Despejar 40 mil famílias na beira da ferrovia? Por frei Gilvander Moreira

Nos primeiros dias do ano de 2023, eu poderia escrever sobre o renascimento da esperança com a posse do presidente Lula e com o fim do desgoverno do inominável “irresponsável, desumano, criminoso, genocida, negacionista e obscurantista”. Poderia escrever sobre os destaques da posse do Lula, entre os quais o Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto ao lado de pessoas representando o povo brasileiro injustiçado: o ancião cacique Raoni Metuktire; o Francisco, menino negro; Aline, mulher negra, 3ª geração de catadora de materiais recicláveis; um jovem com deficiência por paralisia cerebral; um trabalhador metalúrgico; Jucimara, cozinheira; Murilo, professor; Flávio, artesão e uma cachorrinha que acampou na vigília ao lado da sede da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula ficou injustamente preso 580 dias. Lula recebendo a faixa presidencial pelas mãos do povo injustiçado: momento histórico, emocionante, pleno de amor, de esperança!

Eu poderia ainda escrever desejando que 2023 seja inspirador! Que floresça em nós o que temos de melhor para fazermos acontecer, verdadeiramente, um feliz ano novo, que sejamos pessoas humanas – justas, éticas, amorosas, solidárias, responsáveis socialmente, ambientalmente e geracionalmente. Que estejamos irmanados/as nas lutas necessárias para reconstruirmos o Brasil com justiça econômica, solidariedade social, sustentabilidade ambiental, respeito à imensa diversidade cultural e religiosa! Que a luz divina e os espíritos ancestrais nos guiem!  Poderia ainda escrever: “Ditadura, nunca mais!” “Anistia a criminosos, jamais!” “Democracia para sempre!”, como enfatizou Lula ao discursar. É tempo de esperançar nas lutas concretas por direitos. É tempo de coletivizar, de aquilombar, ampliar as lutas pelo bem comum, tempo de união e reconstrução.

Entretanto, concordando com a professora idealizadora da Faculdade de Educação da UFMG[1] e militante de uma educação transformadora, Magda Becker Soares, que se encantou na madrugada do dia 1º/01/23, ao afirmar que “a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem”, preciso escrever sobre a luta árdua, justa e necessária de cerca de 40 mil famílias que estão sobrevivendo há muitas décadas na beira da ferrovia de Mateus Leme, em Minas Gerais, até o Espírito Santo, passando por 40 cidades. Na maioria destas cidades, milhares de famílias estão sob a espada de processos individuais de despejo movidos pelas empresas Ferrovia Centro-Atlântica S/A, dona da ferrovia, e pela megaempresa MRS Logística S/A, que é dona dos trens que transportam os minérios que são arrancados das veias abertas de Minas Gerais e jogados nos navios. A mineradora Vale S/A é a maior acionista (dona) controladora destas empresas. Há milhares de processos de despejo na justiça estadual e na justiça federal. Em Betim e Belo Horizonte, por exemplo, há centenas de processos em várias varas cíveis.

Na cidade Ibirité, região metropolitana de Belo Horizonte, MG, por exemplo, a megaempresa MRS Logística S/A, no segundo semestre de 2022, requereu judicialmente reintegração de posse de várias áreas ao lado da ferrovia. Após uma juíza de 1ª instância ter indeferido o pedido de reintegração de posse, a MRS iniciou um brutal processo de pressão sobre as famílias que “sob coação” assinaram acordos com indenizações muito injustas. Trinta e seis casas já foram demolidas, sendo 21 casas no bairro Jardim Ibirité e outras 15 casas no bairro Morada da Serra. No bairro Jardim Ibirité, quatro famílias resistem bravamente à investida de despejo. Moram no local há mais de 50 anos, distante da ferrovia de 30 a 50 metros, em área plana, em casas que não apresentam nenhum risco geológico, sem risco de desabamento ou deslizamento, sem risco nos quintais e estando fora da área de servidão da ferrovia, segundo a Lei Federal nº 6.766/79, que estabelece faixa de 15 metros de largura a partir do limite da faixa de domínio, chamada de faixa não edificada. Em alguns casos, pode haver a aplicação da Lei nº 13.913/19, reduzindo a faixa para 5 metros. O Art. 4 da Lei Federal 13.913/19 permite a permanência de edificações na faixa de domínio das ferrovias.

