Porto da Pedra: só nos resta cantar. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Warrãna-rarae, Warrãna-rarae, Mari-nawa-kenadêe.
Ecoam tambores na floresta.
Sou o remo da jangada, rumo à terra inexplorada”.
(A. Bigode e outros. Samba enredo. Porto da Pedra. 2023).

Mudou o carnaval ou mudei eu? Invejo damas e cavalheiros oitentões, que ainda têm energia para saracotear em blocos, trios elétricos e até nos desfiles das escolas de samba, como a filha do Lampião, de 90 anos. Durante um tempo, balancei meu esqueleto de bloco em bloco. Depois, desacelerei e me limitei ao Cordão Umbilical, o preferido de minhas netas. Quando o corpo exigiu, pendurei definitivamente a chuteira e, sentado no sofá, passei a acompanhar o carnaval pela TV. Hoje, nem no sofá.

O encanto pela festa mais popular do planeta continua firme, mas razões de saúde me impediram de ver o desfile da Porto da Pedra com esses olhos embaçados e ‘cataratentos’ que a terra, faminta, está querendo comer. Diferentemente de anos anteriores, não vi o que vou contar. Quem viu e me contou foi o “Precatório”, apelido de um ex-aluno, cunhado do primo da vizinha da tia do Arnaldo Bigode, um dos autores do samba-enredo da Unidos do Porto da Pedra.

Ele desfilou na Passarela do Samba, no sábado (18), com a Escola que homenageou quatro ativistas assassinados por defenderem a Amazônia, a floresta e seus habitantes: o indigenista Bruno Pereira, cujo canto em língua Katukina ecoou no Sambódromo, o jornalista Dom Phillips, a missionária católica Irmã Dorothy e o ambientalista Chico Mendes, o que nos faz perguntar se o carnaval é um dos lugares da utopia, isto é, se é uma inversão ou invenção de “realidades” sonhadas pela humanidade.

Invenção da Amazônia

O desfile começou com o carro abre-alas, trazendo o escritor Júlio Verne, que nunca esteve na Amazônia e jamais sonharia que seu romance publicado em 1881 estaria mais de um século depois na Passarela do Samba, descendo numa jangada pelo grande rio, de Iquitos a Belém, com negros e indígenas escravizados. La estavam os navegantes andinos, a Amazônia viva e a Amazônia em chamas, a ala dos ribeirinhos, os mitos amazônicos, incluindo Jurupari, o maior deles. Na comissão de frente a mãe natureza chorando sangue, em defesa da floresta e dos povos originários.

Muito antes, os integrantes da Escola mostraram que seu compromisso era pra valer, quando plantaram, em área de preservação ambiental de São Gonçalo (RJ), mudas de espécies da Mata Atlântica. Deste mutirão, fez parte o “Precatório”, que tatuou no braço um tigre, símbolo da Escola, nascida em 1978 do bloco de rua do mesmo nome, sempre antenada com as minorias discriminadas.

O enredo de 1997 “No reino da folia, cada louco com sua mania”, contou em suas alas com pacientes e médicos do Hospital Psiquiátrico Pinel. Era um convite para refletir sobre a loucura com a ajuda da ciência.  O Portal da Loucura foi seguido pelos carros do Menino Maluquinho e de Raul Seixas, o maluco beleza. O último carro era dedicado ao Bispo do Rosário. A bateria veio de Dom Quixote.

Além dos loucos, a Escola visibilizou em anos anteriores nos seus enredos: indígena, morador de rua, prostituta, marginais, presos, vítimas da violência policial, assim como personalidades do mundo da literatura e das artes: a escritora Maria Clara Machado, o ator Antônio Pitanga, o palhaço Carequinha, a Mãe Stella de Oxóssi, as cantoras “rainhas do rádio”.

Agora, A invenção da Amazônia deu o título de campeã da Série Ouro de 2023 à Porto da Pedra que volta à elite do carnaval carioca. A carnavalização e a desconstrução da ordem vigente, com humor e alegria, funciona como uma espécie de ultrassonografia que diagnostica as mazelas da sociedade brasileira.

As Escolas de Samba, com acentuado caráter pedagógico, sempre educaram e conscientizaram. O historiador Luiz Antônio Simas se referiu ao desfile do Salgueiro, em 1960, para esclarecer que “antes do Quilombo dos Palmares estar em livro didático, ele passou pela avenida”. E isso começou muito antes:

– Ao longo da história do Brasil, o carnaval foi uma festa altamente politizada. Já na década de 1880, trouxe a campanha abolicionista para as ruas, com as grandes sociedades do Rio de Janeiro desfilando e arrecadando dinheiro para fazer fundos de alforria” – escreveu Simas.

Remo da jangada

A ditadura empresarial-militar instaurada com o golpe de 1964 queria, no entanto, uma “escola sem partido”. Daí tornou obrigatório “temas patrióticos” para os enredos, o que levou o saudoso Stanislaw Ponte Preta a compor de gozação O Samba do Crioulo Doido. Em 1974, Martinho da Vila teve censurado seu samba Aruanã Açu em defesa do meio ambiente e – oh ironia! – a Vila Isabel foi obrigada a desfilar naquele ano, fazendo a apologia da Transamazônica, responsável por desmatamento e mortes.

Mas “esse Brasil diverso, transgressor, inventor, contestador e plural, que se manifesta no carnaval” continuou resistindo pelas “frestas do muro construído pelo Brasil Oficial”.  Para Simas, “o carnaval inventou o Brasil possível, o Brasil da diversidade, da solidariedade, da construção da sociabilidade”.

