Falso brilhante. Por Esther Kuperman

Há um punhado de homens que conseguem enriquecer
simplesmente porque prestam atenção aos pormenores
que a maioria despreza. (Henry Ford)

NTerapia Política

A independência do Banco Central e a taxa de juros estão na ordem do dia. Tudo indica que esta polêmica vai continuar rendendo manchetes, vai brincar o carnaval e durar ainda um bom tempo. Daí a importância de falar sobre ela.

Afinal, o que é o Banco Central? Não é um banco como os outros. Trata-se de uma agência do Estado, com funções específicas que dizem respeito às bases da economia, em especial à taxa de juros e ao câmbio (entre outras).

Embora já houvesse Bancos Centrais em alguns países como a Inglaterra, a noção e o papel dos BCs se consolidaram a partir da Conferência de Bretton Woods – realizada ainda durante a Segunda Guerra, em 1944 –, com o objetivo de criar uma nova ordem mundial, uma ordenação econômica que refletisse uma hegemonia recente e o fortalecimento de um novo império.

Em Bretton Woods, foram propostas regras de organização do sistema monetário internacional, em oposição ao câmbio livre e ao padrão ouro que, segundo seus organizadores teriam sido os principais fatores que levaram à crise de 1929. A Conferência foi palco do enfrentamento de duas principais propostas: uma defendida pelo representante dos EUA, Harry Dexter White e a outra advogada por John Maynard Keynes, enviado pela Inglaterra. Cada uma delas tinha um entendimento diferente sobre a economia de mercado, mas ambas compartilhavam uma preocupação: a busca de um capitalismo viável, que evitaria outras crises, recessão e guerra.

A discussão girou em torno de regras que promovessem as trocas econômicas sem perder o controle, especialmente em relação ao câmbio. Para os EUA era fundamental evitar restrições ao comércio internacional e as consequências da eliminação do padrão-ouro. Para Keynes, a retomada do padrão-ouro teria um custo alto para a economia dos países que o adotassem, pois o crescimento do comércio e a exigência da moeda levariam à redução nos preços e nos juros. Divergências à parte, os dois lados tinham a mesma preocupação: manter as melhores condições para as trocas comerciais.

Em Bretton Woods foi acordado que seria importante manter um sistema monetário internacional homogêneo. Para isso foi criado o Fundo Monetário Internacional (FMI), e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD), instrumento de estabilização e provisão de capitais.

A Inglaterra já possuía um Banco Central desde 1694. Na Alemanha existia o Reichbank, assim como na Itália e no Japão. O Federal Reserve, BC americano, foi criado em 1913. Portanto, os Bancos Centrais não foram uma criação de Bretton Woods, mas aí definiram seu papel na economia.

Na década de 1960, com exceção do Brasil, a maioria dos países já possuía um Banco Central. Mas nenhum destes Bancos possuía as funções atribuídas após a guerra – nenhum deles interferia nas políticas econômicas. Aqui o BC foi criado em 1964, a partir de um departamento do Banco do Brasil denominado SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito), estabelecido em 2 de fevereiro de 1945 para ser o embrião do BC. Construir um Banco Central do Brasil foi uma ideia trazida de Bretton Woods pelo grupo de economistas liberais que participou do encontro, entre eles Eugênio Gudin, Octávio Gouvea de Bulhões e Roberto Campos.

A SUMOC, desde a sua criação, já exercia o papel de regulamentar a economia. Com a transformação em Banco Central, após o golpe empresarial-militar de 1964, consolidou-se como agência responsável pelas políticas monetárias e creditícias, definindo os rumos das relações econômicas. Tal orientação está claramente norteada pelas decisões de Bretton Woods.

Desde sua criação, tanto a SUMOC quanto o Banco Central foram espaço de acirradas disputas entre diferentes grupos de interesses, dada a sua importância. O comando destas agências significava o controle de suas diretrizes. A princípio, os embates giravam em torno do câmbio e dos mecanismos de ingresso dos capitais internacionais. A disputa se expressava na indicação de nomes para sua presidência e secretarias, espaços sempre ocupados por empresários ou seus representantes. Este fato está demonstrado a partir das informações sobre a origem de alguns dos seus superintendentes e presidentes:

Ainda como SUMOC, o primeiro superintendente foi um funcionário de carreira do Banco do Brasil, José Vieira Machado, futuro ministro da Fazenda do presidente Eurico Dutra e empresário, presidindo a Gravadora Odeon.

Vieira Machado foi sucedido por Valter Moreira Sales, da Casa Bancária Moreira Sales & Cia, que era também cafeicultor.

Em 1953, assume José Soares Maciel Filho, responsável pela Instrução 70, que instituiu, sob a orientação de Eugênio Gudin, o sistema de taxas múltiplas de câmbio, antiga reivindicação dos setores ligados à produção de bens não duráveis.

Em setembro de 1954, logo após o suicídio de Vargas, assumiu a direção da SUMOC José Soares Maciel, que integrou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo Vargas. Era proprietário de jornais e membro do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica. No governo Café Filho, Maciel foi substituído por Octávio Gouvea de Bulhões, intelectual orgânico participante do encontro de Bretton Woods e principal autor do relatório da Missão Abbink, que sugeria que toda atividade econômica deveria basear-se na iniciativa privada e o Estado só deveria intervir com o objetivo de coordenar os investimentos. Em sua gestão foi criada a Instrução 113, gerando condições mais do que favoráveis aos investimentos estrangeiros.

