‘Operação Yanomami’ é termômetro do respeito dos militares à autoridade de Lula

Em Brasília a Quente, Newsletter de Rubens Valente, para a Pública

É a primeira ordem de vulto diretamente dada às Forças Armadas pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Assinado no último dia 30, o decreto presidencial dispõe sobre as medidas a serem tomadas por diversos órgãos públicos a fim de enfrentar a emergência em saúde pública e combater o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.

O decreto nº 11.405 determina ao Ministério da Defesa e ao Comando da Aeronáutica que tomem inúmeras medidas, entre as quais criar uma zona de identificação de defesa aérea a fim de agir “contra todos os tipos de tráfego aéreo suspeito de ilícito”, fornecer dados de inteligência e providenciar “transporte aéreo logístico” das equipes da Polícia Federal, Ibama e de outros órgãos que farão a “neutralização de aeronaves e de equipamentos relacionados com a mineração ilegal” na TI.

O ministro da Defesa, José Múcio, e outros ministros ficaram autorizados por Lula a “efetuar as requisições de bens, servidores e serviços necessários” para a tomada de cinco ações, incluindo o transporte de equipes de segurança, de saúde e de assistência. No dia 3 de fevereiro, uma portaria do gabinete do ministro da Defesa (nº 710) apresentou a “diretriz ministerial” para cumprimento do decreto e ativou o “Comando Operacional Conjunto Amazônia”.

A crise Yanomami, uma das muitas heranças malditas deixadas por Bolsonaro, foi construída durante o seu governo muito em função do débil papel desempenhado pelos militares na proteção da Amazônia e dos povos indígenas. O comportamento dos militares variou ao longo do tempo. Foi de operações pontuais e ineficazes não extirpando as invasões dos territórios indígenas à completa inação, como no caso da Operação Mundurukânia, em maio de 2021, em Jacareacanga (PA). Na ocasião, o Ministério da Defesa cancelou, a apenas cinco dias do início da operação, o apoio logístico que prometeu dar às equipes da Polícia Federal. O caso foi todo documentado pela própria PF e informado ao ministro do STF Luís Roberto Barroso.

Ao longo de quatro anos, o então vice-presidente Hamilton Mourão, general reformado, presidiu um certo “Conselho Nacional da Amazônia Legal” (CNAL) e o encheu de militares. Excluiu a participação de indígenas e de servidores da Funai e do Ibama. Por meio do CNAL, os militares lançaram uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) que custou uma fortuna de R$ 550 milhões. Foi um verdadeiro desastre, com a explosão do desmatamento e do garimpo em toda a Amazônia. Na semana passada, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que há 2 mil pistas de pouso clandestinas na Amazônia, outra vergonha para a Aeronáutica.

A leniência dos militares também marcou a terra Yanomami, invadida, destruída e roubada por cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, de acordo com a estimativa das lideranças indígenas.

“Sempre é bom ressaltar que o território faz fronteira com a Venezuela e nele há dois pelotões especiais de fronteira do Exército. Ou seja, a invasão garimpeira é também um tapa na cara de todo o CMA, o Comando Militar da Amazônia, sediado em Manaus (AM).
No último sábado (4), reportagem da “Folha de S. Paulo” informou que as Forças Armadas “deixaram de agir” no território Yanomami em pelo menos sete ocasiões durante o governo Bolsonaro. Houve “negativa de fornecimento de aeronave” em duas operações de repressão aos ilícitos ambientais e uma “recusa de solicitação de monitoramento do espaço aéreo nos moldes especificados pela PF”. Relatos semelhantes foram coletados na semana passada pela Pública junto a servidores públicos que atuaram na terra Yanomami sob Bolsonaro. Eles contaram que a atividade dos militares foi ocasional e quase sempre remunerada pelo órgão que requisitava, ou seja, os servidores pensavam dez vezes antes de pedir o apoio das aeronaves militares.

