Projeto de lei que volta à pauta hoje discrimina mulheres vulneráveis, estimula abortos inseguros e mortalidade materna. Prevê a mórbida “bolsa estupro”. Bancada fundamentalista tentará aprová-lo no apagar das luzes do governo Bolsonaro
Por Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
O PL nº 478/2007, que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro, poderá entrar em votação hoje (07/dez) na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara Federal. Na semana passada, em sessão tumultuada, a bancada fundamentalista tentou forçar a votação do PL, ignorando o parecer contrário de parlamentares mulheres na Comissão.
O documento a seguir, que elenca 12 razões pelas quais o chamado “Estatuto do Nascituro” é prejudicial à saúde e aos Direitos Humanos das Mulheres é parte da Campanha Nem Presa Nem Morta por Aborto, iniciativa criada em agosto de 2018, por ocasião da audiência pública convocada pelo STF para discutir a ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] nº 442. A campanha mobiliza organizações e coletivos feministas que atuam pela garantia do direito ao aborto nos três casos garantidos por lei e para difundir informações sobre Justiça Reprodutiva.
Doze razões pelas quais o “Estatuto do Nascituro”, Projeto de Lei nº. 478/2007, é prejudicial à saúde e aos Direitos Humanos das Mulheres [1]
1. Amplia a criminalização do abortamento para as situações que hoje são permitidas por lei
Dificulta o acesso das mulheres ao aborto legal, já bastante limitado no Brasil, e pode ser ainda mais restringido caso este projeto de lei seja aprovado. Até as mulheres que têm o direito ao acesso ao aborto previsto em lei seriam criminalizadas, como nos casos de risco de vida e nos casos de estupro, ou nos casos, recentemente autorizados pelo Supremo Tribunal Federal, em que o feto sofre de anencefalia, anomalia grave incompatível com a vida extrauterina. O projeto obriga vítimas de estupro a suportar a gravidez resultante do crime, agravando sobremaneira seu quadro de estresse pós-traumático, o que põe em risco sua saúde mental. A situação é especialmente preocupante considerando o grande número de crianças e pré-adolescentes grávidas em decorrência de abuso sexual. Grande maioria destas, é vítima de abusos sexuais durante anos por parte de pais, padrastos ou outros familiares. O projeto obrigaria vítimas de pedofilia a suportar gestações que, além de traumáticas, são de alto risco para a saúde física e mental. É uma violação ao direito humano de não sofrer tratamento cruel, desumano ou degradante e equivalente à tortura.
2. Viola direito à igualdade de gênero
De acordo com o projeto de lei, as mulheres grávidas passam a ser consideradas como criminosas em potencial. Se uma mulher sofrer um abortamento espontâneo – 25% das gestantes podem sofrer abortamento espontâneo no início da gravidez – em uma situação extrema, pode ser alvo de uma investigação policial ou ser processada por ter violado o direito à vida do embrião.
3. Em especial, discrimina as mulheres em situação de maior vulnerabilidade
Mulheres de baixa renda, negras, com pouca escolaridade, jovens e com limitado acesso aos serviços de planejamento familiar seriam as mais afetadas. São essas mulheres que correm o maior risco de morrer ou sofrer complicações devido a abortos inseguros.
4. Aumenta as taxas de abortos inseguros e de mortalidade materna
O aborto inseguro é uma questão de Direitos Humanos das mulheres e questão de saúde pública no Brasil, onde anualmente quase trezentas mulheres morrem [2] e milhares sofrem sequelas devido a práticas clandestinas e não seguras. Está, portanto, na contramão da tendência de revisão ou ampliação das leis restritivas em relação ao aborto no mundo, como ocorreu recentemente na Argentina, Chile, Colômbia, México, Uruguai, Espanha, Portugal, Nova Zelândia [3].
As evidências têm demonstrado que a simples proibição do aborto em nada tem contribuído para diminuir sua prática, mas contribui para o risco de aborto inseguro e clandestino, e consequente risco de mortalidade materna. Mulheres vítimas de estupro também recorreriam a abortos inseguros, o que, além de ameaçar sua saúde e sua vida, poderia levá-las a ser processadas criminalmente, gerando grande estresse emocional a uma mulher já tremendamente traumatizada.
5. Viola os tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, que não estabelecem o direito à vida para fetos e embriões [4]
O projeto de lei confere proteção ao direito à vida do embrião em detrimento às realidades concretas e materiais vividas e enfrentadas por mulheres que possuem autonomia e são titulares de direitos constitucionais à saúde, à liberdade, à igualdade e à não discriminação. Viola os direitos fundamentais e invioláveis à vida e à saúde das mulheres ao dar ‘’prioridade absoluta’’ e ‘’proteção integral’’ ao embrião. Proíbe qualquer ato que ameace a continuidade da gravidez, mesmo que tal ato seja necessário para preservar a saúde ou a vida da mulher.
