A América Latina tem a dieta saudável mais cara do mundo. Mas tragédia é lucrativa para redes de fast food e varejistas como as Americanas, impondo as calorias vazias dos ultraprocessados. Fraude, oportunismo e fome são a tônica dos super-ricos
Por Susana Prizendt, em Outras Palavras
Foi com lágrimas nos olhos que muitos de nós viram Lula subir a rampa do Palácio do Planalto, caminhando ao lado de um conjunto de pessoas que simbolizam a população brasileira – como o cacique Raoni e a catadora de materiais recicláveis Aline Sousa –, no dia de sua posse como presidente do país pela terceira vez. Depois de tantos anos de destruição social e ambiental, parecia que iríamos voltar a respirar e a tomar fôlego para a imensa tarefa de reconstruir nossa estrutura pública.
Naquele momento, ninguém imaginava que, uma semana depois, a mesma rampa seria alvo de um grupo de pessoas muito diferente: milhares de golpistas que, vestidos de verde e amarelo, invadiram e saquearam os edifícios dos Três Poderes da República, deixando um registro de violência contra o patrimônio público simbólico da nação que é inédito na nossa história.
A fratura que o país sofreu, tendo uma parte expressiva de sua população se voltado radicalmente contra os nossos princípios democráticos, a partir de uma rede de manipulação de caráter fascista, voltava a ser exposta, mas, dessa vez, com uma ferocidade que deixou o mundo atônito.
A América Latina tem uma história trágica de violência e de golpes. Desde a dizimação dos povos originários, iniciada há mais de 500 anos, até as ditaduras sanguinárias que irromperam no século passado em muitos dos países que formam o continente, temos sido alvo de uma disputa internacional para controlar nossos recursos materiais e nossas subjetividades. E o Brasil, país que exterminou boa parte de sua população indígena, que foi o último a abolir a escravidão e que ficou várias décadas sob o domínio militar ditatorial, nunca acertou as contas com seu passado. Esse é um dos fatores que explicam porque entramos em 2023 com uma manifestação golpista violenta e com uma parte expressiva da população exposta à fome e à intolerância.
Sim, o país que “alimenta o mundo” e que é um exemplo de “convívio cordial” está faminto e em guerra interna. Enquanto o agronegócio se une à onda fascista, batendo recorde de produção de commodities e de lucro (e financiando a organização golpista), a agricultura familiar agoniza, a comida some da mesa das famílias na mesma velocidade com que os preços nos mercados disparam e nos deparamos na internet com imagens de crianças Yanomami com metade do peso que deveriam ter. É a estrutura colonial secular, escravocrata e autoritária, reverberando em pleno século XXI.
O drama em números; por trás deles existem pessoas reais, como eu e você
Para ilustrar o cenário trágico que vivemos, dois relatórios recém-lançados são fundamentais. Um deles mostra que é justamente nas Américas do Sul e Central e no Caribe que o custo de alimentos considerados saudáveis é mais alto. Intitulado Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe e produzido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS), o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP na sigla em inglês) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o documento mostra que a região tem um custo médio de uma dieta saudável de cerca de US$ 3,89 – o mais alto do planeta e consideravelmente superior à média global, que é de US$ 3,54.
Nas palavras de Rossana Polastri, integrante de umas das organizações que coordenou o relatório, a situação de carestia “afeta particularmente as populações vulneráveis, pequenos agricultores, mulheres rurais, indígenas e afrodescendentes, que destinam uma porcentagem maior de sua renda para a compra de alimentos”. Podemos perceber que, “coincidentemente”, tratam-se dos mesmos grupos que têm sido vítimas seculares de opressão e que, sob o governo agrofascista de líderes como Bolsonaro, se tornaram novamente vítimas de um genocídio. Como resultado, vemos o aumento da fome, da insegurança alimentar e da desnutrição, com 40% da população da região sem condições de ter o pleno acesso a uma alimentação saudável – uma porcentagem bem acima da média internacional, que é de 29%.