Mas a oposição dos militares à terra Yanomami vem de muito antes do governo Bolsonaro. Nos últimos trinta anos, vários oficiais militares condenaram abertamente a demarcação do território. Espalharam teorias conspiratórias esdrúxulas, como a que afirma que os Yanomami pretendiam criar uma nação independente do Brasil e da Venezuela. Essa fantasia ridícula — que jamais foi levantada por qualquer líder Yanomami — circula nos mais altos círculos militares a partir de livros como “A Farsa Ianomâmi”, do oficial paraquedista Carlos Alberto Menna Barreto (1929-1995), editado pela Biblioteca do Exército em 1995. Além dos muitos furos conceituais e factuais, tais delírios providencialmente esquecem que o território foi demarcado quando o Ministério da Justiça era ocupado justamente por um notório golpista de 1964 e um dos subscritores do AI-5, o coronel Jarbas Passarinho, e durante o governo de um presidente de direita, Fernando Collor (1990-1992).

Admiradores de Jair Bolsonaro grassam em todos os quadrantes das fileiras das Forças Armadas. Em 12 de janeiro, Lula disse em discurso, por exemplo, que o Palácio do Planalto “estava repleto de bolsonaristas e de militares”. Altos oficiais, como o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, incentivaram e apoiaram a candidatura de Bolsonaro à Presidência. Bolsonaro chegou a dizer que devia sua eleição ao general. Após a vitória de Lula em 30 de outubro, os militares se recusaram a debelar os acampamentos golpistas instalados na frente de unidades militares de todo o país. Os comandantes soltaram uma nota que, pelo contrário, incentivou a continuidade das manifestações golpistas que pretendiam causar uma ruptura dentro das Forças Armadas. Os acampamentos só foram debelados, e não por esforço dos militares, depois do infame 8 de janeiro, quando bolsonaristas golpistas depredaram os prédios dos três Poderes, em Brasília, tornando insustentável o apoio que os militares prestaram a esses grupelhos ao longo de dois meses. O novo presidente, Lula, exigiu as providências.

É por tudo isso que causa preocupação o verdadeiro papel a ser desempenhado pelos militares na operação de retirada dos invasores da terra Yanomami. Uma reportagem publicada pelo jornal econômico “Valor” na última quinta-feira (2) informou que o ministro da Defesa, José Múcio, tem a missão de “elaborar um plano para cumprir as ordens de Lula” e que somente após um diagnóstico mais preciso é que o Ministério da Defesa “poderá definir ações concretas para retirar os garimpeiros das terras Yanomami”. O texto fala que “está em jogo, por exemplo, o respaldo popular ao garimpo, responsável por fatia importante da economia do Estado” – uma argumentação que também poderia ser aplicada pelos militares, por exemplo, mas não é, em todas as áreas dominadas pelo narcotráfico no país e no mundo. Ou seja, o texto anuncia que os militares relativizam a expulsão do garimpo e que terão um protagonismo decisivo na desintrusão dos garimpeiros, o que pegou de surpresa indígenas, indigenistas e ambientalistas. Nem o decreto presidencial de Lula nem a diretriz de José Múcio falam em “coordenação” militar. Do contrário só seria a repetição da GLO de Bolsonaro.

No mesmo dia, contudo, o canal de TV Globonews divulgou que o plano de retirada será coordenado não pelas Forças Armadas, mas pela Polícia Federal. No domingo (5), porém, o “Correio Braziliense” informou que os militares já estão desempenhando um papel determinante na “coordenação” do plano de desintrusão. Ao mesmo tempo, informações dispersas em diferentes meios de comunicação começaram a colocar em xeque o próprio sucesso da desintrusão. Fontes anônimas disseram que “não há plano”.

