O fascismo bolsonarista veio defendendo, com maior intensidade, seu pressuposto anterior, a apropriação privada dos espaços comuns
A crise provocada pela liberação bolsonarista da mineração ilegal em terras Yanomami reavivou a discussão sobre a relação entre o projeto político do neofascismo brasileiro – incluindo suas dimensões golpistas – e o modelo de acumulação de riqueza. É bem visível o fato que, juntamente com a apologia da propriedade privada, o fascismo bolsonarista veio defendendo, com maior intensidade, seu pressuposto anterior, a apropriação privada dos espaços comuns, com a transformação da acumulação por despossessão – mecanismos de coerção extra-econômica que operam a despossessão de terras camponesas e tradicionalmente ocupadas – em eixo de seu projeto político.
A ideia de self made man associada à apologia do empreendedorismo de si próprio se aplicaria, neste caso, especificamente àquele de tipo pré-industrial, expresso na figura dos “barões ladrões” dos primórdios do moderno capitalismo norte-americano,[i] ou, no caso brasileiro, do bandeirante. Talvez se pudesse aplicar aqui uma variante da ideia de ornitorrinco à la Chico de Oliveira[ii] – a da síntese entre o bandeirante na fronteira agromineral, o miliciano na fronteira urbana e o proprietário moderno, que legalizou suas posses, em muitos casos, no tempo histórico, a partir da grilagem.
O faroeste se deveria dar prioritariamente em torno à apropriação do minério (vide remissão obsessiva ao nióbio, ao grafeno etc.). O acesso aos recursos seria assegurado, pela desregulação, aos poderosos, o que incluiria, na fronteira, os próprios patrões de garimpo, assim como, nas cidades, aos soberanos de um espaço individual desregulado, de circulação garantida por armas. O trabalho, por sua vez também desregulado, seria submetido a uma liberdade de tipo pré-salarial, a de estar disponível, sem entraves, para servir aos poderosos.
Sabe-se que desde as reformas neoliberais dos anos 1980-90, o modelo de acumulação de riqueza que se instaurou no Brasil é caracterizado por sua natureza extensiva, fortemente dependente da exportação de commodities. A implantação deste modelo se deu juntamente com a adoção de novos mecanismos de regulação – a saber, políticas governamentais, normas jurídicas e institucionais – que tiveram por fim dar coerência e direção à diversidade de ações territorialmente expansivas dos grupos dominantes.
Os compromissos institucionalizados instaurados pelo neoliberalismo procuraram, assim, compatibilizar, tanto no plano governamental como no plano privado, decisões tomadas de forma, em princípio, pouco coordenadas. O que unificaria tais ações seria a perspectiva de assegurar rentabilidade e fazer prosperar o complexo agromineral exportador, atraindo para ele novos recursos de investimento. A busca de coordenação entre as diferentes práticas dos agentes dominantes voltou-se, assim, basicamente, ao objetivo de reproduzir as relações sociais e territoriais próprias ao modo neoextrativista de acumulação.[iii]
Isto porque a atividade extrativa em grande escala se caracteriza pela busca permanente de expansão de suas bases territoriais, movimento que se assenta, via de regra, em processos de deslocamento e instabilização das atividades dos grupos sociais previamente instalados nos espaços de interesse das corporações. O acesso empresarial aos recursos cobiçados pelo capitalismo extrativo passou, assim, a promover uma separação – por meio de um repertório de ações com distintos graus de violência – entre grupos de pequenos produtores, comunidades indígenas e quilombolas e suas respectivas bases territoriais tradicionais.
Aqui entra em questão, por certo, a dimensão disciplinar da regulação – ou seja, da criação das condições de aceitação social do grande projeto agroquímico ou mineral, em particular pelos esforços de neutralização do conflito e de busca do consentimento junto aos grupos sociais atingidos pelos projetos empresariais. A reformulação do regime de regulação buscou, assim, resolver o “problema da socialização na reprodução”[iv] através da adoção de uma combinação de normas regulatórias, que visam coordenar o aleatório da multiplicidade de sujeitos, e normas disciplinares, que buscam ordenar os corpos,[v] o que, nos termos do vocabulário empresarial, significa remover as “interferências” – populares, por certo – no andamento dos negócios.
No caso da mudança da correlação de forças sociais verificada no Brasil a partir de 2016, o que se viu foi, por parte de grupos dominantes, uma ação destinada a ajustar o quadro regulatório a um regime mais favorável à expansão das práticas do capitalismo extrativo. O regime de regulação então idealizado pelas corporações passou a ser reivindicado sob formatos cada vez menos comprometidos com as normas regulatórias constituídas na conjuntura aberta pela Constituição de 1988.
