Fátima. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Fé é a certeza sobre coisas que não se pode comprovar. Certeza de que não é efeito do que se vê, mas apenas do que se crê. E há razão na crença, porque seria pouco ou nada racional não procurar entender o que se crê. Ao menos, é assim que Maria de Fátima pensa sua fé em Deus.

Quando jovem, um amigo tão querido quanto desiludido lhe perguntou sobre Deus. “Você acredita mesmo? Como pode? A troco de quê?”. A resposta foi pouco usual. “Eu sei que ele existe. Ali, – disse apontando para um pé de flamboyant – também aqui. Vejo também em você. Tudo o que vejo é a criação de Deus. É por isso que o conheço e sinto. Como Da Vinci, pintor de quem só vi a obra, mas que me basta para o encanto e a certeza de que o pintor existiu”.

É bem verdade que suas ideias sobre Deus não são muito comuns. Mas ninguém vive, pensa ou sente do mesmo jeito. Maria de Fátima acredita num Deus que dança, ri e ama. Um Deus que não gosta que uns matem os outros, ainda que uns e outros achem que uns e outros mereçam morrer.

Talvez, a mais esquisita em suas ideias sobre Deus, seja a de que o mundo é pura ilusão e tudo que nele vemos são coisas que são como são só para nós. Cada um o vê de um jeito. Do jeito que precisa ver. O sente do jeito que precisa sentir para ser por ele afetado de alegrias e tristezas necessárias. O mundo é Deus conversando com cada um. E cada um é para o outro Deus se mostrando. Por isso ela vive para os outros. Retribuição pelos outros viverem para ela.

Maria de Fátima sente a dor dos outros. Há quem chame isso de empatia. Para ela, é um chamado. Todo incômodo é a mão de Deus lhe dizendo o que fazer.

Ela também reza. Muitas vezes em igrejas. Quase sempre católicas. Porque sua mãe era católica e foi em missas que começou a ouvir sobre Deus. Mas reza sozinha. No silêncio, às vezes frio, da igreja encontra o clima para o encontro com Deus. Para falar e lhe ouvir em sentimentos e ideias que lhe tomam a mente. A igreja, para ela, é o invólucro de sua catedral particular de sensações e silêncio onde Deus se faz presente.

Talvez por tudo isso ela tenha ficado tão triste na festa da Padroeira. Ouviu o sujeito vestido de amarelo e cerveja na mão gritando, com raiva, contra o bispo que falava da fome. Maria de Fátima se entristece com gente passando fome. E não entende como alguém pode achar reprovável que se reze pelo fim da fome. Só podia ser mal entendido. Resolveu explicar. “Cale a boca sua comunista!”, ouviu de uma voz gritante e cuspida.

Entendeu que não era falta de entendimento. Era um entendimento diferente. De outro Deus diferente do dela. De uma religião diferente da dela. Sem empatia, amor ou mesmo respeito. Sem que lhe doa a fome do outro. De um Deus de que o mundo não é sua obra, mas algo a ser transformado, em seu nome, a gritos, ameaças, cusparadas e marteladas. Arquitetura de ódio para erguer um estranho mundo onde caridade é pecado e a santidade é bruta e indignada.

Os gritos lhe tiraram o encantamento da festa. Sem mágoa ou raiva, entendeu que era Deus lhe mostrando um mundo ressentido. E ficou feliz quando se deu conta de que aqueles gritos não ecoavam no silêncio sagrado de sua catedral amorosa.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone.

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