Segundo o cientista político, é preciso compreender “o conjunto de valores e motivações” que leva brasileiros a aderirem ao bolsonarismo
As reações ao longo da primeira semana após o segundo turno das eleições presidenciais lançam um desafio para os intelectuais e analistas políticos no sentido de compreender a mentalidade dos brasileiros, em especial aqueles que participaram ou apoiaram os protestos por “liberdade” e “intervenção militar” após a vitória de Lula.
De acordo com o cientista político Maurício Santoro Rocha, apesar de as manifestações da semana passada estarem se diluindo, elas representam “incógnitas” sobre o perfil dos brasileiros, que mudou ao longo dos últimos 30 anos. “O que me impressionou nas manifestações foi o tamanho: a quantidade de pessoas que participaram, a quantidade de estados em que elas ocorreram e a radicalização dos militantes. Eu entendo a racionalidade de um ativista que votou em Bolsonaro e não aceita a eleição de Lula por causa dos casos de corrupção que aconteceram no governo petista. Mas não consigo compreender alguém que tem essa rejeição ao Lula, acreditando que ele vai implementar o comunismo no Brasil ou vai fechar igrejas e perseguir cristãos. Isso é uma realidade paralela que não tem nenhum ponto em comum com aquilo que foram os oito anos do governo do Lula ou os treze anos do governo do PT. (…) O que aconteceu no Brasil? Como se criou essa mentalidade? Como se formou esse tipo de visão de mundo? O que explica isso?”, questiona.
As manifestações, observa Santoro, também indicam que possivelmente “a oposição ao governo Lula será muito bem-organizada, com poder, com influência, com capacidade de ir para a rua, de pautar um debate via redes sociais. Essa vai ser uma experiência nova porque nunca tivemos isso no Brasil. Na década de 1960, houve uma mobilização muito forte da direita pré-golpe militar, mas, depois de 1964, a direita saiu das ruas. Agora é diferente. Temos uma direita muito popular, como nunca tivemos antes. Como lidar com isso é algo que será um desafio para Lula e os políticos profissionais”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Santoro comenta os principais desafios do novo governo à luz dos dilemas atuais e dos dois mandatos anteriores. O principal deles, assinala, será econômico porque “há uma divergência grande entre as várias forças que apoiaram Lula, principalmente na questão dos gastos públicos”. Já as áreas social e ambiental têm “potencial para ser um grande marco no governo. (…) Não é por acaso que a estreia da diplomacia de Lula vai ser na COP27, que é uma situação inédita”, acrescenta.
Maurício Santoro Rocha é doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ. Leciona no Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio Janeiro – UERJ, onde integra a cátedra Sergio Vieira de Mello, parceria da instituição com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR.
Confira a entrevista.
IHU – Como avalia o resultado das eleições deste ano? O que ele revela sobre o Brasil?
Maurício Santoro Rocha – O primeiro fato que observo desta eleição é que foi a mais disputada e polarizada desde a redemocratização. O país nunca esteve, ao longo dos últimos 35 anos, tão fragmentado e dividido como agora. Digo isso não só pela diferença muito pequena dos votos entre Lula e Bolsonaro, mas também pelo modo como a opção eleitoral refletiu classes sociais e região geográfica. Lula só ganhou em uma região, o Nordeste. Bolsonaro ganhou não só nas regiões, mas entre faixas de renda, basicamente entre a classe média e a elite, ainda que existam, claro, matizes. O Sudeste foi muito disputado, a cidade de São Paulo foi um bastião de Lula e ele também ganhou com uma pequena margem em Minas Gerais. Mas mesmo com essas nuances, foi uma eleição muito fragmentada, de uma maneira que não tínhamos visto antes. Em 2002, quando eleito presidente pela primeira vez, Lula ganhou no Brasil inteiro. Da mesma forma, quando Fernando Henrique [Cardoso] foi eleito, nos anos 1990, ele ganhou no país inteiro. Então, estamos vivendo um cenário novo e não sabemos ainda direito como conviver em meio a essas diferenças.