E, se falamos dos setores da população mais oprimidos, precisamos também falar dos setores opressores e aqui entra o segundo relatório que mencionamos: A “sobrevivência” do mais rico – por que é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades. Elaborado pela Oxfam e lançado no momento em que era realizado o Fórum Econômico de Davos 2023, ele revela que, “desde 2020, o 1% mais rico se apropriou de quase dois terços de toda a nova riqueza”, o que significa que “Cada bilionário ganhou cerca de US$ 1,7 milhão para cada US$ 1 obtido por uma pessoa dos 90% mais pobres”.
No panorama nacional, nos deparamos com os seguintes (e chocantes) dados: “Os 3.390 indivíduos mais ricos do Brasil detêm 16% de toda a riqueza do país, mais do que 182 milhões de brasileiros (85% da população)”. Atenção, não estamos falando do 1% mais rico, estamos falando do 0,0016% mais rico! São apenas 3.390 pessoas! Se o planeta sente o peso da desigualdade socioeconômica, o Brasil é um exemplo de como ela pode ser cruel. Realmente, não é à toa que somos uma das nações do mundo em que existem mais dificuldades para que a população tenha acesso aos alimentos saudáveis, como revela o primeiro relatório mencionado neste artigo.
Voltando ao relatório da Oxfam, ele não se limita a trazer os dados detalhados da concentração de renda no globo, mas revela um caminho para que ela possa ser revertida: um aumento na tributação dos super-ricos, medida que, sozinha, já seria capaz de atenuar essa gigantesca assimetria. Como sugestão prática, propõe que seja criado um “imposto de até 5% sobre os super-ricos”, já que, com ele, seria possível “arrecadar US$ 1,7 trilhão por ano, o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza”. Se, para você, 5% parece uma taxa perfeitamente razoável a ser paga por alguém que seja dono de uma fortuna ingastável de dezenas ou até centenas de bilhões de dólares, o que essas próprias pessoas super-ricas devem achar da proposta?
Uma carta aberta com o título O Custo da Riqueza Extrema – assinada por 205 milionários e bilionários de 13 países – foi lançada para solicitar que pessoas como eles comecem a pagar mais impostos. Significativamente, o documento, que é dirigido às lideranças políticas dos países que estavam presentes no Fórum Econômico Mundial, não é assinado por nenhum brasileiro, mostrando como nossa elite não sente desconforto nenhum em acumular suas fortunas diante da crise de fome que estamos sofrendo. E aqui voltamos nós para nossa América Latina e sua tradição de exploração desmedida, em que uma pequena parte dos habitantes se sente dona de nosso patrimônio e não vê limites para dispor dele como bem entender, mesmo que viole qualquer código ético ou mesmo legal.
Fraude pouca é bobagem, a conta sempre é paga pelos que têm menos
E foi mesmo em nosso território latino-americano que um dos maiores escândalos financeiros acabou estourando. Se as Lojas Americanas começaram suas atividades no Brasil em 1929 com o slogan “nada além de 2 mil réis”, devido aos preços baixos dos produtos que ofereciam, este ano, seu presidente, que estava há pouquíssimo tempo no cargo, veio a público para anunciar sua renúncia após a constatação de que havia um rombo de 20 bilhões nas contas da empresa.
Seria muito complicado descrever tudo o que se passou na história das Americanas entre os 2 mil réis e os 20 bilhões, mas podemos dizer que um dos seus atuais donos é justamente o homem mais rico do país e que, para pessoas como ele, as regras do tal mercado são extremamente maleáveis, diferentemente do que ocorre comigo e com você, meros pés-rapados frente a tamanha fortuna. É essa elite formada pelos nossos super-ricos que grita contra o aumento de recursos que o novo governo propõe para combater a fome no país, hasteando as bandeiras da austeridade e da meritocracia, que ela prega que deveriam reger nossa sociedade para evitar um rombo nas contas públicas.
