozes, não se curvou aos pés dos civilizadores. Fez do isolamento seu protesto silencioso que gritará para sempre em nossas consciências.

A floresta era seu país, o seu santuário; o rio Tanaru, sua estrada, seu sustento, o palco de suas iniciações, sua sala de banhos. Ao morrer, o índio Tanaru fez-se vivo e eterno, enquanto tantos nacionais, ao nascerem, se fazem mortos e efêmeros.

A história deste grande guerreiro reclama um resgate histórico, pois não cabe na expressão simplista “Índio do Buraco”, muito pelo contrário: devemos, sim, reverenciar este gigante como o grande herói do Brasil, injustiçado e incompreendido, o guardião da última fronteira, a floresta amazônica, motivo de orgulho e exemplo de resistência para as futuras gerações. Ascendera ao topo ao conjugar o perfeito equilíbrio de sua coexistência com a preservação da natureza. Do alto de sua sabedoria, travava a luta surda contra a ganância, a opressão e a pequenez da sociedade moderna que tentava envolvê-lo, seduzi-lo, reduzi-lo.

Hoje, os sinos dobram por este grande herói que, ao partir, deixa um imenso buraco em nossa alma. Sua existência passou despercebida da maioria. Para muitos, era mesmo conveniente que sequer tivesse existido. Talvez, assim, não expusesse agora nossa nudez aos olhos do mundo. Fomos os seus algozes, roubamos sua terra, dizimamos seu clã, condenando-o a vagar sozinho pela floresta.

A morte deste bastião da resistência reaviva e agiganta nossa ignomínia, tornando visível esta injustiça étnica, eterna e irreparável.

Os buracos cavados pelo índio não lhe serviram de cova, mas certamente servirão aos corpos de seus algozes.

Ao morrer, este Tanaru deixa-nos, dentre muitas outras, a grande lição de que é possível viver em equilíbrio com a natureza. Que a maior fera é o homem civilizado, não os animais selvagens.

Ensinou-nos este silvícola que ser rico é estar em paz consigo, com seus pares e com o “ekos”. Poucos os que, ao partir, terão a consciência leve e a certeza de nunca haver contribuído para a poluição da terra que habitou, do ar que respirou, das águas dos rios em que se banhou.

Viveu sem escola, sem acesso a hospitais, sem a tecnologia que conhecemos, sem carros, sem mansões ou arranha-céus, completamente desapegado de valores econômicos da sociedade capitalista.

O “Índio do Buraco” foi, sem qualquer engano, o maior sábio da nossa geração.

Última imagem do “Índio do Buraco” (Funai)

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