A Intentona de 8 de janeiro de 2023

É necessário traçar uma paciente estratégia de autodefesa e contra-ataque. Essa estratégia precisa levar em conta as forças populares, elas serão a defesa e a crítica progressista do novo governo e da própria democracia brasileira. Por mais frágil e limitada que ela seja, ela é melhor do que o que querem fazer de nós.

Por Lincoln Secco, Rosa Gomes e Fernando Sarti Ferreira, no Blog da Boitempo

A analogia histórica não é anacronismo. Especialmente quando estamos tratando do fascismo ela é fundamental para pensarmos naquilo que Poulantzas – e depois Robert Paxton – identificou como momentos de fascistização: de movimento a partido, de partido a regime, sem necessariamente passar por todas elas. Em que etapa estamos?

No dia 08 de janeiro de 2023 assistimos a mais uma tentativa de Golpe de Estado. O fato de ser desarmada não significa nada. Vários golpes começam assim e aguardam uma tomada de posição do exército ou mesmo das polícias. O sucesso da Marcha sobre Roma pode ser totalmente creditado à inação simpática do exército italiano aos camisas negras; a ofensiva da Ação Integralista Brasileira (AIB) contra a ditadura de Getúlio Vargas em maio de 1938 durou enquanto o Exército fez corpo mole. A adesão dos aparelhos de repressão à “revolta da ordem” (João Bernardo) é um bom termômetro da fascistização.

A cada fracasso, muitos se erguem para afirmar a impossibilidade de o golpe ocorrer, apontando a falta de apoios internos ou externos. No entanto, é preciso observar que cada ação dessa serve à consolidação do fascismo. Cada ação dessas desacredita o Estado e a impunidade encoraja mais e mais funcionários da segurança a se solidarizarem com o fascismo. Mesmo que aparentemente aqueles que o apoiam venham a público defender a democracia e condenar os “poucos extremistas”.

Nem tudo se repete no fascismo do século XXI como em seu período clássico. Tampouco o processo de fascistização é uma mera sucessão mecânica de momentos. A derrota eleitoral do fascismo em 2022 não pode e não deve servir de combustível para sua consolidação como movimento de massas. Ou nas palavras de Poulantzas, que antecipou em teoria aquilo que Paxton desenvolveu posteriormente, pavimentar o caminho para o fascismo atingir o seu “ponto de irreversibilidade”. Nem deve ser vista como mero adiamento da derrota da democracia burguesa, ou a consolidação de uma vitória por parte das forças progressistas. Trata-se do início de uma nova batalha e há muitas trincheiras a serem guardadas e reconquistadas.

Nesse momento as forças de esquerda não devem se iludir na defesa da “ação direta” por princípio, tergiversando sobre a condenação total dos eventos do dia 8 apenas porque “fascistas fizeram o que nós deveríamos ter feito”.

Aventuras de corporações isoladas que visam invocar o tumulto e se retirar do palco não expressam os interesses dos trabalhadores. O jacobinismo pequeno burguês cumpriu seu papel histórico, pois baseava-se na burguesia ascendente. Já o “jacobinismo” fascista é ornamental, posto que respaldado pelas frações mais apodrecidas do capital. A burguesia resiste a deixar a cena da história ao custo da ruína comum de todas as classes, incluindo a própria destruição do planeta.

A direita não fez o que nós não fizemos. Ela fez o que fez com o apoio das polícias e do exército. No país do capitão do mato institucionalizado em corporação policial, uma ação daquela natureza que não fosse apoiada e organizada por forças armadas de autodefesa teria resultado em um massacre de militantes de esquerda.

Já a entrada tragicômica dos fascistas na sede do poder é guiada pelos próprios poderes estabelecidos.

O voluntarismo fascista traz resultado, pois é respaldo pela infraestrutura econômica e a superestrutura jurídica. A tarefa imediata é a de se proteger da violência miliciana e paramilitar, além de exercer constante pressão popular para desbolsonarizar as instituições burguesas. Assediar as bases populares do fascismo com propostas concretas, sem fazer concessão aos seus preconceitos e pautas reacionárias, mas atendendo a questões diretas como a reindustrialização, o pleno emprego e o aumento da faixa de isenção do imposto de renda para classe média, deve estar no horizonte de médio prazo. É importante ter sempre em mente que as camadas médias são a grande base do fascismo.

Estamos em uma situação difícil. A reação ao último dia 8 de janeiro foi necessária, mas insuficiente. A classe trabalhadora tem seu representante no poder executivo e isso não é algo trivial.

Com todas as suas contradições, Lula exprime a consciência empírica dos trabalhadores e não alguma consciência atribuída por qualquer vanguarda. Ele traz em si o avanço e o preconceito, ação e negociação. Mas quem pode criar a forma em que essa contradição deve se resolver é a própria classe trabalhadora. Lula não pode exercer sozinho seu poder constitucional sobre as forças armadas.

O fascismo como movimento testa a todo momento a capacidade que as forças progressistas e, principalmente, de esquerda têm de se defender. O fascismo testa o limite da sociedade burguesa até onde ela está disposta a ir, e se autodestruir, por medo e ganância. Ele põe a nu o único interesse histórico da classe dominante: a taxa de lucro.

Neste momento, o fascismo brasileiro tem um líder, mas isso não quer dizer que ele não seja descartável; que o movimento não possa se dissolver e reagrupar-se de outra maneira. Poderemos ver a ascensão de outro líder e é possível observar disputas nas declarações públicas de Mourões e Moros de cada dia. O fascismo é plástico.

É necessário traçar uma paciente estratégia de autodefesa e contra-ataque. Essa estratégia precisa levar em conta as forças populares, elas serão a defesa e a crítica progressista do novo governo e da própria democracia brasileira. Por mais frágil e limitada que ela seja, ela é melhor do que o que querem fazer de nós.

Há algo de positivo em tudo isso. Diferente da intelligentsia da esquerda, Lula sabe, apesar das hesitações, que estamos enfrentando o fascismo. E se soubermos navegar no mar revolto, entendendo os diferentes papéis do governo, do partido e dos movimentos sociais, temos a chance de um ponto de chegada melhor que o ponto de partida.

*Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP; Rosa Gomes é mestre em história econômica pela USP; Fernando Sarti Ferreira é doutor em história econômica pela USP.

Foto: Gabriela Biló/Folha de S. Paulo

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