A Defesa Civil da prefeitura de Ibirité, dia 26/12/22, avaliou in loco as cinco casas que resistem e disse para os moradores que as casas não estão em risco, conforme vídeo feito pelos moradores.[2] Laudo imparcial do geólogo Dr. Carlos von Sperling demonstra também o que todos a olhos vistos percebem: todas as cinco casas estão fora da área de servidão da ferrovia, estando distante para além de 20 metros da ferrovia. Logo, não é e nunca foi propriedade da MRS Logística S/A e tampouco há qualquer vestígio de posse exercida por essa empresa. A posse qualificada pelo exercício da função social é exercida pelos moradores há décadas e eles são legítimos possuidores com direito subjetivo à regularização fundiária plena.

Ressalto que a Lei Federal 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, em seu § 4º, estabelece que na Reurb-S de imóveis públicos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária. Reurb-S significa Regularização Fundiária Urbana Social e é conceituado como o procedimento por meio do qual se garante o direito à moradia daquelas pessoas que residem em assentamentos informais localizados nas áreas urbanas. De acordo com a Lei Federal 13.465, de 2017, a REURB consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

Como a MRS Logística S/A já demoliu 21 casas no quarteirão, após acordos com sérios indícios de coação, restando apenas quatro famílias com cinco casas (o sr. Lázaro e família têm uma casa velha de mais 50 anos e uma casa nova no mesmo lote), mesmo que a juíza de 1ª instância tenha proibido a demolição das casas e arbitrado multa de duas vezes o valor das casas, é óbvio que se as famílias forem retiradas das suas moradias, as casas serão demolidas ao arrepio da proibição judicial, pois a MRS preferirá pagar a multa ou recorrer judicialmente para conquistar uma eventual redução da multa. Isso será muito mais lucrativo para a empresa, pois terá o quarteirão todo anexado ao seu patrimônio, podendo fazer no local um empreendimento econômico de grande porte. Por isso, frisamos que a proibição de não demolir as casas e multa em caso de demolição não garantem a incolumidade das casas, caso as famílias sejam retiradas das casas sem nenhuma necessidade e muito menos o retorno das famílias às suas residências no final de janeiro de 2023.

Se não há risco nas casas, nem nos quintais e se estão fora da faixa de servidão, quais os interesses não confessados que estão por trás movendo um processo de higienização e de racismo estrutural? Estando as famílias vivendo há mais de 50 anos no centro da cidade de Ibirité, é óbvio que o valor econômico dos terrenos ocupados valorizou muito. A comunidade do Jd. Ibirité está diante do Estádio Municipal da cidade. Há interesse em apropriar do quarteirão onde foram demolidas 21 casas para ampliar a área de estacionamento do Estádio? O famigerado Rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte, melhor dizendo, Rodominério, caso seja construído, passará próximo da área ou poderá inclusive passar na área? A Vale S/A e a MRS têm interesse em construir um terminal de carregamento de minério na área? Ou o interesse é apropriar-se de todo o quarteirão, de 40 a 50.000m2, para repassar para uma construtora fazer no local prédios? Ou …?

Trata, sim, de racismo estrutural, porque nas cidades onde milhares de famílias estão sob processos de despejo por estarem na beira da ferrovia, existem também na margem da ferrovia clubes, casarões, prédios privados e públicos, sede e galpões de empresas, casas luxuosas. Em Ibirité a prefeitura, o Fórum e um shopping estão a poucos metros da ferrovia. Entretanto, ameaçados de despejo estão apenas famílias empobrecidas. Isto é racismo estrutural, inadmissível, violação de direitos humanos fundamentais.