Em meio às informações contraditórias, o Ibama com o apoio da Funai toma a iniciativa, tanto aguardada pelos Yanomami, e começam nesta semana as operações do que qualificam de “retomada do território” indígena com ações simultâneas em pontos da floresta dominados por garimpeiros. Num giro de 180 graus, a imprensa passou a reconhecer que, sim, havia um plano de desintrusão e que ele já começa a ser cumprido por servidores civis.

Mas é consenso que em muitos pontos da terra indígena, com seus mais de 9 milhões de hectares, é fundamental o apoio dos militares principalmente na logística e no transporte aéreo. Para uma operação de grande envergadura contra o garimpo que deve durar meses, agentes do Ibama, da PF e da Funai dependerão da entrada dos militares, de corpo e alma, na empreitada. Eles querem ver uma determinação clara das Forças Armadas, e não apoios esporádicos submetidos aos humores da burocracia.

O Ibama possui oito helicópteros em condições de uso, mas todos de um modelo com baixa autonomia de voo se comparados aos modelos utilizados pelos militares. Os H-60 Black Hawk da Aeronáutica, por exemplo, conseguem voar quase o dobro do tempo sem necessidade de abastecimento e têm mais capacidade para transporte de tropas e cargas. Podem descer numa área de 30 metros. Eles são operados pelo 7º/8º Grupamento de Aviação, conhecido como “Esquadrão Hárpia”, sediado em Manaus (AM), com 75 militares. O uso de helicópteros é fundamental na terra Yanomami porque há poucas pistas de pouso para aviões próximas das 376 aldeias. Conforme a Aeronáutica se jactou no último dia 3, os Black Hawk são “os únicos capazes de chegar às aldeias indígenas do território Yanomami”. Como têm alcance limitado, os helicópteros do Ibama também podem chegar, mas necessitam da criação de várias bases de apoio terrestre para o reabastecimento, um complicador a mais na desintrusão.

Há outros Black Hawk da Aeronáutica mobilizados nos esquadrões Pantera, em Santa Maria (RS), Pelicano, em Campo Grande (MS), e Poti, em Porto Velho (RO). Onde estão neste momento agudo? Por ofício, a DPU (Defensoria Pública da União) já alertou ao governo que as Forças Armadas haviam mobilizado, até a semana passada, apenas dois helicópteros para dar apoio a servidores públicos de órgãos civis envolvidos na operação de socorro aos Yanomami.

Apenas dois helicópteros. É pouquíssimo para o que a situação dramática exige. Segundo levantamento das organizações indígenas, há cerca de 120 comunidades com alto risco de desnutrição e malária e aproximadamente 13 mil indígenas sob impacto direto dos garimpos. A exploração mineral clandestina cresceu 3.350% desde 2016. A malária explodiu. Conforme os dados revelados pela Pública em dezembro passado, de 2019 a 2021 já haviam morrido 404 crianças de até cinco anos de idade por causas evitáveis, como pneumonia, desnutrição, diarreia e verminoses.

Esse número subiu para 570 nos anos 2019-2022, conforme divulgou a “Sumaúma” no mês passado. A DPU espera que se faça urgentemente uma busca ativa. É preciso localizar, descer de helicóptero e conferir as condições de saúde de todos os quase 30 mil Yanomami e Yek’wana que vivem nas 376 aldeias do território. Algumas estão localizadas a muitas horas de voo.

No sábado (4), a FAB (Força Aérea Brasileira) divulgou um balanço das atividades na terra Yanomami no qual diz ter feito 37 evacuações médicas e distribuído 77,5 toneladas de mantimentos e remédios e 3.875 cestas básicas com 338 horas de voo. O socorro humanitário — uma imposição legal, ética e moral em qualquer circunstância -, importante e emergencial, não se confunde com o combate ao garimpo ilegal. É a partir de agora que as Forças Armadas vão novamente mostrar sua verdadeira cara e expor em atos se apreciam, se condenam ou se toleram o genocídio Yanomami. O presidente da República eleito, diplomado e empossado já determinou que ajam em benefício dos Yanomami.

Foto: Victor Moryama /ISA

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