Bolsonaro mostrou que pode ser um líder popular, capaz de insuflar protestos e transferir votos. Ainda que derrotado, sai com máquina organizada. Mas não será fácil manter sua rede ultradireitista coesa. Na oposição, PL busca ser sua força centrípeta
Por Luiz Carlos Checchia, em Outras Palavras
Estamos muito habituados a fazer análises centradas nos indivíduos, o que é compreensível porque, como já escreveu Plekhanov há tanto tempo, os sujeitos têm um papel na história. Mas esse papel é demasiadamente dimensionado dada a nossa formação liberal, e por isso acabamos deixando de lado os movimentos mais profundos das forças políticas e seus interesses em disputa. Tentando ir além da superfície, faremos neste texto um esforço para compreender os resultados eleitorais para além das figuras de Luís Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro sem, é claro, menosprezá-los.
Isso posto, vamos nos deter em três ou quatro aspectos ou dimensões da política que nos parece serem fundamentais para entender os resultados que saíram das urnas em 30 de novembro passado. O primeiro deles, é claro, é o dos indivíduos. Lula venceu a Bolsonaro, uma vitória muito significativa, mas cujas comemorações efusivas encobrem um perigoso encolhimento de seu eleitorado: quando elegeu-se anteriormente, nos anos de 2002 e 2006, Lula obteve, respectivamente, 61,27% e 60,83% dos votos válidos, no entanto, neste pleito de 2022, ele alcançou 50,9% do eleitorado, uma redução de, arredondados, 10% em relação à sua reeleição de 2006. Isso não é pouco. Claro que se pode dizer que por ter a máquina estatal nas mãos, Bolsonaro tinha muito mais margem de manobra e negociação com os capos políticos de sempre do Congresso Nacional, mas o fato é que o atual presidente da República parece ter se tornado um líder popular de alguma grandeza, ainda que apenas o tempo possa garantir o quanto durará essa identificação entre ele e os amplos setores da sociedade que o apoia. A se considerar o convite feito por Valdemar Costa Neto, mandatário do Partido Liberal, ao presidente, oferecendo-lhe salário, moradia em Brasília e a estrutura necessária para comandar um escritório político, nos parece crível que Bolsonaro mantenha-se à frente de uma força política suficiente para que continue a ser um líder entre os seus adeptos e seguidores.
Não são apenas os mais de 58 milhões de votos alcançados que expressam a força popular de Bolsonaro, foi também surpreendente o quanto de votos conseguiu transferir para seus candidatos ao Congresso Nacional. Se contarmos apenas os dez mais votados para a Câmara Federal em cada um dos três maiores colégios eleitorais do país (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), Bolsonaro garantiu as eleições de cerca de 14 deputados integrantes de seu grupo político ou próximos a ele. Dentre eles consta o mineiro Nikolas Ferreira, maior votação nacional nas eleições de 2022, com quase 1 milhão e meio de votos. No Senado os números não são menos expressivos: das 27 cadeiras em disputa, o ex-capitão conquistou 20, elegendo figuras até então sem tradição alguma na política, como o astronauta Marcos Pontes. Também garantiu a eleição de seus representantes à frente de estados como São Paulo, onde Tarcísio de Freitas venceu Fernando Haddad, e Rio de Janeiro, estado que reelegeu Cláudio Castro.
Se Bolsonaro pode transferir votos, também pode retomá-los. Vejamos, por exemplo, como que figuras eleitas à sombra do bolsonarismo, em 2018, se desfizeram em pó depois de se afastar dele, como Joice Hasselmann, que naquele ano recebeu mais de 1 milhão de votos, mas que agora não chegou a 13 mil, ou seja, um encolhimento de quase 99% de uma votação para outra. Situação semelhante à de Alexandre Frota, anteriormente uma verdadeira máquina bolsonarista que obteve 155 mil votos em 2018, mas que neste ano de 2022, disputando vaga na ALESP, conseguiu apenas um pouco mais de 24 mil votos. Em suma, parece que Bolsonaro mantém uma capacidade de transferência de votos muito poderosa, capaz de eleger figuras até então inexpressivas para a política eleitoral, figuras que não se sustentam quando abrem mão de seu apoio.