Com a ascensão de forças neofascistas ao governo federal, a partir de 2019, o que passamos a ver foi um processo de desconstrução dos compromissos regulatórios que haviam prevalecido após o fim da ditadura e a imposição de um regime que veio servir, de forma muito mais direta, aos propósitos de fazer avançar a fronteira de exploração de terras e recursos e de destituir de direitos territoriais os grupos que ocupam as áreas cobiçadas pelas empresas extrativas. Como se teria dado este ajuste? Por que meios e em que direção foram alteradas as normas regulatórias e disciplinares de modo a permitir a abertura de novas fronteiras para a acumulação extensiva no país?
Entre as principais estratégias do novo regime regulatório, podemos registrar:[vi] (i) a legalização do que era ilegal: áreas antes interditadas foram sendo abertas à exploração empresarial; a ocupação de áreas apropriadas ilegalmente foi legalizada; o uso de substâncias químicas antes não autorizado por razões sanitárias foi legalizado; (ii) o constrangimento e a neutralização do controle estatal da ilegalidade: práticas ilegais foram toleradas e indiretamente estimuladas pelo Estado; (iii) a desconsideração dos direitos territoriais de grupos que ocupam áreas cobiçadas pelas empresas extrativas; (iv) a aceleração do ritmo de legalização de práticas ilegais;
(v) a adoção de estratégias de desresponsabilização das corporações quanto à degradação ambiental que promovem; (vi) o congelamento da estrutura fundiária concentrada e a adoção de medidas de intensificação dessa concentração pela expansão de monoculturas sobre áreas biodiversas e sociodiversas; (vii) o constrangimento da aplicação das regulações remanescentes na proteção de terras públicas e direitos de povos e comunidades tradicionais em dois níveis: no interior da máquina governamental, por práticas de assédio a servidores públicos e, fora dela, por perseguição a defensores de direitos e pesquisadores;
(viii) a adoção de formas inovadoras de ilegalidade e de “desregulação por conta própria”, à imagem do expediente oligárquico tradicional da grilagem; o recurso a certas vantagens competitivas “dinâmicas” espúrias obtidas pelo complexo de interesses agrominerais que, em lugar de decorrerem de inovações tecnológicas e organizacionais virtuosas, têm por base a apropriação de terras públicas e o trabalho análogo à escravidão; (ix) a tentativa de culturalizar a exploração do trabalho e a expropriação de terras tradicionais, reivindicando a herança colonial e a dominação neocolonial como um costume tradicional dos dominantes;
(x) a privatização das formas de segurança do patrimônio empresarial através de variantes de uma militarização do controle territorial, que pode estender-se ao cercamento de áreas de exclusão para a população em geral, e para pescadores e povos tradicionais que desenvolvem práticas de uso comum dos recursos, em particular; (xi) a intensificação e profissionalização da atividade legislativa e normativa do campo empresarial com formação de quadros e inserção em redes de think tanks internacionais; tais quadros ficaram disponíveis para serem, eventualmente, indicados para ocupar cargos nas agências estratégicas do próprio poder executivo.
Sabemos que o “Estado neoextrativista” veio se mostrando, desde o início das reformas neoliberais, como um Estado desregulador, que abre fronteiras e libera, para o negócio agromineral, práticas antes consideradas ilegais. O que mudou com o advento de sua “fase ideológica”, abertamente autoritária, é que o discurso governamental passou a legitimar a autoregulação das práticas de ocupação do território pelas próprias corporações (ao ponto de se cogitar a extinção prática do Ministério do Meio Ambiente) e a justificar a pertinência da expropriação dos despossuídos. O que se verificou foi a instauração de um novo padrão de divisão do trabalho de dominação entre o Estado e os capitais.
Em acordo com a concepção do Estado pensado como agente liberador da circulação dos capitais – nos termos do pensamento neoliberal originário da Colóquio de Paris de 1938[vii] – criaram-se condições favoráveis a que as próprias corporações gerenciem diretamente os obstáculos eventuais a seu trânsito no terreno; a saber, providenciem, por mecanismos propriamente empresariais, medidas que levem à despossessão de comunidades camponesas, indígenas e tradicionais que reivindicam sua permanência ou a retomada de suas terras. Tais mecanismos são experimentados em formas diversas, que podem ir da compulsão silenciosa das relações econômicas à coerção extraeconômica.