Composição do Congresso
A eleição do Congresso demonstra menos surpresas. Ele é, de fato, bastante conservador, mas o Congresso brasileiro sempre foi conservador, não só depois da redemocratização, mas também antes, na primeira experiência democrática, entre 1946 e 1964, em que havia o contraste entre presidentes mais reformistas e o legislativo mais conservador. Depois da redemocratização, o presidente tem muito mais poderes do que tinha nas décadas de 1950 e 1960. Mas isso não será um grande problema para Lula, porque ele já governou antes e sabe como fazer para negociar os vários tipos de acordos necessários.
A novidade desta eleição é que o Senado está mais ideológico. A Câmara dos Deputados é conservadora, mas dentro de um padrão que estamos acostumados, com o centrão e uma direita mais pragmática, que vão fazer uma série de acordos, como sempre fizeram. O Senado é diferente: há um grupo muito forte com uma ideologia conservadora – para não dizer extremista em alguns casos – e isso pode significar um problema maior para o presidente Lula.
IHU – A que atribui a fragmentação política e social demonstrada na eleição presidencial?
Maurício Santoro Rocha – Esse é um fenômeno global e, embora a vitória tenha sido apertada para Lula, as forças progressistas pró-democracia brasileira têm muito a celebrar com essa vitória porque conseguiram, no Brasil, algo que, em países como Hungria, Turquia e Rússia, foi impossível, que é derrotar um governo autoritário nas urnas e derrotá-lo no final do primeiro mandato. Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, veríamos, com certeza, um aprofundamento da degradação da democracia brasileira e uma fragilização das instituições democráticas, a começar pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que teria sido o primeiro alvo no segundo mandato de Bolsonaro. Então, foi um feito notável o que a coligação liderada por Lula conseguiu. Comparo esta coligação ao papel que Tancredo Neves teve nos anos 1980, ao liderar a transição brasileira para a democracia. Não foi pouca coisa. A frente ampla que Lula montou nas eleições juntou praticamente toda a esquerda, grupos expressivos entre os liberais e entre a centro-direita. Foi realmente algo muito expressivo.
Bolsonarismo
Em contraste, Bolsonaro basicamente articulou uma série de movimentos da direita ou das novas direitas brasileiras, sem fazer uma abertura para setores mais moderados. Mas o que impressiona é ver que, só com essas forças conservadoras, ele obteve 49% dos votos. Isso é muita coisa e nos mostra não só a divisão do país, mas a existência de uma direita que tem raízes sociais muito profundas no Brasil, que está bastante radicalizada e que, provavelmente, ficará em parte do cenário político por muitos anos.
Quando Bolsonaro foi eleito presidente em 2018, minha grande dúvida era se aquele era um fenômeno passageiro, reflexo de um momento que estávamos vivendo, muito carregado de antipolítica, ou se Bolsonaro seria capaz de construir um movimento político mais duradouro. Hoje, depois de quatro anos, dá para ver que ele realmente conseguiu construir esse movimento. Ele não foi simplesmente um acidente da história, como foram, em contraste, Fernando Collor [de Mello] ou Jânio Quadros. Ele ficará na cena política algum tempo e isto independe da figura dele em particular. Quando falo em Bolsonaro, falo de todo esse grupo político que ele representa e para quem ele conseguiu se tornar um porta-voz e uma liderança.
IHU – Nesse sentido, como interpreta os movimentos da primeira semana após as eleições: as manifestações de grupos bolsonaristas, a demora de Bolsonaro em se pronunciar após o resultado das urnas e o conteúdo do próprio discurso?
Maurício Santoro Rocha – Todos nós imaginávamos que haveria algum tipo de resistência a reconhecer o resultado das eleições no caso da derrota de Bolsonaro. Então, não me surpreende que tenham acontecido manifestações por conta disso, mas elas aconteceram de uma maneira que eu não esperava. Acreditava que seria uma reação muito mais liderada pelo próprio Bolsonaro, à semelhança do que Trump fez nos EUA, mas não foi isso que aconteceu.
Para além de qualquer cálculo político, a impressão que Bolsonaro me deu nesses primeiros dias foi de alguém em colapso psicológico, alguém que realmente não esperava perder. Foi a primeira eleição que ele perdeu. Ele estava acostumado, desde a década de 1980, a só vencer as eleições. Ele nunca tinha passado por essa experiência de derrota eleitoral, e isso é um choque para qualquer político, ainda mais para alguém como ele que, depois de quatro anos como presidente, estava se sentindo quase onipotente.