Tudo isso nos parece demonstrar que mesmo com a sua derrota, Jair Messias conseguiu estruturar uma força política considerável. O que nos carrega para outra dimensão de avaliação política. Se Lula venceu Bolsonaro, nos parece que o bolsonarismo venceu o lulismo. Mesmo derrotado, Bolsonaro conseguiu erigir uma poderosa força política organizada, ele conta com um grande número de pessoas dispostas a fechar avenidas e ocupar espaços públicos em seu nome, setores das polícias deixam claro que estão ao seu lado e, ainda, há milhares de pessoas armadas – os CACs – que são plenamente identificadas à sua agenda política e ideológica. Já o lulismo, em si algo demasiadamente contraditório devido ao seu alto grau de acordos com a grande burguesia, necessitou afundar ainda mais na composição de alianças esdrúxulas para alcançar seus intentos, como assentar Geraldo Alckmin na cadeira de vice-presidente, o mesmo que governando o estado de São Paulo foi o mandante de fortes afrontas aos direitos humanos, como a violenta desocupação de Pinheirinho ou a desmesurada repressão aos manifestantes de 2013. Já no segundo turno, associou-se a Simone Tebet, senadora ligada ao latifúndio e com um discurso tão raso quanto sua atuação parlamentar. Mas o nome que mais deveria provocar arrepios na militância petista é o do deputado André Janones, notório influenciador digital que lança mão de todos os artifícios comuns ao lodaçal que escorre das redes sociais quando se busca a todo custo por curtidas e compartilhamentos. Se Duda Mendonça foi responsável por, em eleições anteriores, rebaixar o debate político petista ao patamar do “marketing de produtos”, Janones o rebaixou ainda mais, levando-o ao patamar do “clickbait”.
Ou seja, o bolsonarismo saiu das eleições como uma máquina organizada e pronta para funcionar, ao passo que o lulismo terá que atuar como um equilibrista chinês (daqueles que fazem girar diversos pratos nas pontas de varetas), andando em uma corda-bamba durante uma ventania… e de olhos vendados. Também não podemos esquecer que a história tem demonstrado que os vice-presidentes brasileiros inserem-se em uma tradição de cotoveladas e rasteiras contra o mandatário, e ainda que Alckmin possa não ser um golpista de berço, o atual contexto político do país e o grau dos interesses em disputa podem levar à consecução de um golpe mesmo sem a deposição do presidente, apenas transferindo a gestão de fato para o vice. De qualquer forma, dada a idade de Lula e o fato de que Alckmin não entrou nessa para ser coadjuvante, é possível que o governo seja tocado com o petista assumindo algo como uma chefia de Estado enquanto o ex-tucano (mas sempre tucano) atue como um chefe de governo. Por fim, devemos considerar ainda um outro complicador: a fragorosa e inesperada derrota de Haddad para o governo de São Paulo fez com que o Partido dos Trabalhadores ficasse sem um substituto para Lula. Assim, nas eleições de 2026, considerando que o presidente eleito terá já seus 80 anos, e já tenha afirmado que não concorrerá à reeleição, provavelmente o seu partido tenha aberto os portões e estendido o tapete para a eleição de Alckmin. Se estivermos corretos, é certo que o vice buscará todo o protagonismo possível a partir de janeiro de 2023.
Claro que nada disso é uma certeza. Mas se considerarmos que a política de hoje é consequência das escolhas tomadas no passado, é possível antever os caminhos por onde as escolhas de hoje nos levarão no futuro próximo. Seja como for, um dos fatores que pode complicar esse cenário futuro será a possibilidade de Bolsonaro conseguir manter a coesão da rede que formou. Certamente, uma boa parte dela se desgarrará, pois são bolsonaristas de ocasião. Sem a força centrípeta do ex-capitão buscarão manter-se soltos e abertos para novas associações. Além disso, inevitavelmente, o novo governo petista se esforçará por minar a rede bolsonarista, oferecendo cargos e recursos a quem se dispuser a apoiá-lo ou, ao menos, não atrapalhá-lo. Outro desafio ao bolsonarismo será se realmente Bolsonaro terá força para continuar a ser seu líder, o aglutinador de todos os elementos que o formam, ou se haverá algum grau de disputa entre nomes como Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Nikolas Ferreira, talvez Tarcísio de Freitas ou outro sujeito que apareça para a política. Se isso ocorrer, haverá, portanto, disputas até que emerja uma nova liderança ou, mesmo, que essa rede se fragmente, ficando à deriva até que outra onda conservadora venha recolher seus cacos, como o próprio bolsonarismo se formou também a partir de cacos de experiências fascistas anteriores, como abordamos no artigo As ninhadas do rancor e do ódio publicado neste mesmo portal, em 30/3.
