Rede D’or compra SulAmérica: a saúde financeirizada

Dois analistas veem a incorporação da seguradora pela gestora de hospitais e sua relação com o lucro recorde das empresas do setor. Como o Estado pode regular a saúde suplementar? O que isso tem a dizer ao SUS?

Por Gabriel Brito, no Outra Saúde

Na quarta-feira, 14/12, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) deu parecer definitivamente favorável à compra da seguradora de saúde SulAmérica pela Rede D’or, dona e gestora de hospitais, clínicas e laboratórios no país. Contestado pelos concorrentes do setor, o negócio havia sido fechado em junho e desde então era criticado. Após analisar o caso durante cerca de um mês, o órgão regulador deu sinal verde à transação. A Rede D’or já detinha 29,8% das ações da SulAmérica e comprou o restante por R$ 6,1 bilhões.

A argumentação central do CADE é de que o fato de a Rede D’or gerir hospitais e clínicas, enquanto a SulAmérica vende planos, caracteriza a chamada concentração vertical do setor (quando um grupo possui investimentos em serviços diferentes dentro de um mesmo ramo), dentro de uma lógica normal de mercado. “Essa operação claramente gera eficiência”, afirmou Gustavo de Lima, conselheiro do CADE, conforme publicado pelo jornal O Globo.

Outra Saúde ouviu especialistas sobre economia em saúde, que ofereceram explicações sobre o significado do processo e o que poderia haver de preocupante.

“Primeiro, vale registrar o ineditismo de ver uma seguradora tradicional, empresa do setor financeiro com atuação forte em seguro-saúde, passar a ser controlada por um grupo do setor de serviços na saúde. Os novos controladores revelam que o seu interesse pela compra está baseado na complementaridade de atuação dos dois grupos. Penso que pode ser também uma evidência do espalhamento do modus operandi da financeirização nas estratégias corporativas de empresas, cujo objetivo social declarado não se encaixa formalmente no setor financeiro, mas que, na prática, são geridos como se fossem empresas financeiras. É um binômio hospital/seguradora que vai ocupar um lugar de destaque em nosso sistema de saúde, especialmente no controle de leitos hospitalares”, falou o sanitarista José Sestelo, autor do livro Planos de Saúde e Dominância Financeira.

Já Carlos Ocké-Reis, economista do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), descreve o fato como um acontecimento encadeado a um processo mais abrangente. “Acompanhando a dinâmica da economia brasileira, a financeirização da saúde se acelerou nos últimos anos. A saúde puxa o ranking de fusões e aquisições e reúne as maiores operações de compra no Brasil, ganhando importância na Bolsa de Valores. Reúne ali mais de 20 empresas listadas e diversos BDRs (recibos de empresas negociadas no exterior). Há espaço para a abertura de capital de outras companhias (IPOs), uma vez que há investidores interessados na oferta pública inicial dos papéis da área, para incorporá-los em seus portfólios de investimento. Em fevereiro de 2021, a Revista Forbes noticiou que empresários brasileiros da saúde apresentaram resultados bastante positivos durante a pandemia”, explicou.

Quanto ao voto do conselheiro do CADE, há um realismo implacável em sua consideração para aprovar o negócio. Mas, no fim das contas, trata-se apenas de um movimento padrão do capitalismo, pouco importa se falamos de cervejarias, meios de comunicação ou serviços de saúde. “O aval das instâncias de regulação claramente coloca mais um tijolo no castelo dos oligopólios dotados de poder econômico e político cada vez maior no interior do nosso sistema de saúde”, resumiu Sestelo.

Ocké-Reis, por sua vez, oferece uma descrição da tendência do setor. “Esse processo favoreceu o surgimento de um padrão de competição, que se caracterizou por um intenso processo de concentração e centralização de capital, a partir de fusões e aquisições entre planos e seguros de saúde, hospitais privados e o setor da medicina diagnóstica, que acabou ampliando a verticalização do setor, no contexto da participação crescente de fundos financeiros internacionais”, disse o autor do livro SUS: o desafio de ser único (Ed. Fiocruz, 2012).

Dessa forma, resta saber quais serão as consequências para o setor de serviços em saúde, tanto da esfera pública como privada. Haverá piora no atendimento dos clientes das operadoras privadas? Teremos maior conflitividade entre ambos? O que isso significa para o SUS?

“Posto isto, na perspectiva de influenciar o debate sobre a agenda regulatória da ANS 2023-2025, precisamos discutir e refletir como avançar em pelo menos quatro questões: 1) como fortalecer o papel regulatório do Estado, garantindo a defesa do consumidor, a concorrência regulada e o interesse público; 2) como refrear a financeirização e a internacionalização, reduzindo os gastos das famílias, dos trabalhadores e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde; 3) como diminuir, eliminar ou focalizar a renúncia fiscal em saúde (subsídios), mitigando a socialização dos custos do mercado pelo Estado; 4) como enfrentar os lobbies que atuam a favor do mercado no Congresso Nacional e barrar a fragilização da pata estatal do Sistema Único de Saúde (SUS)”, enumerou Ocké-Reis.

“Como sanitarista, e diante da tragédia que foi a disputa por leitos hospitalares nos momentos mais críticos da pandemia, tenho que declarar que vejo com preocupação o cenário futuro, afinal leito hospitalar tem valor estratégico para assistência e, por princípio, não deve ser tratado como um ativo manipulável por empresas financeirizadas. Penso que é um risco para o conjunto da população e uma vantagem indevida para os controladores desses grupos”, criticou Sestelo.

No aspecto político, Paulo Capel Narvai, professor aposentado da Faculdade de Saúde Pública da USP e autor de SUS: uma reforma revolucionária, joga o olhar adiante e afirma que tal dinâmica apenas reforça a necessidade de fortalecimento do SUS. “Desde a criação do SUS, estamos correndo atrás dessa concentração, sem conseguir interrompê-la. Frequentemente, ficamos na periferia dos problemas envolvidos com a atuação do setor privado na saúde, atendo-nos ao dimensionamento do setor, às normas e aspectos legais do ponto de vista econômico. Tudo relevante, decerto, mas insuficiente, pois impotente para conter o processo. Para sair da periferia e ir ao centro do problema, precisamos dar um jeito de colocar o SUS no centro das decisões sobre a saúde suplementar”, analisou.

 

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