É assim que encaro o silêncio dele, que até agora não foi interrompido para além daquele pronunciamento brevíssimo de dois minutos, no qual não reconheceu explicitamente a derrota, mas, ao mesmo tempo, a equipe de transição já foi nomeada. Houve o reconhecimento da eleição por várias autoridades, do vice-presidente ao Congresso. Então, existe uma máquina administrativa que está funcionando e isso é bom.
Manifestações
Mas de onde veio o movimento de contestação? Veio da base bolsonarista que agiu à revelia do presidente e de seus filhos. Não houve um chamado para que essas pessoas fossem para a rua e participassem dos protestos. Elas foram para as ruas de livre e espontânea vontade, por mecanismos de mobilização política que ainda não entendemos direito como funcionam, através das redes e aplicativos de mensagens. Existe alguma coisa ali funcionando e está dando certo do ponto de vista de levar as pessoas às ruas.
O que me impressionou nas manifestações foi o tamanho: a quantidade de pessoas que participaram, a quantidade de estados em que elas ocorreram e a radicalização dos militantes. Eu entendo a racionalidade de um ativista que votou em Bolsonaro e não aceita a eleição de Lula por causa dos casos de corrupção que aconteceram no governo petista. Mas não consigo compreender alguém que tem essa rejeição ao Lula, acreditando que ele vai implementar o comunismo no Brasil ou vai fechar igrejas e perseguir cristãos. Isso é uma realidade paralela que não tem nenhum ponto em comum com aquilo que foram os oito anos do governo de Lula ou os treze anos do governo do PT.
O que aconteceu no Brasil? Como se criou essa mentalidade? Como se formou esse tipo de visão de mundo? O que explica isso? Ainda estamos diante dessas incógnitas. A minha impressão inicial é que os protestos estão se diluindo, até porque eles foram tão radicalizados que acabaram virando uma piada. O grande símbolo disso é o patriota do caminhão, que foi a coisa mais inusitada que já vi em muitas décadas observando a política brasileira.
Mas foi muito significativo que os manifestantes tenham ido para as portas dos quartéis e tenham demandado algum tipo de ação dos militares, com as Forças Armadas ficando em silêncio e não dizendo nada. Esse silêncio foi importante também. Na França, as Forças Armadas eram descritas como a “grande muda”, aquela que não falava nada e, de fato, é assim que deve ser. O que aconteceu nos últimos anos, de generais indo a público e fazendo grandes declarações políticas, é uma demonstração de fragilidade da democracia e dos partidos. Então, as Forças Armadas fizeram, nos últimos dias, o que elas deveriam ter feito desde sempre, que é não falar nada.
Agora, é claro que assusta a quantidade de pessoas no Brasil querendo um golpe militar. Vimos cenas que pareciam de 1964. Lembrei muito uma frase do general Castelo Branco, que criticava os políticos que estavam sempre indo nos quartéis tentando provocar uma mobilização política dos militares. Ele os comparava às vivandeiras que, no século XIX, eram as mulheres que acompanhavam os exércitos como prostitutas e prestadoras de serviços. Fiquei observando essas manifestações populares e vendo como aquelas pessoas são as vivandeiras que estão aí, firmes e fortes, com escalas de mobilização muito grandes, envolvendo pessoas mais pobres, além da classe média e da elite. É um fenômeno para acompanharmos e tentarmos entender, mesmo que neste primeiro momento possa não ter gerado os resultados que aquelas pessoas esperavam.
IHU – Entre as palavras de ordem dos manifestantes destacam-se, de um lado, “liberdade” e, de outro, “intervenção militar”. Como compreende essas demandas em específico? O que elas significam e indicam sobre o imaginário dos manifestantes?
Maurício Santoro Rocha – A reivindicação pela liberdade é um fenômeno para tentarmos entender. É uma liberdade no sentido de não interferência do Estado nas suas vidas privadas. São pessoas que rejeitaram as quarentenas e mecanismos de isolamento social durante a pandemia e que agora têm rejeitado a tentativa de autoridade judiciária, em especial do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, de reprimir esse tipo de discurso que questiona a lisura das eleições e os discursos que espalham rumores sobre fraudes. Isso, para essas pessoas, é algo muito forte.
