A ONU e o peso dos nossos mortos

No TaquiPraTi

O mundo atingiu a marca de 8 bilhões de pessoas, segundo projeção da ONU, cujas estimativas levam em conta que, em cada segundo, ocorrem três nascimentos no planeta. Dessa forma, a mídia de diferentes países comemorou a 8ª bilionésima criança nascida na madrugada de terça feira (15): Lucca Freire, em Porto Alegre (RS), Damian na República Dominicana, Vinice nas Filipinas e assim por diante. A soma dos vivos está feita. Mas, e os mortos, quantos dão adeus em cada segundo?

Fujo de números como o diabo da cruz ou o Coiso da verdade. Sou neófito nessa questão, não sei como os demógrafos calcularam, ignoro de que modo relacionaram taxas globais de fecundidade e de mortalidade de cada país. Desconfio, porém, que a ONU não subtraiu da cifra global os constantes assassinatos em comunidades pobres, nem as seis mortes recentes no Brasil: Gal Costa, Rolando Boldrin, Isabel do vôlei, além do escritor Ricardo Gontijo, no Rio e dos professores Raoni Lopes e Graça Barreto, em Manaus.

Será que a ONU contabiliza todo ser humano falecido somente como um a menos? Ou leva em conta a contribuição dada por cada um deles no campo da cultura, do esporte, do jornalismo, da política, do magistério? Se for assim, estamos longe de atingir os 8 bilhões. Em verdade, em verdade vos digo, às vezes um indivíduo vale por mil e, neste caso, a dor e a comoção causadas por tal morte deveria levar os demógrafos a abater da projeção não uma, mas milhares de pessoas. Como avaliar o peso dos nossos mortos?

Posso fazer conjecturas sobre dois deles com quem convivi: o jornalista Ricardo Gontijo, velado e cremado no Cemitério do Caju (08/11) e Graça Barreto, docente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), companheira fundadora do PT, militante da Associação de Docentes (ADUA) e da Associação de Professores do Amazonas (APPAM), sepultada no Cemitério de Iranduba (14/11).

Cavaleiro das luzes

Convivi com Gontijo por um tempo curto, mas inesquecível. Eu era “foca” inexperiente do jornal O SOL, que iniciou como suplemento cultural do Jornal dos Sports e depois passou a ter circulação independente. Ele assumiu a editoria política denominada “Problemas Brasileiros”, no lugar de Ronald de Carvalho, um amazonense radicado no Rio. Repórter dessa editoria, fui aprendendo com Gontijo, na prática, o que é notícia, como fazer entrevista, o que é um texto jornalístico.

Isso foi em 1967, ano em que no Campeonato Carioca, o nosso Vasco ganhou de 4 x 0 do Flamengo (1º turno) e 3 x 0 (2º turno), o que seria jubilosa manchete em seis colunas se Gontijo fosse editor de esportes. A gente brincava que ele, porém, daria apenas uma notinha nas páginas internas para a goleada de 5 x 0 do Palmeiras sobre o Vasco no IX Campeonato Brasileiro de Futebol naquele mesmo ano.

Gontijo não teve tempo para comemorar a subida do Vasco para a Primeira Divisão, embora, ainda lúcido, celebrou a vitória do Lula – escreveu o jornalista Álvaro Caldas, que conviveu com ele dentro e fora das redações e noticiou assim a morte do amigo, “seguramente um dos melhores repórteres de sua geração”:

– Cavaleiro das luzes, passageiro das redações, repórter apaixonado pelos sons e as emoções das ruas, cético e sempre sobrecarregado de dúvidas, texto primoroso de um escritor assombrado com suas próprias descobertas, morreu Ricardo Gontijo, mineiro, aquariano, 78 anos. Não é do meu conhecimento o atestado de óbito, mas foram causas diversas que vieram se acumulando, em especial durante e após a Covid-19: incertezas, malvadezas, solidão, certo despreparo para a vida, quedas e até um câncer.

Nós nos encontramos pela última vez em 2005 durante a filmagem do documentário O Sol – Caminhando contra o Vento, de Tetê Moraes e Martha Alencar. “De olhar terno e sorriso malicioso, fidalgo gentil, de fina ironia”, ele nos legou romances e livros-reportagens, entre eles o autobiográfico Prisioneiro do círculo, Algumas lembranças, A correnteza, sem vergonha da Utopia Transamazônica. Quantos leitores e admiradores de Gontijo, que deixa saudades, deveriam ser diminuídos dos 8 bilhões da ONU?

