Empresários percebem que país já não pode se submeter às forças armadas. Entrevista com Fabio Konder Comparato

IHU

Está em curso uma ligeira mudança no meio empresarial. Alguns empresários já reconhecem que o país não pode continuar a submeter-se às Forças Armadas, “pois elas são claramente incompetentes para dirigir a economia nacional”. A avaliação é do jurista Fábio Konder Comparato em entrevista ao TUTAMÉIA. Ele lembra que, em todos os regimes capitalistas, o poder econômico sempre tentou se aliar aos setores militares –uma associação que nem sempre funcionou, embora ambos os grupos busquem “subordinar o bem público aos interesses particulares”.

“O Brasil é até hoje é um dos poucos países sul-americanos que se recusam a superar a total impunidade penal da corporação militar, até mesmo em casos de genocídio e crimes contra a humanidade, como se viu com o regime instaurado em 1964. Assim também no tocante a golpes de Estado, como se acabou de ver em 8 de janeiro do corrente ano de 2023”, afirma.

Doutor em direito pela Universidade de Paris, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, Comparato é professor emérito da USP e fundador da Escola de Governo. Autor de “A Oligarquia Brasileira” (Contracorrente, 2017), nesta entrevista por escrito ao TUTAMÉIA, ele analisa a situação do país. Nas suas palavras: “Logo após a posse, a probabilidade de golpe de Estado foi muito grande e se concretizou no dia 8 de janeiro. Mas, como se viu, a incompetência e o despreparo dos golpistas foram enormes e enterraram essa possibilidade, pelo menos durante o atual governo”.

A entrevista é de Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, publicada por TUTAMÉIA.

Qual sua avaliação política sobre a situação do Brasil após a posse de Lula e a tentativa de golpe em 8 de janeiro? A democracia segue em risco?

Logo após a posse, a probabilidade de golpe de Estado foi muito grande e se concretizou no dia 8 de janeiro. Mas, como se viu, a incompetência e o despreparo dos golpistas foram enormes e enterraram essa possibilidade, pelo menos durante o atual governo. Aliás, como se constatou, 90% da população condenou o quebra-quebra do dia 8. A rigor, nunca tivemos um regime autenticamente democrático em nosso país, pois o povo nunca foi soberano. A democracia entre nós, como disse Sérgio Buarque de Holanda, sempre foi “um lamentável mal-entendido”.

O Judiciário tem agido com o rigor necessário?

Em certa medida sim, graças a todos os magistrados nomeados para a Justiça Federal anteriormente ao governo Bolsonaro. Mas o sistema de nomeação de ministros dos tribunais superiores precisa ser aperfeiçoado, como explicarei mais abaixo.

A extrema direita seguirá sendo forte no país? A sociedade saberá enfrentar esse movimento?

Entre nós, a vida política jamais se fundou em ideologias e organizações partidárias e sim no personalismo; ou seja, no carisma dos líderes. É por isso que nunca tivemos no Brasil movimentos políticos de direita ou de esquerda dominantes, nem ditaduras bem estruturadas. Entre nós, a ditadura mais bem sucedida foi a de Getúlio Vargas, que se tornou um ídolo do “povão” (o Pai dos Pobres), ao criar o Direito do Trabalho.

Qual a sua visão sobre as prioridades do governo Lula?

O Brasil sempre foi um dos países de maior desigualdade social do mundo. Em seu último relatório mundial, publicado em dezembro de 2022, o World Inequality Lab, que é dirigido pelo famoso economista francês Thomas Piketty, afirma que o nosso país, após a África do Sul, é o segundo país com maiores desigualdades entre os membros do G20. Entre nós, os 10% mais ricos compartilham quase 60% da renda nacional; enquanto os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos. Ao mesmo tempo, a metade mais pobre da população brasileira possui menos de 1% da riqueza nacional, ao passo que o 1% mais rico controla a metade da nossa fortuna patrimonial. Um dos instrumentos para combater a desigualdade, como tem sido afirmado pelo Ministro Fernando Haddad, é a reforma tributária. A Constituição Federal estabelece que compete à União instituir um imposto sobre “grandes fortunas” (art. 153, inciso VII); mas até hoje a lei complementar prevista para regular a matéria ainda não foi promulgada, passadas mais de três décadas da entrada em vigor do texto constitucional. Enfrentar esse câncer socioeconômico de cinco séculos é, pois, a primeira prioridade do governo Lula, como foi a de todos os governos estabelecidos neste país, desde o Descobrimento.