6. Os Direitos Constitucionais garantidos para as mulheres podem estar ameaçados, se for aprovado
Viola o princípio constitucional do Estado Laico. Os valores morais das religiões vigentes, além de diversos, não devem influir na vida sexual e reprodutiva privada das mulheres. Não existe consenso científico sobre quando começa a vida. Elaborar lei que diz que a vida começa na concepção é impor tal ideia, que tem sua origem em segmentos conservadores dogmáticos, sobre toda a população brasileira, violando a separação entre igreja e estado, e a liberdade religiosa dos que seguem outras doutrinas.
7. O projeto ainda prevê uma bolsa para as mulheres vítimas de estupro criarem seus filhos, porém esta bolsa só será viável se a mulher denunciar o estupro
É, portanto, ineficiente, pois se sabe que muitas mulheres não o denunciam por medo, vergonha, ou por conhecer o agressor. Mesmo quando houver a adoção, as mulheres ainda levarão adiante uma gravidez indesejada, sem que possam exercer a autonomia reprodutiva criando uma situação análoga à da tortura. Haveria aumento no número de recém-nascidos abandonados por mulheres sem condições emocionais de criá-los. O pagamento de pensão pelo estuprador à criança, fruto de seu crime, é perigoso, pois cria mecanismos que poderiam possibilitar que o criminoso rastreasse o paradeiro de sua vítima e de seu filho.
8. Implica em mais custos para o Estado
No Brasil, a partir de dados enviados ao STF em julho de 2018, o Ministério da Saúde informou que de 2008 a 2017 o SUS gastou R$ 486 milhões com internações por complicação por aborto(5). Se o projeto de lei for aprovado os custos aumentarão ainda mais, pois obriga o pagamento de pensão para as mulheres que engravidam por estupro. Além disso, os abortos inseguros tenderiam a aumentar.
9. Cria barreiras para o acesso à contracepção
O projeto de lei pode ser um obstáculo para o acesso a métodos contraceptivos, à anticoncepção de emergência, sob o argumento da proteção ao direito à vida do ovo, embrião ou feto.
10. O projeto de lei proibiria acesso à reprodução assistida e pesquisas com material embrionário
Sabe-se que o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas foi autorizado por decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2008. O STF decidiu que o direito à terapia com células-tronco integra o direito à saúde. O projeto, portanto, é inconstitucional, pois restringe tal direito, que é inviolável. A proteção jurídica da vida em gestação desde a concepção tem o potencial de afetar outros direitos reprodutivos: além do direito legal ao aborto seguro, e o direito à vida privada e familiar, o direito ao planejamento reprodutivo e o direito aos benefícios do progresso científico através do acesso as técnicas de reprodução assistida, especialmente a técnica de fertilização in vitro. A técnica de fertilização in vitro pressupõe a crio conservação de embriões, como possibilidade de sua transferência para implantação ou destruição antes de serem implantados, além da possibilidade de sua utilização para fins de pesquisa e fins terapêuticos.
11. A ciência não comprova o início da vida humana
Não é possível encontrar resposta para a questão do aborto na embriologia ou no desenvolvimento celular. As evidências científicas não fornecem respostas, seja na embriologia ou em outras especialidades de desenvolvimento celular, sobre o início da vida para efeitos de proteção de direitos. Não é possível concluir a partir do método científico o momento em que a vida humana alcançaria uma condição compatível com a disputa jurídica do início da vida para proteção. Afirmar que a vida se inicia desde a concepção é uma postura moral possível, mas que encontra obstáculos em fatos biológicos. Todos os limites propostos sobre o início da vida – fecundação, implantação, início da atividade cerebral etc – são marcados por dissensos científicos razoáveis. Se o que há em ciência sobre o conceito de vida são evidências neutras sobre atividade celular, essas não devem ser avaliadas isoladamente nem à luz de dogmas, mas sim a partir de uma compreensão ampla sobre os direitos humanos e a ordem constitucional.
12. Da proteção jurídica da vida humana
Uma das principais consequências da sua aprovação seria a de contrariar o ordenamento jurídico vigente ao atribuir direitos fundamentais ao embrião partindo de uma concepção equivocada de que o nascituro e o embrião humanos teriam o mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas. O STF no acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade número 3510 (que foi julgada improcedente e, portanto, considerou constitucional a pesquisa com células-tronco embrionárias), já se manifestou sobre a matéria.
Documentação fundamental
1) Proteção da Mulher – Jurisprudência do STF e bibliografia temática: Documento sistematizado pela Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal, em 2019, organiza por temas jurisprudência produzida pela Corte. O registro parte das manifestações dos ministros e dos argumentos apresentados em audiências públicas.
