Carta aos “patriotas”. Por Jean Pierre Chauvin

A paz de Cristo, a propriedade privada e a honra familiar estejam convosco

No A Terra é Redonda

“[…] nem os modernistas, nem o ISEB, nem os CPCs, nem o Cinema Novo, nem o Tropicalismo, nem a MPB de protesto conseguiram aniquilar a imagem verdeamarela, que se consolidou e brilha incólume naquela outra imagem, doravante apropriada pela contemporânea indústria do turismo: café, futebol e carnaval, made in Brazil” (Marilena Chaui, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, p. 36).

Patriotas! A paz de Cristo, a propriedade privada e a honra familiar estejam convosco.

Não me furto a vos elogiar pela persistência com que demonstrais vosso amor incondicional à nação. De 2013 para cá, percebo claramente que “o gigante acordou”. Como não nos emocionarmos, ao avistar o prédio da FIESP todo pintado com as cores da bandeira, durante as Jornadas de Junho? É inegável que a semente da liberdade deitou raízes em Orlando, o que comprova a coerência de vosso nacionalismo. De tão sólido, o sentimento cívico ultrapassou as fronteiras e se instalou ao sul da potência que mais defende a democracia-invasora e o valor universal do dinheiro-para-poucos.

Escrevo-vos porque reparei que alguns desocupados estão a criar cem memes por segundo, satirizando algumas ações heroicas que vós adotais, desde a apuração das urnas, no dia 30 de outubro d.C. De minha parte, aconselho que não vos aporrinheis. Proclamo que essa atitude é típica dos invejosos da banda de cá. No fundo, parte de nós adora as cores da bandeira e quer reivindicá-la para somente para tingi-la de vermelho.

Verdade seja dita: eu adoraria sentir a força do vento, enganchado no para-brisa de um caminhão.

Apreciaria, sobremodo, reunir-me a outros sujeitos fantasiados de verde-amarelo em praça pública, integrando a missão de convidar os extraterrestres a nos proteger da corrupção e do comunismo – este, sempre à nossa espreita. Infelizmente, como não pude me somar ao circo, digo, círculo que organizastes, agi sozinho. Da janela do oitavo andar, enviei sinais luminosos intermitentes para as estrelas, em apelo aos OVNIs (achei preferível me dirigir a eles, pois devem estar a menor distância da Terra que Deus). Não cronometrei a duração do evento; só estranhei a ausência de resposta sideral.

Ora, se Deus e os ETs são por nós, quem poderia estar contra? Foi esse o meu pensamento mais forte, debaixo da lua, mas acima do resto.  Outras reflexões que me ocorreram, enquanto lá estava: será possível reivindicar ordem em meio à desordem? Como assegurar a continuidade do churrasco à porta dos quartéis, quando parte dos patriotas são comerciantes (e dependem das vendas); quando alguns são assalariados (e precisam trabalhar); quando outros são empresários (e precisam fechar negócios)?

Patriotas, decerto notais que essas ressalvas consistem em pormenores. Longe de mim desrespeitar vossa sanha golpista; vossa cegueira para os desmandos e negligências do atual capitão; vossa hipocrisia, dentro e fora do matrimônio; vossa sonegação de impostos; vossa crença cega na falácia da meritocracia; vossa obsessão em se distinguir do povo; vossa postura refratária a quem não lê obras de autoajuda; vosso horror a quem pratica cidadania e exercita o pensamento crítico (sem contar os médicos e cientistas – os não negacionistas, claro esteja).

Face ao exposto, despeço-me de vós, incapaz que sou em alcançar vosso ufanismo em meio a miséria social, vossa simpatia aos regimes totalitários; vossa mania em supor que as cores da bandeira realmente representam os elementos da natureza, e não as cores das Casas de Bragança e Lorena.

Da terra dos neobandeirantes, no mês em que se celebra o golpe republicano de 1889, vosso sincero concidadão.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

Ilustração: O Joio e o Trigo (editada)

 

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