Norte global se aproveita da falta de serviços de saúde em países africanos para vender-lhes produtos, extrair dados e fazer testes. No Brasil, governo cria secretaria para regular esse mercado. Conseguirá virar o jogo e obter protagonismo?
Por Luiz Vianna Sobrinho, em Outra Saúde
O impacto da chegada de serviços de saúde em países do continente africano, através da utilização de tecnologias reunidas sobre o selo de saúde digital, é comentado em recente artigo [1]. Como já seria de se esperar, frente às condições sócio-econômicas enfrentadas historicamente pela região, vamos vendo o mesmo discurso: garantir a acessibilidade aos serviços de saúde e tentar superar a escassez de recursos humanos, como a baixa relação médico-paciente. No texto, são apresentados os dados da Organização Mundial da Saúde comparando a taxa da Alemanha, com 84 médicos para cada 10.000 habitantes, com a média da África, onde há apenas 3 para o mesmo número de cidadãos. Chama ainda mais a atenção a taxa de 1 médico para 80.000 habitantes em regiões rurais de maior carência.
Alguns entrevistados saúdam as iniciativas, apontando a velocidade com que “[…]quarenta e um países estabeleceram estratégias de saúde digital. […] tal coisa inexistente nos países europeus.” O que de imediato nos chama a atenção para a utilização do continente como campo de testes das novas tecnologias, de forma muito semelhante ao que a indústria de fármacos já faz há muitas décadas. O argumento da carência e a baixa regulação dão as justificativas necessárias para o que Floridi destaca como “dumping ético” [2], com exportação “de práticas e pesquisas antiéticas para países onde há estruturas legais e éticas mais fracas ou frouxas”. Isso pode ser notado, em um curto comentário de um interlocutor da ONG suíça SolidarMed: “quem detém o direito aos dados dos pacientes, quem pode acessá-los, como eles são protegidos?”. E ele ainda nos chama a atenção para a baixa alfabetização digital da população, e a carência de computadores e internet, em hospitais onde os registros ainda são feitos em grandes livros manuscritos.
Com essa imensa carência de recursos na área de assistência sanitária e as características condições sócio-econômicas da região, principalmente nas áreas rurais, não parece restar dúvida de que a chegada de serviços otimizados pelas tecnologias digitais trará mudanças e terá grande impacto. Mas, para o bem e para o mal, é a típica situação onde encontraremos as mesmas práticas colonizadoras de corporações do Norte global na entrega de produtos e insumos da indústria farmacêutica durante décadas, para uma África ‘carente’.
E o argumento da carência justifica a implantação de serviços onde a assistência não pode ser a mais adequada. Um dos grupos apresentados no artigo, que atua em vários países, e demonstrado em maior detalhe em Ruanda, enfrenta as dificuldades locais com tecnologias de suporte mais modestas, como as mensagens de SMS em telefones celulares simples. Mas com organização de redes para consultas médicas por teleatendimento e fornecimento de exames diagnósticos e encaminhamentos para dispensa de medicação em farmácias conectadas ao sistema.
A ótica do modelo é esta conectividade com a assistência médica à distância e a entrega de produtos e serviços, sem a organização de um sistema que não explore a carência como elemento que demanda sempre mais de investimento do Estado para a compra desses serviços. Esta é uma das frases mais repetidas no artigo: a necessidade de investimento e financiamento dos projetos de saúde digital. Entre as empresas, o artigo cita o trabalho da Babylon que atua em 15 países africanos e outros tantos na Ásia e Oriente Médio. Fundada por um engenheiro e empresário britânico de origem iraniana, que é apontado como um dos cem mais importantes empreendedores do mundo pelo The Times, e que estão “revolucionando o mundo dos negócios”. Seus negócios estão se expandindo rapidamente pelas áreas carentes da África.
Já sabemos do potencial transformador das tecnologias de informação e das mudanças que se apresentam com a utilização desses recursos no nosso país. Mas temos de estar atentos tanto ao interesse das chamadas Big Tech, na mineração e controle sobre os dados, e das empresas que gerenciam planos e seguros de saúde para o sistema suplementar (leia-se ¼ da população, com poder aquisitivo para esse mercado), quanto à enxurrada de soluções promissoras sendo oferecidas no mercado, seja de softwares e aplicativos, seja de serviços de atendimento por telessaúde.
Não foi só a famigerada, antiética e inconstitucional proposta do Open Health lançada pelo finado governo; mas há centenas de start-ups e também discursos mais eloquentes, como o de um costumeiro guru do mercado de saúde, encantado com o desempenho financeiro da norte-americana Iora Health e seus modelos de call-center para a atenção primária (assista palestrante enaltecendo as vantagens de atendimento de APS feito por teleatendimento com suporte de algoritmos).
No momento em que o ministério da Saúde renasce com sua política anterior de fortalecimento das diretrizes e fundamentos do Sistema Único de Saúde, é inspiradora e estimulante a criação da Secretaria de Saúde Digital. Devemos contar com uma forte política pública, que não caia nos discursos que utilizam a carência ‘dos rincões distantes’ do nosso território, mas para a venda de produtos e serviços sob a forma de pacotes para os milhões que necessitam de assistência nas grandes periferias urbanas.Esperamos que a potência das tecnologias digitais e de informação sejam utilizadas como um grande elemento estruturante do próprio Sistema Único, e não apenas como mais uma cesta de produtos de consumo. Que saiam de nossos centros acadêmicos – que pensam o nosso sistema de saúde fora do olhar colonizador das grandes corporações internacionais – as propostas que atinjam a sociedade dentro das diferenças de suas necessidades; abordando os determinantes sociais e as condições de pobreza e vulnerabilidade, a partir da visão dos Direitos Humanos sobre suas particularidades e desigualdades. Que a inteligência humana, embutida nos algoritmos de machine learning, esteja a serviço do design de estruturas e ferramentas tecnológicas que não isolem mais ainda aqueles que precisam do contato, mas que sejam um instrumento de fortalecimento das relações humanas na assistência à saúde.
1 – Schwikowski, M; Ngarambe, A. How Africa’s digital health services are benefiting patients
2 – Floridi, L. Translating Principles into Practices of Digital Ethics: Five Risks of Being Unethical. Philosophy & Technology (2019) 32:185–193 https://link.springer.com/article/10.1007/s13347-019-00354-x