Importante mencionar ainda que em recente decisão – 31/10/2022 -, Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou e o Plenário do STF referendou que os tribunais estaduais e federais instalem Comissões de Conflitos Fundiários para mediar e conciliar em eventuais despejos, antes de qualquer decisão judicial. Deixa claro, também, que além das decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções devem ser avisadas previamente, as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardo do direito à moradia, proibindo em qualquer situação a separação de integrantes de uma mesma família.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos termos da Portaria-Conjunta nº 1.428/PR/2022, instituiu a Comissão de Conflitos Fundiários no âmbito do TJMG, sobre a qual destacamos: “… São atribuições da Comissão de Conflitos Fundiários: I – servir de apoio operacional aos magistrados competentes para julgamento de ações dessa natureza; II – mediar conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais e urbanos, de modo a evitar o uso de força pública no cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo e restabelecer o diálogo entre as partes, atuando sempre de forma auxiliar o juízo onde tramita a ação correspondente…”

No laudo geológico geotécnico imparcial se demonstra com fotos de voos de drone: “Não há nas paredes das moradias, isto é, de todas as moradias e nos respectivos muros divisórios, qualquer comprometimento das estruturas. Não há também nos terrenos das propriedades qualquer indício de instabilidade, isto é, não há qualquer indício de ruptura, indício de movimento de massa ou rastejo.”

O laudo do geólogo Dr. Carlos von Sperling diz: “Sobre as moradias já demolidas pela MRS: A partir de uma análise comparativa, possibilitada entre moradias que ainda permanecem e moradias demolidas, ou seja: Por uma observação das condições estruturais das casas ainda não demolidas; Pelas condições geológicas uniformes que abrangem todas as áreas; Pelas condições geotécnicas, de solo silto areno argilosos, resultantes dos maciços granito-gnássicos, propiciando elevado ângulo de atrito; Pelas condições geométricas (construtivas) geomorfológicas, mostrando uma área plana, sobre a qual situam-se todas as edificações, e taludes de cortes de elevada inclinação. Conclui-se que a remoção dessas moradias obedeceu a critérios não técnicos, desconhecidos.”

No laudo geológico geotécnico consta ainda: “Os taludes já são estáveis há dezenas de anos, aliás, as moradias também já estão estabelecidas há dezenas de anos, não cabe a esse técnico (Carlos von Sperling Gieseke – Geólogo, com 50 anos de experiência) maiores contestações ou explicações técnicas quanto à necessidade dessas contenções.”

CONCLUSÕES FINAIS do laudo geológico geotécnico do geólogo Dr. Carlos von Sperling: “1. As moradias e as áreas não apresentam qualquer justificativa técnica, geológica/geotécnica, para uma demolição; 2. As Áreas de Servidão não foram ocupadas pelas atuais moradias; 3. Os atuais moradores foram prejudicados nas atuais circunstâncias socioambientais, impostas pelas demolições já executadas.”

Portanto, o despejo das quatro famílias do Jd. Ibirité, em Ibirité, MG, não pode acontecer, pois será tremendamente injusto.  Caso a empresa MRS continue insistindo nesta brutal violência, o processo precisa ir para a Comissão de Conflitos Fundiários do TJMG, para o CEJUSC (Central de Conciliação do TJMG) e continuar na Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais, que, aliás, já realizou Reunião Plenária virtual em regime de urgência, dia 28/12/22, e tratou deste gravíssimo conflito fundiário, urbano e social, que acabou com o Natal e virada de ano das famílias e de quem está lutando na defesa delas.