– Sou o remo da jangada – canta a Porto da Pedra, que reivindica assim o protagonismo de quem conduz o seu próprio destino e dá maior visibilidade ainda a Bruno Pereira e ao povo Kanamari. A Marquês de Sapucaí recuperou personagens esquecidos pela história oficial ou por ela vilipendiados, como fez agora a Viradouro com a escritora Rosa Maria Egipcíaca, nascida no Benin, assim como a Imperatriz Leopoldinense, que colocou Lampião na eternidade, propondo uma reescrita da história do cangaço, cada uma remando sua jangada.

“Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre glorificarão o caçador” – reza o provérbio Igbo da Nigeria. O carnaval é o próprio “leão historiador”. Viva o carnaval, que melhor que qualquer outro aparelho ideológico, faz a crônica do Brasil, subverte a memória, ressuscita aquilo que o caçador pretende enterrar e cria novas pautas para o livro didático.  No entanto, há quem condene a festa.

– Criticaram a gente por estar sambando, quando a chuva castigava São Gonçalo que ficou debaixo d´água, atingindo nove bairros. Não foi tão trágico como em São Paulo, mas houve desabamentos e mortes de vários moradores – me disse o “Precatório”, que na quarta-feira exibia uma cruz de cinza na testa feita pelo padre para marcar o início da Quaresma.

Bálsamo do tempo

Em resposta, lembrei ao meu ex-aluno o seminário sobre as línguas faladas no Brasil, realizado em março de 2006 na Câmara de Deputados, em Brasília, quando dona Fiota, filha de escravizados, falou não em português, que ela dominava, mas na Gira da Tabatinga, com a qual eles se comunicavam nas senzalas e ainda hoje usam em terras quilombolas. No final do seu discurso pediu licença para cantar e justificou:

– Nós sofremos tanto, nossa história é de tanta dor, tanto sofrimento e tanta violência, que o único consolo que temos é cantar.

E ela se pôs a cantar um canto melodioso, alegre e cadenciado na Língua do Negro da Costa, que é o outro nome da Gira da Tabatinga.

Talvez seja esse o “bálsamo do tempo” cantado pela Porto da Pedra. Afinal, nas palavras de Simas, “no Brasil, a festa nunca foi, de forma alguma, um componente dissociado à luta”.

Às “sobras viventes” escapadas da morte por desabamento, balas da polícia, do tráfico, da milícia, do garimpo, das armas, cujo uso foi incentivado pelo governo derrotado nas últimas eleições, só resta mesmo entoar o estribilho em língua Katukina consagrado pela Escola Porto da Pedra, o canto de esperança de Bruno Pereira, que introduziu uma vez mais o sagrado na Passarela do Samba:

– Wahanararai Wahanararai, marinawah kinadik

P.S. A antropóloga Beatriz de Almeida Matos, professora da UFPA, vai chefiar a diretoria que cuida dos povos isolados e de recente contato no Ministério dos Povos Indígenas. Ela é viúva de Bruno Pereira. Wahanararai Wahanararai, marinawah kinadik

Crônicas do blog Taquiprati sobre o carnaval:

1.  Olha o índio aí, gente! – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1327-olha-o-indio-ai-gente?

2. Os surdos, o carnaval e as milicias digitais: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1640-os-surdos-o-carnaval-e-as-milicias-digitais

3. Jurupari, Exu e o dr. Edilson no carnaval:  https://www.taquiprati.com.br/cronica/1638-jurupari-exu-e-o-dr-edilson-no-carnaval

4. As escolas de samba que alfabetizam – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1511-as-escolas-de-samba-que-alfabetizam:

5. Ninguém esquece um elefante: Tuiuti e Pretos Novos:   https://www.taquiprati.com.br/cronica/1383-ninguem-esquece-um-elefante-tuiuti-e-pretos-novos-espa

6. É carnaval: o bloco que desfila em latim:  https://www.taquiprati.com.br/cronica/1382-e-carnaval-o-bloco-que-desfila-em-latim

7. Me banca que eu vou: o meu face no teu book: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1076-me-banca-que-eu-vou-o-meu-face-no-teu-book

8. Carnaval, tamborim, surdo: Cabeça ruim? Pé doente? https://www.taquiprati.com.br/cronica/906-carnaval-tamborim-surdo-cabeca-ruim-pe-doente

9. Bombalá e os loucos foliõeshttps://www.taquiprati.com.br/cronica/845-bombala-e-os-loucos-folioes

10. Tá pirando, pirado, pirouhttps://www.taquiprati.com.br/cronica/100-ta-pirando-pirado-pirou

11. Borimbora, maninha, sambar lá na Suécia: o samba do caboco doidohttps://www.taquiprati.com.br/cronica/201-borimbora-maninha-sambar-la-na-suecia

12. Carnaval: olha o caboco educador aí, gente! https://www.taquiprati.com.br/cronica/255-carnaval-olha-o-caboco-educador-ai-gente

13. O Brasil inteiro cabe nas marchinhas de carnaval https://www.taquiprati.com.br/cronica/301-o-brasil-inteiro-cabe-nas-marchinhas-de-carnaval

14. Lições de carnaval: última aula de Darcy Ribeiro https://www.taquiprati.com.br/cronica/256-licoes-de-carnavalultima-aula-de-darcy-ribeiro

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