Inar Dias de Figueiredo, outro superintendente, era empresário, proprietário rural e banqueiro. Ainda no governo JK, o superintendente foi Eurico de Aguiar Sales, membro do Partido da Lavoura do Espírito Santo e consultor jurídico do Banco de Crédito Agrícola do Espírito Santo. Foi substituído por José Joaquim Cardoso de Mello Neto (também conhecido como Cazuza), presidente de uma das maiores empresas fornecedores de energia elétrica de São Paulo e fundador do Banco Mercantil de São Paulo e do Partido Democrático, que defendia uma agenda liberal. Em 1958 foi substituído por José Garrido Torres.

Torres integrou, junto com Lucas Lopes e Roberto Campos (então presidente do BNDE) e outros, a Consultec, empresa encarregada de elaborar projetos de investimentos que seus próprios participantes – agentes do Estado – aprovariam. Foi também membro do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), um dos espaços de organização empresarial voltados para a articulação do golpe de 1964. Foi substituído por Marcos Clemente de Souza Dantas, que havia presidido o Conselho Nacional do Café. No governo Janio Quadros, Gouveia de Bulhões voltou à diretoria da SUMOC, momento que coincidiu com a aplicação de uma política de estabilização, contenção dos gastos públicos e controle da expansão monetária.

Denio Nogueira, economista ligado a Bulhões e Roberto Campos, foi o primeiro presidente do Banco Central do Brasil. Em 1968, assume a presidência Ernani Galveas, economista liberal, também ligado a Bulhões, que veio a ser ministro da Fazenda no governo João Figueiredo. Seu sucessor, Paulo Hortencio Pereira Lima, era empresário e investidor. Carlos Brandão, diretor do Banco Econômico e presidente da Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto (Andima) também foi presidente do BC.

Com um breve interregno de Ernane Galveas, assumiu a presidência Carlos Geraldo Langoni, CEO do grupo NM Rothschild no Brasil e participante ativo no processo de privatizações ocorrido durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Affonso Celso Pastore, o número 9, foi indicado pelo então ministro da Fazenda, Delfim Neto, de quem havia sido assessor. O próximo presidente, Antonio Carlos Lemgruber, era membro do Bank of America. Fernão Bracher foi diretor do Banco da Bahia, vice-presidente do Bradesco e fundador do conglomerado financeiro BBA, mais tarde vendido ao Banco Itaú. Francisco Gros, duas vezes presidente do BC, era diretor da Multiplic Corretora. Durante o governo Sarney, o empresário Fernando Milliet de Oliveira, presidente do Banco Societé Générale Brasil AS também presidiu o BC. Wadico Waldir Bucchi era sócio e CEO na Previplan Consultoria. Persio Arida, presidente do BC durante a implantação do Plano Real, trabalhou no grupo Moreira Salles, foi diretor da Brasil Warrant, bem como membro do Conselho de Administração do Unibanco e do Itaú. Gustavo Franco, além de presidente do Banco Central, foi sócio fundador da Rio Bravo Investimentos e membro do Conselho de Governança do Instituto Millenium. Encerramos a lista com Armínio Fraga, diretor gerente do fundo de investimentos Soros Fund Management LLC e também Henrique Meirelles, primeiro presidente global do Banco de Boston.

É possível compreender a importância do Banco Central no processo de expansão do capitalismo brasileiro. Seu controle, por parte de agentes ligados ao capital financeiro e à exportação de commodities, permitiu o direcionamento da política cambial e dos investimentos estatais para a consolidação do modelo de economia brasileira baseada na grande presença do capital estrangeiro e forte concentração de renda.

Como falar em um Banco Central do Brasil autônomo, quando a maioria de seus dirigentes sempre foi de empresários, especialmente aqueles ligados ao mercado financeiro? Esta autonomia, na prática, nunca existiu, uma vez que o Banco Central do Brasil é uma agência controlada pelos representantes do bloco no poder que havia conquistado o Estado Brasileiro em 1964. Além da presidência, todos os espaços eram ocupados por membros com vínculo político e institucional ao setor financeiro, ou identificados com intelectuais orgânicos desta fração. Isto também pode ser constatado no exame das decisões tomadas pelo Banco, que poderemos examinar em outra oportunidade.

Segundo publicação do próprio Banco Central, a autonomia de direito, definida pela Lei Complementar n. 179/2021, alterando trechos da Lei n. 4.595/1964, “aumentou a probabilidade de decisões apropriadas”, ao desvincular a indicação de seu presidente ao mandato da Presidência da República. Decisões apropriadas para quem? Outra pergunta que precisamos nos fazer é: em que momento de sua existência, tanto como SUMOC, quanto como Banco Central, esta agência não esteve fortemente vinculada aos interesses dos grupos hegemônicos? Portanto, questionar a autonomia do Banco Central decidida em 2021 significa apenas identificar algo que sempre existiu de fato.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

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