Existe um debate jurídico e filosófico sobre até onde vai essa liberdade e qual é a fronteira do que é um discurso aceitável politicamente em nome da liberdade de expressão e o que é um discurso de ódio que está tentando gerar uma instabilidade política. Claro que tudo isso é incompatível com a demanda por um golpe militar. É parte das contradições: essas pessoas dizem que estão vivendo uma ditadura do TSE e, ao mesmo tempo, pedem um golpe militar. Será que 1964 foi tão diferente assim? Acho que não. São contradições que acompanham esse tipo de mobilização política extremista.
IHU – Que dificuldades esse tipo de manifestação pode gerar para o novo governo? Como romper com a agenda do movimento bolsonarista para começar a rediscutir um projeto de país?
Maurício Santoro Rocha – Esse vai ser um dos grandes desafios de Lula neste terceiro mandato. Quando ele foi presidente pela primeira vez, a principal força de oposição foi o PSDB, um partido moderado, de centro-direita, que joga de acordo com as regras democráticas. O que temos hoje é algo muito diferente. A oposição a Lula será muito bem-organizada, com poder, com influência, com capacidade de ir para a rua, de pautar um debate via redes sociais. Essa vai ser uma experiência nova porque nunca tivemos isso no Brasil.
Na década de 1960, houve uma mobilização muito forte da direita pré-golpe militar, mas, depois de 1964, a direita saiu das ruas. Agora é diferente. Temos uma direita muito popular, como nunca tivemos antes. Como lidar com isso é algo que será um desafio para Lula e os políticos profissionais.
Sou cientista político por formação, mas tenho dito aos meus alunos e colegas que a ciência política só pode nos ajudar a compreender um pequeno pedaço dessa nova realidade brasileira. Meu treinamento profissional foi voltado para entender as instituições políticas, os partidos, o Congresso, os sindicatos, mas o que temos hoje é uma coisa diferente e, não por acaso, os melhores estudos sobre a política brasileira contemporânea estão sendo feitos por antropólogos e sociólogos porque, no fundo, o que temos que entender agora é muito mais o conjunto de valores e motivações que estão levando as pessoas a agirem dessa maneira. Nós, cientistas políticos, não estamos conseguindo lidar bem com isso. Mas antropólogos e sociólogos estão fazendo estudos mais interessantes sobre o bolsonarismo.
Precisamos entender o que passa na mentalidade das pessoas que estão indo para a rua enroladas na bandeira nacional, com a camisa da Seleção. Parece quase uma fantasia de patriota, uma ideia fantasiada do que é o Brasil e o nacionalismo. O que está passando na cabeça dessas pessoas, como elas pensam a relação delas com os partidos, com as eleições? Não temos uma resposta pronta. O que posso ver, fazendo uma comparação internacional, é que esse não é um fenômeno só do Brasil. Está acontecendo em vários países e, talvez, o melhor espelho, hoje, para a política brasileira seja os EUA, até mais do que outros países da América Latina.
A Argentina e o Uruguai são países que têm uma política muito mais de classe média, laica, diferente do que é o Brasil hoje. Concedi entrevistas para a imprensa latino-americana e os argentinos, uruguaios e peruanos olham para o Brasil com muito medo, impressionados com a questão dos evangélicos e das armas, que é algo que eles não têm nos seus países, mas têm medo de que o Brasil possa ser um modelo para as direitas em suas nações.
IHU – Conversando com bolsonaristas, é possível perceber que o slogan utilizado pelo presidente em torno das noções “Deus, pátria e família”, embora seja bastante difuso e instrumental, mobiliza setores da sociedade que o associam diretamente a uma recusa da esquerda, como se ela representasse uma oposição a todas essas questões. O que isso revela, de um lado, sobre a própria crise da esquerda e seus desafios na formulação de políticas públicas no sentido de se reaproximar dessa parcela do eleitorado brasileiro e, de outro lado, sobre o próprio crescimento da direita em setores populares?
Maurício Santoro Rocha – Esse é um fator importante e existe uma crítica legítima aos governos de esquerda no Brasil por questões como erros na política econômica ou por questões como a corrupção. Existe também uma crítica que, a meu ver, não está realmente fundada na realidade, de que vão fechar as igrejas e perseguir cristãos.