A manutenção de Bolsonaro como o aglutinador dessa rede passa por se manter estruturado para tal, e aí o convite feito por Valdemar Costa Neto tem uma importância capital. E isso nos força a observar uma terceira dimensão de nossa abordagem, que é a do jogo partidário. É notório que os partidos estão em um constante campeonato em que os principais troféus são os gabinetes e as verbas públicas. Mesmo alguns dos principais partidos de esquerda colocam os esforços pelos mandatos na centralidade de suas estratégias, pois dependem deles para garantir recursos necessários para se manterem em atividade. Não há problema algum no fato de existir trinta e dois partidos no país, mas sim que quase nenhum deles tenha uma formulação política própria e ao menos um pequeno grupo de adeptos que acredite nela, e sim que sirvam como instrumento de negociação nas sombras com os governos de momento. Essa é a lógica que o filósofo político Marcos Nobre chama de peemedebismo, apresentado em seu livro O imobilismo em movimento. O Partido Liberal é um desses instrumentos e Costa Neto, seu presidente, é um dos mais hábeis negociadores políticos do Brasil. Isso posto, é certo dizer que Costa Neto e seu PL são um dos maiores vencedores dessas eleições. Graças ao ingresso de Bolsonaro no partido e por ter concorrido às eleições como seu candidato, o Partido Liberal se tornou o maior partido da Câmara Federal, com 99 deputados, 31 a mais que o Partido dos Trabalhadores, a segunda maior bancada. Se Bolsonaro tivesse vencido o pleito, o PL teria duas cabeças, o presidente da República e o presidente do partido, duas forças interdependentes que se equilibrariam sobre uma mesma bancada. Mas ante a derrota eleitoral, a associação ganha novas feições: Costa Neto sabe que depende de Bolsonaro para manter a coesão do partido, para não correr o risco de enfraquecimento que viveu Luciano Bivar, mandatário do antigo partido de Bolsonaro, o PSL, quando o presidente deixou a sigla. Mas Bolsonaro está, agora, tutelado por Costa Neto, é dependente de sua estrutura partidária para se manter em atividade, precisa que ele seja leal, que não busque outras alianças, que não caia em cantos de sereias, enfim, que assuma um compromisso de longo prazo, o que, na política nacional, é quase um casamento tão perfeito quanto improvável.
Por fim, agora vamos observar a última camada dessa análise, que é a luta de classes. Já há tempos, dados os rebaixamentos vividos pelos partidos de esquerda no Brasil com suas ilusões, desvios e oportunismos, a classe trabalhadora só participa da luta de classes apanhando, nunca batendo: não tem praticamente nenhum protagonismo na atualidade dessa história. O grosso desse embate, atualmente, é disputado agressivamente entre a grande burguesia e a pequena burguesia.
