Pequenas utopias. Por Abrao Slavutzky

em Terapia Política

Desde que me conheço por gente, gosto do último dia do ano. De criança ia na casa dos tios e primos antes da meia-noite, ficava um pouco em cada casa, até ir festejar no tio Max e na tia Dunha. Aliás, me acostumei a ter dois anos-novos, um o judeu, em setembro ou outubro – calendário lunar –, e o outro, que é o nosso calendário solar. O ritual de um ano velho que termina e outro começando, animava os sonhos de mudança. Gostava dessa história do novo, do amanhã, e não foi difícil chegar aos primeiros utopistas, que foram os Profetas da Bíblia, Amós e Isaías. Eles previam uma era messiânica de paz, sem guerras, de justiça social, tinham confiança que o mundo mudaria muito. Portanto, foi fácil me integrar à geração 1968, a geração utópica,  e depois na Argentina, na década de 70 seguir sonhando, até perceber melhor os conflitos do ser humano. As ditaduras, o autoritarismo, as guerras, abalaram a ideia da grande utopia que viria pela revolução. O poder destrutivo da humanidade não podia ser desprezado, mas ainda assim convém manter o princípio esperança; se não é possível mudar o mundo todo, que se busque algo como as pequenas utopias.

Ano-Novo, vida nova, às vezes, mas o Ano-Novo segue sendo uma festa de alegria. Alegria é uma palavra essencial, alegria que liga o menino que ia na casa dos tios ao adolescente socialista, ao adulto inserido na realidade, ao velho rebelde, esperançoso. A virada do ano é alegria, até mesmo se estiver só e bem acompanhado. Neste ano sobram motivos para festejar a liberdade, a democracia, uma justiça maior aos indígenas, negros e pobres. Festejar as florestas, a natureza que não pode servir só a uns poucos bilionários. Não às armas, um adeus às armas, um viva aos livros, ao conhecimento, é preciso dançar e cantar, acreditar na construção de um novo tempo.

Pequenas utopias é uma expressão que não diminui a importância da utopia. Assim como a expressão narcisismo das pequenas diferenças revela o quanto esse narcisismo pode gerar grandes diferenças. Outro exemplo: pequenas mudanças na clínica psicanalítica abrem as portas para conviver com versões contrastantes da gente e assim diminuir o sofrimento. As contradições como amar e odiar ao mesmo tempo integra o ser humano como a expressão do narcisismo das pequenas diferenças. Portanto, valorizar as pequenas utopias na vida social é apostar na capacidade de uma sociedade evoluir. Hoje, no Brasil, após anos de pandemia, de ataques às ciências, às artes e à maior parte do povo brasileiro, já se pode fantasiar com a volta a uma vida mais alegre.

Não há receita de felicidade, a vida é repleta de incertezas, mas é véspera de um novo ciclo, tempo de sonhar. O autoritarismo perdeu as eleições, logo, se abrem novos horizontes, que cada pessoa tenha um ano melhor para si e os seus. Será um ano melhor para o povo brasileiro, com um governo que cuide, junto com a gente, desse querido país. Para tudo isso ser possível, o medo terá que diminuir, e aumentar a alegria de viver.

Nada é fácil nesta vida, como tão bem escreveu Lou Andreas-Salomé, aos 19 anos, sobre os conflitos da existência: “Claro, como se ama um amigo/ Eu te amo, vida enigmática/ Que me tenhas feito exultar ou chorar,/ Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento”. Portanto, diante dos labirintos de 2023, convém  caminhar juntos, com humor e assim sustentar os desejos das pequenas utopias. (Publicado originalmente no GRIFO de janeiro de 2023)

Ilustração: Mihai Cauli

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