Mas por que esse discurso funcionou? Por que esse discurso conseguiu ter essa força toda? Isso vem, em grande medida, porque houve uma transformação social e religiosa muito grande no Brasil nos últimos anos. Quando o PT foi fundado, os evangélicos não eram nem 10% da população brasileira. O PT tem um vínculo muito forte com a Igreja católica e os movimentos católicos de base. Hoje, os evangélicos são 1/3 do país e estão caminhando para ser, talvez, a maioria em alguns anos.
O Brasil mudou muito e de uma maneira que ainda não conseguimos compreender. Além disso, a esquerda de maneira geral, não só o PT, tem uma dificuldade de diálogo com esses novos movimentos sociais, como os evangélicos, e isso favorece a visão de que a esquerda persegue cristãos e a esquerda não valoriza a família.
Ocorreram mudanças sociais muito expressivas nos últimos anos, independentemente dos governos de esquerda, que são mudanças nos valores da sociedade brasileira: uma tolerância maior com a homossexualidade, com a aprovação, pelo STF, do casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo. São mudanças que estão acontecendo no Brasil inteiro e elas chocaram uma parte muito significativa dos brasileiros, que olham para essas mudanças e se sentem incomodados, perturbados.
A questão do aborto também é uma questão em que o Brasil está bem atrás de outros países do Cone Sul. Foi interessante ver, nos debates presidenciais, tanto Lula quanto Bolsonaro se esforçando para dizer, de maneira muito explícita, que são contra o aborto. O mesmo ocorre nos EUA, em que hoje a discussão sobre o aborto está muito mais complicada pelas decisões da Suprema Corte. Então, o Brasil mudou ao longo dos últimos 20, 30 anos, e essa mudança progressista provocou uma tensão muito grande.
A ascensão social que ocorreu no país também tem implicações. A universidade em que leciono foi a primeira do Brasil a ter ações afirmativas de cotas raciais. O perfil de aluno típico hoje é uma moça ou um rapaz da periferia, que é o primeiro da família a chegar à universidade. Essa realidade é muito diferente da universidade em que estudei nos anos 1990. Essas mudanças também provocaram reações adversas de pessoas que se sentem incomodadas e querem o retorno a uma sociedade que elas consideravam mais tradicional, mais estável.
A visão de Brasil dos apoiadores de Bolsonaro é aquela da década de 1970: o Brasil da pátria grande, de uma ditadura militar desenvolvimentista, onde supostamente havia mais segurança pública e um modelo de família mais estável. Isso está presente no imaginário, sobretudo dos militantes mais velhos que eram crianças no período da ditadura e ficaram muito marcados com aquele tipo de sociabilidade, de visão de mundo, da aula de educação moral e cívica. Eu fui estudante nesse período e essa é uma certa experiência que compartilho com esse grupo, ainda que eu tenha uma visão muito diferente do que foi aquele período. Talvez as pessoas estejam buscando segurança e estabilidade diante de um país que mudou muito, para o bem ou para o mal, nos últimos 30 anos.
IHU – Como interpreta a declaração do presidente eleito Lula de que o novo governo não será um governo do PT, mas de uma frente ampla? O que isso significa e quais serão os desafios dessa frente ampla, principalmente em relação às pautas social, ambiental e econômica?
Maurício Santoro Rocha – A grande diferença desta vitória de Lula em relação às vitórias anteriores, em 2002 e 2006, é porque, no passado, elas foram basicamente vitórias do PT ou da esquerda em geral. Desta vez, foi algo diferente: Lula conseguiu construir uma frente ampla que juntou, no segundo turno, no mesmo palanque, uns oito candidatos à presidência de governos anteriores. Ali estavam toda a esquerda, o PSDB e o MDB. Tinha, no mesmo palanque, figuras como Henrique Meirelles, Simone Tebet, Marina Silva, Guilherme Boulos, ou seja, uma diversidade política muito grande como não tinha no Brasil desde Tancredo Neves, com a frente ampla pelas Diretas Já e pela democracia. Isso é algo impressionante e foi o ponto mais forte do segundo turno da campanha de Lula.