Destaque para:
- Célula tronco – liberdade de implantação dos embriões excedentes (pg 44);
- Aborto de feto anencéfalo (pg 46) todo o texto; em especial: Liberdade, dignidade, integridade e saúde da mulher – ponderação de valores no caso de gravidez de feto anencéfalo (pg 63);
- Criminalização da interrupção (pg 68);
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoTematica/anexo/Protecao_da_Mulher
2) Herramientas para la Protección de los Derechos Humanos: Sumario de Jurisprudencia – Salud y Derechos Reproductivos*. Por meio desta publicação, o CEJIL pretende lançar luz sobre a jurisprudência mais relevante em relação ao âmbito da saúde e direitos reprodutivos. A partir de uma compilação de decisões e sentenças da Corte e Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Corte Européia de Direitos Humanos, do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e do Comitê de Direitos Humanos que, direta ou indiretamente, contêm discussões ou interpretações jurídicas que contribuem para a sua defesa: https://cejil.org/publicaciones/sumarios-de-jurisprudencia- salud-y-derechos-reproductivos/
*Merece especial atenção a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o Caso Artavia Murillo y otros vs Costa Rica, sobre fecundação in vitro, cuja sentença foi emitida em 2012. O Caso está citado em outros documentos deste Dossiê: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_esp.pdf
3) Em 24 de junho de 2014 a Plataforma de Direitos Humanos – DHESCA Brasil, se manifestou sobre o PL 478/2007 junto ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, apresentando considerações fundamentadas, contrárias ao Estatuto do Nascituro: https://www.cfemea.org.br/images/stories/CCJ_Estatuto_Nascituro_FINAL.pdf
A Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil (CBB/OABRJ) emitiu o Parecer da comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil(OAB)–Seção do Estado do Rio de Janeiro acerca (da inconstitucionalidade) do Projeto de Lei nº478/2007, do seu substitutivo e dos seus apensos (2011). Disponível em: https://www.scribd.com/document/141632471/Parecer-Estatuto-do-Nascituro- Comissao-de-Bioetica-e-Biodireito-da-OAB-RJ-2011
4) No texto O nascituro enquanto ator: a agência do Projeto de Lei 478/2007, Ricardo José Braga Amaral de Brito historiciza e analisa o PL 478/2007, à luz do Parecer da CBB/OABRJ: https://revistas.ufrj.br/index.php/habitus/article/view/11425
5) La valoración de la vida, la subjetivación del embrión y el debate sobre el aborto: aportes desde una perspectiva crítica
José Manuel Morán Faúndes analisa criticamente a forma com a qual se propõe o debate ético e jurídico em torno do aborto, como um conflito de direitos entre o embrião e a mulher, mostrando os modos em que foi construída a figura do embrião, como um sujeito suscetível de valoração moral e proteção jurídica. Em particular, se discute a posição que assume o zigoto incontestavelmente como um sujeito moral, pelo fato de possuir um genoma distinto de seus progenitores, outorgando-lhe um estatuto jurídico equivalente ao das mulheres. Assim, se estabelece uma crítica em torno do modo como esta posição, por meio do uso de uma linguagem científica que se apresenta como objetiva, tendeu a tornar invisível as formas sociais e culturais que constroem a valoração da vida: https://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726-569X2014000200002
6) No artigo ¿Defensores de la vida? ¿De cuál “vida”? Un análisis genealógico de la noción de “vida” sostenida por la jerarquía católica contra el aborto, Faúndes e María Angélica Peñas Defago analizam a noção de “vida” defendida pelo discurso católico conservador contemporâneo em suas argumentações contra o aborto, reconstruindo suas principais fontes e discutindo criticamente suas posições centrais: https://www.scielo.br/j/sess/a/tKS9FLyBdBrYbkRN9MWFYpC/?lang=es
7) Maria José Rosado Nunes no texto O Tema do aborto na Igreja Católica: divergências silenciadas aborda os fundamentos do discurso oficial católico que argumenta em defesa da vida desde a concepção, e contraposição – também do campo religioso católico – que afirma a validade ética da decisão pelo aborto.
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200012
Notas
1. Beatriz Galli, Relatora Nacional da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil Plataforma Dhesca | Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil
2. Foram 2,1 milhões de mulheres internadas de 2008 a 2017 e ao menos 4.455 perderam a vida de 2.000 a 2016, conforme informado pelo Ministério da Saúde. Consultado em 22/02/2022.
3. O artigo “Aborto e legislação comparada”, de José Henrique Rodrigues Torres (Revista Ciência e Cultura, volume 64, abr/jun 2012) sistematiza a situação do direito ao aborto em diversos países, até a primeira década dos anos 2000. http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200017Consultado em 21/02/2022.
4. Comentário Geral Nº 36 ao Artigo 6º – Direito à vida (CCPR/C/GC/36) Treaty bodies Download (ohchr.org)
5.https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/sus-gasta-r-500-milhoes-com-complicacoes-por-aborto-em-uma- decada.shtml (consultado em 22/02/2022).