Há uma clara ação de setores militares e da Faria Lima contra Lula. Como o presidente deveria lidar com esses atores?

Em todos os regimes capitalistas, os detentores do poder econômico sempre procuraram aliar-se aos setores militares, organizados ou não em instituições oficiais. Mas essa aliança nem sempre deu certo, pois a função institucional das Forças Armadas é bem diversa da do meio empresarial. Ademais, o pecado capital de ambos esses grupos consiste em subordinar o bem público aos interesses particulares. O Brasil é até hoje é um dos poucos países sul-americanos que se recusa a superar a total impunidade penal da corporação militar, até mesmo em casos de genocídio e crimes contra a humanidade, como se viu com o regime instaurado em 1964. Assim também no tocante a golpes de Estado, como se acabou de ver em 8 de janeiro do corrente ano de 2023. Já no que diz respeito ao grupo empresarial, nota-se ultimamente uma ligeira mudança: um certo número de empresários reconhece que o país não pode continuar a submeter-se às Forças Armadas, pois elas são claramente incompetentes para dirigir a economia nacional.

Considerando tudo o que aconteceu nos últimos anos (Lava Jato, inação do Ministério Público, bolsonarização de servidores públicos), é preciso fazer mudanças no Judiciário?

A nossa tradição nessa matéria continua sendo a de relativa submissão do Judiciário à Chefia do Poder Executivo, e isto precisa mudar. Duas características marcaram negativamente a sociedade brasileira em todos os seus aspectos: o individualismo e o privatismo. Sérgio Buarque de Holanda, entre outros intérpretes clássicos da realidade brasileira, caracterizou o nosso individualismo pela tibieza do espírito de organização, fruto da ausência de solidariedade e, portanto, de coesão social. Tal foi, na verdade, o resultado em nosso meio de uma estrutura patrimonialista fortemente dissociativa. De um lado, a grande massa dos pobres só é, por assim dizer, ajuntada pela força do patrão ou do governo, o grande patrão impessoal. Já a minoria rica e poderosa, até hoje, mantém-se unida tão-só para a defesa de seus privilégios patrimoniais e posições de mando. Garantidos estes, cada empresário procura dominar seu concorrente, a fim de alcançar o monopólio do mercado. De onde a tradicional ausência em nossa sociedade do espírito republicano; ou seja, a constante submissão da vida pública à esfera privada.

Há cinco anos, em entrevista ao TUTAMÉIA, o sr. afirmou que interesses norte-americanos estavam nos bastidores do ataque ao lulismo. Como o sr. avalia que será a ação dos Estados Unidos face ao governo Lula? Se Lula levar adiante uma política externa novamente altiva e ativa, será considerado alvo hostil aos EUA?

Ultimamente, salvo algumas raras exceções, como Cuba e Coréia do Norte por exemplo, a política externa de cada país tende a mudar, adaptando-se às transformações globais, que ocorrem hoje de modo cada vez mais rápido. Com isto, quero dizer que a política internacional do governo Lula, neste seu terceiro mandato, certamente não será idêntica à dos dois primeiros mandatos. Isto, sem deixar de lado o fato de que a vida política norte-americana vem sofrendo nos últimos anos uma transformação digna de nota. Creio, na verdade, que Luiz Inácio Lula da Silva, graças à sua proverbial argúcia e à sabedoria de alguns de seus ilustres conselheiros, como o Embaixador Celso Amorim, saberá defender o nosso país de eventuais ataques internacionais.

Em 2020, a presença das Forças Armadas em cargos de primeiro e segundo escalão do governo federal superou o contingente da ditadura civil-militar (1964-1985). – Alan Santos / PR

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