Quando chegamos às eleições de 2018, o Brasil estava em brasa viva. Vivíamos um emaranhado político complexo que envolvia desde os impactos dos tensionamentos geopolíticos até as disputas pelo butim do golpe de 2014, e foi nesse contexto de crise que emergiu a figura de Bolsonaro. O então deputado federal pelo Rio de Janeiro acabou surfando naquela onda, tornando-se um aglutinador de grupos diversos e distópicos, como olavistas, milenaristas, líderes neopentecostais, militares, milicianos etc. Esse aglomerado acabou conseguindo despontar como força política, e passou a agregar alguns setores mais sofisticados, como lavajatistas, funcionários públicos de altos cargos (como o judiciário), setores mais abastados da pequena burguesia etc. E assim, esse verdadeiro exército de Brancaleone se tornou viável eleitoralmente, ao passo em que o avião das candidaturas da grande burguesia – Alckmin e Meirelles – não conseguia levantar voo. Foi por isso que a burguesia acabou por abraçar, desconfiadamente, a candidatura de Bolsonaro entoando discursos como “tudo para tirar o PT”, e “se não for bom, do jeito que tiramos o PT vamos tirar o Bolsonaro”. Foi por isso que, de um momento para outro, os grandes meios de comunicação, a FIESP, a FEBRABAN e outras entidades e instituições da grande burguesia agarraram-se ao bolsonarismo, conduzindo como um foguete Bolsonaro ao Palácio do Planalto.
Todavia, depois de eleito, Bolsonaro não se subordinou por completo à grande burguesia: apesar de atender às suas principais demandas, o presidente não abriu mão dos interesses de sua base de apoio, o que provocou grandes instabilidades, o que é péssimo para o mercado. Além disso, a péssima gestão da pandemia de covid-19, suas insuficiências políticas e seus problemas ideológicos, fizeram com que, por fim, os principais setores da grande burguesia o abandonassem. Quando Lula se tornou, novamente, o candidato mais viável para a disputa presidencial, a burguesia passou a apoiá-lo, mas impondo algumas condições inegociáveis e que foram muito bem verbalizadas pelo âncora do jornal da Globo, William Bonner, na sabatina realizada em 25 de agosto. Na ocasião, Bonner perguntou enfaticamente se o candidato petista se comprometia a manter afastados de seu governo os setores “radicais” de seu partido. Compromisso semelhante foi exigido pelo âncora do programa WW, William Waack, da CNN Brasil, na sabatina realizada em 17 de setembro. Lula, ao que parece, acabou cedendo a essas imposições, e se tornou o candidato da burguesia contra o bolsonarismo. Isso significa que a burguesia mudou? De forma alguma, mas sim que o lulismo foi esvaziado de qualquer resto de “esquerdismo” que ainda poderia conter em suas entranhas, e, por isso, pode ser agora o instrumento de pacificação do mercado. Desde a redemocratização, os setores mais avançados da grande burguesia brasileira sempre tiveram problemas para se tornar diretamente viáveis eleitoralmente, utilizando de toda sorte de aventureiros ou parceiros da pequena burguesia esclarecida para representá-los politicamente; Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso são, respectivamente, exemplos disso. Bolsonaro e Lula foram, aos seus tempos, frutos dessa situação. Mas, desta vez, o governo Lula estará muito mais comprometido com a burguesia, muito mais do que esteve em seus governos anteriores. Isso significa que a vitória burguesa é mais significativa agora do que fora anteriormente.
Isso tudo apresentado, passamos agora às nossas conclusões. O bolsonarismo é, ao nosso ver, uma expressão da forma-fascismo, assunto que já abordamos neste portal anteriormente, no já citado artigo As ninhadas do rancor e do ódio, e foi superado eleitoralmente em 2022. Mas está longe de ser vencido. Como qualquer experiência fascista, sua energia está na mobilização constante de amplos setores populares e da pequena burguesia, bem como de setores, mesmo que pequenos, da grande burguesia. Os analistas políticos erraram muito com Bolsonaro: em 2017, quando tinha não mais que 6% de intenções de votos, diziam que ele nunca chegaria ao segundo turno. Quando chegou, falaram que era impossível vencer a transferência de votos de Lula para Haddad. Deu no que deu. Agora, em 2022, diziam que ele não teria mais do que os votos dos cerca de 25% de brasileiros “descompensados” que aceitam acriticamente o que vociferava. Foi para o segundo turno com bem mais do que 25% dos votos válidos. E no segundo turno perdeu por apenas um pouco mais de 2 milhões de votos, deixando como legado um país quase dividido ao meio. A sua sobrevivência política dependerá exclusivamente da sua capacidade de mobilização a longo prazo. Mas por tudo que tem acontecido até agora, parece quase certo que a sombra fascista do bolsonarismo continuará a pairar sobre o Brasil por muito tempo ainda.