Hermengarda, a baratinada. Por Marilia Pacheco Fiorillo

Em sua viagem psicodélica pela Terra de Santa Cruz

No A Terra é Redonda

Minha amiga Hermengard von Niemand está passando uns dias aqui na terrinha. É alta, magra, se veste como tardo-hippie e curiosa a mais não poder. Aterrissou bem no dia da divulgação da carta dos economistas Edmar Bacha, Pedro Malan e Armínio Fraga, na qual os egrégios apoiadores de última hora passavam um pito preventivo no futuro governo sobre o tal estouro do teto anual em 200 bilhões.

Prussiana no porte e xereta de índole, ela me via (mais que ouvia, pois só fala uma meia dúzia de palavras em português) deblaterando sobre o absurdo ao telefone: ‘Mas o inominável gastou 800 bilhões nos quatro anos e ninguém piou, agora saem atirando por causa de 200”. Xereta, alegre e muquirana, ela pode ser preguiçosa com palavras, mas é bem esperta com números, porque veio pronta para comprinhas.

Me cutucava:“Achthundert Milliarden? Zweihunder? Oitocentos bilhões? Duzentos?

Desliguei o telefone e contei mais ou menos do que se tratava. Hermengarda (com o”a”, abrasileiramos o nome vetusto) não sabe nada de economia e menos ainda de Brasil, mas ficou intrigada. Na sua infalível cachola germânica, quatro vezes duzentos dava exatamente os tais oitocentos.

E aí começou minha dura, embora aprazível e frustrante, jornada para tentar explicar-lhe o inexplicável.

Natural de Berlim, minha hóspede não compreendia bulhufas do que eu me esforçava para esclarecer. Não fazia sentido. Parecia raciocínio de lunático. Puro piro. O que só aguçou ainda mais sua xeretice. Bisbilhotava sem parar, com aquelas perguntas simplórias e imperiosas, e a perplexidade natural de qualquer pessoa estrangeira aos atavismos brazucas.

Vale dizer que, além de aritmética, Hermengarda havia aprendido um tiquinho de lógica na escola, como a noção elementar de sofisma. Quando eu tentava me esgueirar pretextando que suas dúvidas remetiam a questões muito complexas, como a Teoria Mutante das Pedaladas ou a Lógica Reversa Paralógica da Geschäft (business is all), temas muito além de meu miserável cabedal, ela nem dava bola. Não desanimava. Piorava, até. Insistia: “Na und?” E daí?

Como uma discípula desavisada de Guilherme de Ockham, filósofo medieval franciscano que usava óculos às escondidas e escolheu a “navalha” como metáfora de raciocínio claro e satisfatório, Hermengarda acha que a explicação mais simples é a melhor. E não me dava trégua. E não me dava paz. Para tentar sair da sinuca de bico (pois um dia não bastava para que ela introjetasse coronelismo, enxada e gincana financeira), fiz uma maldade. Tergiversei. Aleguei que a língua portuguesa tem palavras intraduzíveis. Por exemplo, zum Beispiel, sofisma aqui não significa um argumento enganoso, mas uma malandragem deliberada e envernizada que cola como verdade eterna e universal.

Mas me saí mal. “Das ist dasselbe” saudade”? Não, Hermengarda, não é como saudade. É outra jabuticaba intraduzível, menos romântica e mais tóxica. Então ela quis que eu resumisse o conteúdo da carta. Afora a ausência do elementar 4 x 200=800, encasquetou com uma passagem: “Warum nobre anseio de responsabilidade social (sic carta)? Por que nobre, e não legítimo, urgente, premente, inalienável?

Sind sie Aristokraten“? quis saber sobre os signatários. “Genau“, concordei, os três são da nobreza, barões das finanças, haja vista o sotaque nobiliárquico deles, como na pronúncia da expressão partido-omnibus, ônibus é muito chinfrim. (Ah, escapei de entrar na longa e cansativa história do patrimonialismo nativo.)

Como ela veio de Kreuzberg e viveu os anos Angela Merkel, embora seja links, de esquerda, no dia seguinte se espantou ao saber que boa parte da esquerda brasileira é devota de Vladimir Putin a apoia a invasão da Ucrânia. Sim, boa parte da esquerda brazuca admira sem reservas Vladimir Vladimirovich, o cleptocrata envenenador de opositores. “Ist das möglich? Wahrheit oder Scherz?“. Mas é possível? Verdade ou está me gozando?

Verdade, Hermengarda, aqui uma parcela (da) Die Linke crê que as tropas brancaleônicas (e sádicas) que invadiram a Ucrânia ainda pertencem ao valoroso Exército Vermelho. E que a queda de Kyev seria uma reedição da heróica resistência de Stalingrado na II Guerra.

Aber… (agora ela franzia o cenho, ressabiada) der Kommunismus ist kaputt!” Ich verstehe nicht”. Mas…o comunismo acabou, já era, não estou entendendo nada!

Começou a me olhar torto. Não fosse meu empenho como anfitriã, e a comidinha caseira, acho que Hermengarda estava prestes a se mudar para o primeiro hotel da vizinhança, assustada com o que eu dizia e desconfiada de que sou uma mentirosa patológica que pode surtar a qualquer minuto.

Mas ficou. O Brasil é uma viagem psicodélica. E ela continua a perguntar, não se conforma, minha Hermengarda desentendida e baratinada.

Vai piorar. A cada dia virão mais notícias e fatos estrambóticos. E o orçamento secreto, então? Este é uma jabuticabeira em flor: intraduzível, inconcebível, indecifrável, insondável. Tenho de me preparar.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

quinze − 6 =