Pau da barraca

Quem também deixa saudades é Maria das Graças de Carvalho Barreto, com quem convivi mais de perto por vários anos. A última vez que a vi foi no Curso de Licenciatura Intercultural em Pedagogia, da UEA, que ela coordenou. A seu convite, ministrei aulas de História da Amazônia, em 2010, num projeto pioneiro, que atingiu simultaneamente mais de 400 localidades do Amazonas.

A coisa funcionou assim. As aulas eram dadas de uma plataforma no bairro do Japiim para 2615 alunos, dos quais 745 indígenas, espalhados por salas equipadas com hardwares, localizadas em 52 municípios. Eles ouviam e viam o professor em um telão e realizavam as atividades com ajuda presencial de monitores, que orientavam os alunos e articulavam o conteúdo com a temática local, orientando a execução dos trabalhos.

Enquanto a gente dava aula, um telão ia sinalizando em tempo real a reação dos alunos, que redigiam textos com perguntas, observações, dúvidas. No meio da aula, por exemplo, um telão na minha frente registrou: “O pessoal de Barcelos não entendeu bem sua explicação sobre a ‘guerra justa’ contra os índios”. Dessa forma, era possível refazer o discurso. Para o professor, equivale a trocar o pneu do carro em movimento.

Este curso de Pedagogia Intercultural Indígena (PROIND) idealizado e coordenado por Graça Barreto ampliou os espaços do uso social das línguas indígenas. Quando dei aula lá na Plataforma, sentados a meu lado, quatro ou cinco índios resumiam o conteúdo em suas respectivas línguas para melhor compreensão dos alunos indígenas. Dessa forma, os não indígenas tomavam contato com outras línguas.

Graça, que era brigona e não tinha papas na língua, lutou muito para o PROIND funcionar. Uma pró-reitora, que tentou obstaculizar o curso, foi chamada por ela de “cara de cachorro lambida”.  Se preciso, ela chutava o pau da barraca.

Destruindo cristaleiras

Numa conversa com seu colega Luciano Cardenes, Graça lhe contou que quando criança, se sentindo injustiçada, quebrou uma cristaleira e fugiu de casa andando descalça pelas ruas: “Era essa destruidora de cristaleiras que ressurgia quando via alguma criança sendo ameaçada ou em situação de violência. Lembro da cena em que disse a um certo adulto: se bater na criança, vou voar no teu pescoço”.

Ela voou mesmo em muitos pescoços, brigou com Deus e o mundo, Deus perdoou, mas o mundo nem sempre, na avaliação de Luciano:

– São muitas as histórias de seus desafetos. Alguns, entre os quais já estive incluso, foram alvo de injusto fogo amigo de sua parte. Acho até que entre tantas guerras, algumas pessoas foram atingidas injustamente. Algumas entenderam e outras não são obrigadas. Isso faz parte da vida. Vá em paz. Hoje estou na sala de aula, com quadro de giz, numa aldeia, lembrando de ti. Nosso tempo foi curto, mas foi intenso”.

Preocupada com a temática infantil, sua tese de doutorado, orientada por Marilene Correa, versou sobre “O Jardim das imagens. A infância e suas flautas sagradas”. Mas sua trajetória de lutas vem de longe, da sua atuação no Maranhão e no Pará, onde trabalhou na educação de base, alfabetizando camponeses, assim como na formação de professores e na luta sindical pela educação superior.

– “A graça da Graça era sua capacidade criativa e criadora de ver e viver no mundo de forma irreverente, alegre, despojada, sagaz, espirituosa, demasiadamente humana e solidária” – escreveu sua colega Eglê Wanzeler.

Que ela descanse em paz! Que com a ausência da Graça, a ONU subtraia pelo menos 2615 pessoas dos 8 bilhões projetados para a população do planeta. Ela não foi embora sozinha. Carregou um pedacinho de cada um de seus alunos, amigos e colegas e até mesmo de alguns eventuais desafetos.

P.S. – Graça Barreto foi lembrada nessa sexta-feira (18/11) na defesa de tese de Cilene de Miranda Pontes: Uma viagem pelas memórias de egressos do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, no Médio Solimões (AM). Banca: Lia Faria (orientadora – Uerj ) Anna Mignot (Uerj), José Bessa (Uerj) Lucinete Gadelha da Costa (UEA), Maria Angelica Coutinho (UFRRJ). Programa de Doutorado Interinstitucional (DINTER/UERJ/UEA).

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

oito − um =