A frente ampla tinha um objetivo comum que era derrotar Bolsonaro e preservar a democracia. Agora vem a fase mais complicada: como essa turma vai trabalhar junto? Como vão chegar a costuras e acordos para ter uma política econômica que seja razoavelmente consensual entre todos estes grupos? Será um desafio político, mas é algo para o qual Lula está preparado, dada sua trajetória de dois mandatos presidenciais. Ele já fez isso muitas vezes.
Ao mesmo tempo existem novos consensos na sociedade brasileira, pelo menos entre o centro e os progressistas que apoiaram Lula, por exemplo, na questão ambiental. Sem dúvida, o meio ambiente vai ter, no governo Lula, uma importância muito maior do que teve nos dois primeiros porque o mundo mudou e o Brasil mudou. O tema da mudança climática e do aquecimento global tem, hoje, uma relevância que é infinitamente mais urgente do que era 20 anos atrás. Tem também uma importância maior desse tema junto ao eleitorado brasileiro, em especial aos mais jovens.
A reconciliação de Lula com Marina Silva também é importante e o apoio dela vem junto com o reforço da agenda ambiental. Não é por acaso que a estreia da diplomacia de Lula vai ser na COP27, que é uma situação inédita. Oficialmente, Lula vai como convidado do governador do Pará, mas, na prática, ele irá representar o Brasil, inclusive em uma conferência à qual o presidente Bolsonaro não vai. É algo que não tem precedente na história diplomática brasileira, mas é muito significativo para o país que o retorno do Brasil à cena global se dê em uma Conferência do Clima.
O que podemos esperar de Lula e do PT é que o tema ambiental vai vir junto com uma discussão social de combate às desigualdades e à pobreza. Essa é uma área que tem um potencial para ser um grande marco no governo.
As dificuldades virão na economia porque aí existe, de fato, uma divergência grande entre as várias forças que apoiaram Lula, principalmente na questão dos gastos públicos. Vai ser difícil resolver todas as questões porque a situação fiscal brasileira está complicada. Além disso, tem uma pressão inflacionária global por causa da pandemia e da guerra na Ucrânia. Então, a tarefa da política é tentar encontrar os consensos possíveis, os equilíbrios necessários e tocar adiante uma agenda de política pública.
Este é um momento histórico muito interessante para o Brasil. Talvez o país possa até ser um modelo para outros países e sociedades que estão tentando escapar da armadilha do autoritarismo que está presente no mundo todo. No meio desse caos, o Brasil conseguiu encontrar uma saída que nos dá, pelo menos, uma sobrevida de alguns anos para tentar pensar soluções para os problemas e dilemas e buscar reencontrar um caminho de estabilidade política, de crescimento econômico, com a redução da pobreza e das desigualdades, com uma agenda ambiental que foi reforçada e que gerou um pilar importante nas políticas públicas.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Maurício Santoro Rocha – Algo que me surpreendeu após as eleições foi a rapidez com que os líderes internacionais felicitaram Lula e começaram a convidá-lo para uma série de eventos e diálogos. Sabia que isso aconteceria, mas imaginava que seria algo mais gradual e nos primeiros meses do governo, mas foi algo que aconteceu alguns minutos depois da confirmação da vitória nas urnas. Quer dizer, havia um desejo muito grande dos parceiros diplomáticos tradicionais do Brasil em se reconectar com o país. Isso está acontecendo com os EUA, com a União Europeia, a América Latina e a China. Por razões diferentes, Bolsonaro se antagonizou com todos esses países.
Essa é uma carta muito importante para Lula e será fundamental se ele fizer o que disse que vai fazer, isto é, uma viagem internacional antes da posse para conversar com os principais parceiros brasileiros. Novamente, esse caso tem um paralelo com Tancredo Neves, que, depois de se eleger presidente, fez uma viagem internacional, buscando apoio dos principais parceiros diplomáticos brasileiros para a nossa redemocratização nos anos 1980. Alguma coisa nesse sentido também é importante fazer agora. Vamos precisar de cooperação internacional e apoio global, sobretudo para pensar projetos de desenvolvimento sustentável e iniciativas conjuntas de proteção da democracia. Vimos o quanto a pressão internacional foi importante para evitar qualquer tipo de aventura ideológica dos militares, porque sabiam que isso significaria o isolamento muito grande por parte do Brasil. Isso é algo que tem que continuar e será uma questão importante no governo Lula.
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Foto: Matheus Câmara da Silva