É evidente que quase todas as 21 casas do Jd. Ibirité, demolidas pela MRS, estavam fora da faixa de domínio da MRS como estão as casas das quatro famílias que resistem. Ao lado das casas tem rua asfaltada, as famílias pagam conta de água (COPASA) e de energia (CEMIG) há várias décadas e pagam IPTU também. E tem contrato de compra e venda. Portanto, são casas e lotes sobre os quais as famílias têm o direito de regularização fundiária segundo a Lei 13.465 para a obtenção da escritura e do registro sobre casas e lotes que possuem há tantas décadas. Esperamos a participação do Governo Federal, agora com o presidente Lula, na resolução deste conflito de forma justa, ética e pacífica, conflito que envolve cerca de 40 mil famílias ao longo de mais de 1.200 Km de ferrovia em 40 cidades de Minas e do Espírito Santo.

O caso de Ibirité, analisado acima, é um recorte de uma injustiça sistêmica e estrutural que está acontecendo em territórios em dezenas de cidades de Minas Gerais e certamente em centenas de cidades Brasil afora. É necessário fazer um mapeamento para identificar onde a MRS Logística S/A e Ferrovia Centro-Atlântica S/A estão criando conflitos fundiários, urbanos e sociais nos territórios em comunidades de vulnerabilidade social. Despejo, jamais! Respeito ao direito das famílias continuarem morando nas casas onde moram de 30 a 50 anos, SIM! Em casos em que se comprovar de forma cabal risco às famílias, exigimos reassentamento prévio e adequado em condições semelhantes ou melhores, como assegura o Estatuto das Cidades e Tratados Internacionais que tem o Brasil como signatário.

03/01/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – “Pressão infernal da MRS está nos adoecendo aqui no Jd. Ibirité, Ibirité/MG Não saímos nem mortos”

https://www.youtube.com/watch?v=3yWhzolrRIA

2 – Veja o terror que a MRS está pondo em dezenas de famílias em Ibirité/MG: “Vão acabar matando my mãe”

https://www.youtube.com/watch?v=6_7gan9iwAw

3 – Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: “As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria”

https://www.youtube.com/watch?v=e94vqeTtSJY

4 – Geólogo Dr. Carlos von: “As casas do Jd. Ibirité em Ibirité/MG estão seguras sem risco geológico”

https://www.youtube.com/watch?v=1VZoXu-HNL8

5 – Socorro! Olhe o massacre que a MRS está fazendo com crianças, mães e avós no Jd. Ibirité, Ibirité/MG

https://www.youtube.com/watch?v=DCdRqz40EEc

6 – “Pressão p nos despejar está adoecendo a gente. Aqui não tem risco”. Fora, MRS do Jd. Ibirité, MG

https://www.youtube.com/watch?v=NyGqRD5tFbo

7 – Quintais produtivos e casas sem risco, mas MRS já demoliu 21 casas. Resistem 4 no Jd. Ibirité, MG

https://www.youtube.com/watch?v=Vu3KJ4eiCzM

8 – Mística indígena na luta contra despejo no Jd. Ibirité, Ibirité/MG. MRS demoliu 36 casas. Injustiça!

https://www.youtube.com/watch?v=9AU7A20HVeg

9 – Rede de Apoio às famílias do bairro Jd. Ibirité, Ibirité/MG, só cresce: Indígenas … DESPEJO, NÃO!

https://www.youtube.com/watch?v=uT-PhIxcWRw

10 – “Se precisar, virá 220 famílias da Ocupação Terra Prometida para evitar despejo no Jd. Ibirité, MG

https://www.youtube.com/watch?v=LBKH0ycShgc

[1] Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: “As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria”. Cf. vídeo no link https://www.youtube.com/watch?v=e94vqeTtSJY

Legenda: A vovó Leni, 79 anos; o filho Moisés, que é motoboy; a nora Jéssica e o neto Nathan, de 1,5 ano, ameaçados de despejo no Jd. Ibirité, em Ibirité, MG, dia 03/01/2023, que junto com outras três famílias resistem bravamente à pressão por despejo. A megaempresa MRS Logística S/A já expulsou no mesmo quarteirão do Jd. Ibirité 21 famílias e demoliu as casas. Foto: Frei Gilvander

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