No caso das Americanas, o rombo se mostrou maior do que os 20 bilhões anunciados e a empresa entrou com um pedido de recuperação judicial no valor de 43 bilhões. São cerca de 16.300 credores, boa parte deles composta de fornecedores de produtos e serviços – que há muito vêm sofrendo com a forma predatória que a empresa usa para fazer os pagamentos do que compra e revende e do que terceirizou, como entregas e armazenamento. Também há os pequenos acionistas, que viram seus papéis virarem fumaça do dia para a noite, levando embora economias que poderiam ser o resultado de anos de investimento, já que os próprios donos da empresa andaram se desfazendo de um volume expressivo de suas ações alguns meses antes do escândalo vir à tona. E, além dos credores, toda uma rede de funcionários diretos e indiretos está sujeita ao caos financeiro gerado pela administração – são dezenas de milhares de pessoas que podem entrar para a lista dos esfomeados que o Brasil coleciona.
A falta de escrúpulos dos donos das Americanas é mais do que evidente – já que se descobriu que houve fraude por muito tempo nos balanços financeiros – e deixa nítido o oportunismo e a hipocrisia dos tais defensores do neoliberalismo, ao vociferarem contra a corrupção do poder público, exigindo a privatização de empresas estatais lucrativas e estratégicas para o nosso desenvolvimento. Seu discurso referente a não intromissão do Estado no funcionamento de economia está na raiz da atual fissura que sofremos no país, em que uma parte de seus habitantes se julga no direito de destruir as sedes dos Três Poderes em Brasília para que o suposto “comunismo” não domine nosso território.
Desnutrir a desigualdade para nutrir quem não tem o que comer
De volta ao tema da alimentação saudável e seu atual custo proibitivo, podemos perceber que ele é interessante para as grandes varejistas, como as Americanas, já que elas comercializam amplamente os produtos alimentícios ultraprocessados, nutricionalmente vazios, e que estão sendo cada vez mais consumidos pela população empobrecida do país, ao terem seus preços reduzidos frente aos alimentos in natura, como legumes, frutas e até mesmo o nosso feijão com arroz. Ponto para o agronegócio produtor de commodities, que cultiva soja, milho e cana, ingredientes básicos para a grande indústria alimentícia produzir suas “calorias vazias”, repletas de óleo, sal, açúcar e aditivos!
No livro A Queda do Céu, Davi Kopenawa Yanomami descreve como a sociedade dos homens brancos está destruindo as bases da vida com seu culto à mercadoria. A crise de fome sofrida hoje pelo povo Yanomami se deve tanto a essa destruição de seu ambiente natural, como à transformação do que deveria ser um direito, o alimento, em um produto mercadológico, a ser comercializado nas grandes redes varejistas, como as Americanas, engordando o patrimônio dos já multimilionários.
Um símbolo do abismo entre a massa empobrecida da população e quem está surfando na onda neoliberal foi lançado esses dias por uma rede de fast-food de Mato Grosso, estado que tem no agronegócio uma fonte pungente de integrantes para a elite brasileira. Trata-se de um donut feito com ouro, vendido por R$ 100 a unidade. É uma punhalada no peito de qualquer pessoa que tenha o mínimo de sensibilidade social, já que é devido ao garimpo em busca de ouro na Amazônia que o povo Yanomami está sendo dizimado, vítima da contaminação por mercúrio e da fome.
É a Bigfarm dos latifúndios monocultores dando as mãos para a Bigfood da indústria alimentícia e da rede varejista para nutrir a brutal desigualdade que rasga nosso país de ponta a ponta, usando meios materiais, como a produção da soja que destrói nossos biomas, e meios “imateriais”, como as transações financeiras feitas pelos controladores das corporações.
Em meio ao nosso território das Américas do Sul e Central, tão castigadas pelos cinco séculos de colonialismo e imperialismo, o caso escandaloso das Americanas mostra que fraude e fome são dois lados de uma mesma moeda viciada.
Que o novo governo tenha forças para transformar essa estrutura, criando instrumentos para equilibrar a balança entre quem tem a mais e quem tem a menos, através de impostos sobre a renda e de políticas que fomentem a agricultura familiar de base agroecológica, a reforma agrária e o acesso massivo ao alimento, que, ao contrário do que a sociedade branca neoliberal propaga, não poderá jamais ser considerado uma simples mercadoria.
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Imagem: Arte UOL