Restaria um fio aparentemente desamarrado no que diz respeito à compatibilização internacional das partes constitutivas da regulação neoextrativista, a saber, o desajuste entre a reputação predatória do negócio agromineral e a imagem ambientalizada pretendida por importantes setores dos países importadores de commodities. Esse desajuste poderia vir a se rebater no interior dos próprios grupos dominantes, supostamente divididos entre os que pretendem ambientalizar sua reputação e os que não se importam com pressões internacionais nesse sentido. As informações disponíveis sugerem, porém, que tanto a pressão internacional como a diferenciação estratégica interna ao complexo agromineral não vieram dando sinais de se materializar no campo concreto dos contratos e da ação política.
Sabemos que os regimes de regulação, com suas normas e mecanismos de coordenação são sempre atravessados por uma tensão histórica no interior mesmo dos grupos dominantes. Essa tensão resulta da relação entre o campo de experiências destes atores, o horizonte de suas expectativas e o quadro regulatório vigente.[viii] Nos períodos de estabilidade, os grupos dominantes mantêm seus horizontes de expectativa mais ou menos contidos no interior dos quadros regulatórios estabelecidos; a estabilidade de um regime de regulação é, via de regra, vista como favorável ao exercício da capacidade de antecipação dos atores dominantes.
Em certas conjunturas, entretanto, estes grupos podem vislumbrar a possibilidade de levar a cabo, em seu benefício, uma alteração do quadro regulatório. No caso brasileiro, a partir do golpe parlamentar de 2016, uma tensão foi instaurada no interior do próprio sistema de normas, com ameaças permanentes de implosão da própria ideia de um regime pactuado no seio dos grupos dominantes, tendo por perspectiva que ele fosse substituído pelo exercício direto da violência policial-militar e paramilitar.
Neste caso, a dimensão disciplinar das normas se imporia sobre a função de coordenação da regulação, dando sentido à hipótese de que a desmontagem das regulações ambientais e territoriais possa ter servido como balão de ensaio para uma desregulação mais radical que veio visar as próprias regras democráticas formais do sistema político.
*Henri Acselrad é professor titular aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
*Juliana Neves Barros é professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias da UFRB.
Notas
[i] Barões ladrões é a denominação dada aos homens de negócio que se tornaram milionários utilizando-se de métodos ilícitos, desonestos, violentos e desleais nos mercados do setor financeiro, siderúrgico, ferroviário e do petróleo, nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX. Eles são, por sua vez, considerados benfeitores e humanitários na perspectiva de certos ideólogos do ultraliberalismo. Howard Zinn, “Barões ladrões”, há cem anos… Le Monde diplomatique, fevereiro 2023.
[ii] Com a noção de “ornitorrinco”, o sociólogo Francisco do Oliveira pretendeu designar a combinação aparentemente esdrúxula de setores altamente desenvolvidos e financeirizados com as dimensões de uma sociedade desigual e com pobreza extrema, F., de Oliveira, Crítica da Razão Dualista – O Ornitorrinco, Boitempo, SP, 2003.
[iii] Chamamos aqui de neoextrativismo o modelo de acumulação que tem por base a inserção internacional subordinada de economias nacionais pela especialização produtiva em bens intensivos em recursos naturais, a submissão ecológica de sociedades periféricas ao capitalismo global e a apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativas e financeiras.
[iv] Michel Aglietta, Régulation et crises du capitalisme – l´expérience des États-Unis, Calmann-Lévy, Paris, 1976.
[v] “O elemento que circulará do disciplinar ao regulatório, que se aplicará ao corpo e à população, permitindo controlar ao mesmo tempo a ordem disciplinar do corpo e os fatos aleatórios de uma multiplicidade de sujeitos será a norma”, M Foucault, Del poder de soberania al poder sobre la vida, in Genealogia del Racismo, Madrid, 1992, p. 262.
[vi] Juliana Neves Barros “O ´Estado de intimidação` no Brasil e o papel das corporações extrativistas”, Salvador, mimeo. 2022.
[vii] C. Laval e P. Dardot, La Nueva razõn del mundo, Gedisa, Barcelona, 2010, pp. 67-75.
[viii] Catherine Paradeise, Régimes de production et de régulation des savoirs, Séminaire SIAP, Université Paris-Est Marne-la-Vallée, Departement de Sociologie, 2005
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Museu Rodin, Paris. Foto: Tania Pacheco