Tribunal Regional Federal da 1ª Região ratifica condenação de um dos mandantes da morte de Vicente Cañas, o Kiwxi

O pedido de anulação do júri foi rejeitado pela 4ª turma do TRF1 e confirma a sentença que considerou culpado um dos assassinos do missionário jesuíta

POR MAIARA DOURADO, DA ASSESSORIA DA COMUNICAÇÃO DO CIMI

Nesta terça-feira (28), foi julgado o pedido de anulação do Tribunal do Júri que condenou Ronaldo Antônio Osmar, um dos mandantes do assassinato do missionário jesuíta Vicente Cañas. A 4ª turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região rejeitou, por unanimidade, o pedido de anulação do júri e decidiu pela manutenção da sentença que declarou culpado o ex delegado da Polícia Civil de Juína, no Mato Grosso, de intermediar a emboscada que matou Kiwxi em abril de 1987.

A decisão confirma a sentença do júri realizado entre os dias 29 e 30 novembro de 2017, o segundo tribunal a apreciar o envolvimento de Ronaldo Osmar no homicídio de Vicente Cañas. O primeiro júri, ocorreu em 2006, quase 20 anos depois do assassinato do missionário, cuja decisão absolveu o ex-delegado.

A 4ª turma do TRF1 rejeitou, por unanimidade, o pedido de anulação do júri

Vicente Cañas – o Kiwxi, como era chamado pelo povo Enawenê-Nawê – foi brutalmente assassinado em sua cabana enquanto fazia quarentena para voltar ao território do povo com o qual viveu e atuou como indigenista por mais de dez anos. Kiwxi era visto como uma ameaça a fazendeiros e madeireiros da região que cobiçavam as terras dos Enawenê-Nawê que lutavam pela demarcação de seu território.

Ronaldo Antônio Osmar, na época, era delegado da Polícia Civil em Juína (MT) e intermediou o interesse dos fazendeiros não só se omitindo de suas funções, como arregimentando e orientando o grupo que tirou a vida do jesuíta.

Kiwxi era visto como uma ameaça a fazendeiros e madeireiros da região

Novo júri

Apesar da absolvição de Ronaldo Osmar em primeira instância, em 2015 o TRF da 1ª Região determinou a realização de um novo júri para julgar a morte de Vicente Cañas, atendendo ao pedido do Ministério Público Federal (MPF) que apontava a invalidade do primeiro julgamento, dada a desconsideração de provas substanciais apuradas durante o processo.

“Esse [segundo] júri foi então realizado na Justiça Federal do Mato Grosso em Cuiabá, e o júri condenou o senhor Ronaldo Antônio Osmar”, explica Paulo Machado Guimarães, advogado e assistente de acusação do caso junto a Michael Mary Nolan e Caroline Hilgert, assessoras jurídicas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que representam a família de Vicente. Nesse julgamento, o delegado Ronaldo Antônio Osmar foi condenado, por homicídio mediante emboscada, à pena de 14 anos e 3 meses de prisão por agenciar a morte de Vicente Canãs, ocorrida em abril de 1987.

“O júri condenou o senhor Ronaldo Antônio Osmar”

O pedido de anulação do júri se dá contra essa decisão, mas a negativa dada no recente julgamento da 4° turma do TRF1 ratifica a sentença. Com isso, “o tribunal confirma o julgamento que foi feito no estado do Mato Grosso, dizendo quem era o mandante desse crime e que a pena estabelecida a esse mandante está correta”, explica Felício de Araújo Pontes, procurador do MPF que fez a sustentação oral contra a argumentação da defesa do réu.

Para Paulo Guimarães e Michael Mary Nolan, que assistiram à acusação contra o ex-delegado e que acompanham o processo desde o começo, a decisão tem uma importância histórica. “[A decisão] confirma que realmente a violência [cometida] contra Vicente Cañas e contra os povos indígenas é crime”, declara Nolan. Para a assessora do Cimi, “conseguir uma condenação nesse tipo de processo é raro”, não só pela situação de violência e ameaça que viviam o povo Enawenê-Nawê, com o qual o missionário Vicente Cañas trabalhava, mas também pela dificuldade de se obter provas do crime.

“[A decisão] confirma que realmente a violência [cometida] contra Vicente Cañas e contra os povos indígenas é crime”

“A investigação teve dificuldades pois os Enawenê-Nawê não falam de uma pessoa após falecida. Nós precisávamos conversar com os Rikbatsa para que eles entrassem como testemunhas no processo, em um momento em que a violência estava ainda muito visível no Mato Grosso, como é até hoje”, lembra a advogada.

A ratificação dessa decisão na justiça mais de 30 anos depois do crime contra Vicente Cañas confirma algo que, para Michael, nem precisava ser confirmado, “a importância do trabalho dos jesuítas naquele período da história indígena no Mato Grosso”. Para Felício, “é o coroamento de uma luta por todos aqueles que querem que seja reconhecida a demarcação dos povos das terras indígenas no Brasil e um reconhecimento, embora tardio, da justiça brasileira pelos serviços prestados por Vicente Cañas aos indígenas brasileiros”.

“É o coroamento de uma luta”

Ronaldo Antônio Osmar é o último dos envolvidos no homicídio de Kiwxi ainda vivo, e responde em liberdade esses mais de 30 anos de processo judicial. O delegado aposentado e José Vicente da Silva foram os únicos acusados a ir à julgamento. Dos outros quatro, dois – os fazendeiros Camilo Carlos Obici e Pedro Chiquetti – já faleceram e outros dois – Antônio Mascarenhas Junqueira e Martinez Abadio da Silva – tiveram suas penas prescritas por terem mais de 70 anos. Destino este que deve seguir Ronaldo Antônio Osmar, hoje com 67 anos e mais de 30 anos transcorridos desde a ocorrência do crime.

Para Michael, mais importante do que a punição prisional é a justiça que se confirma com o julgamento. “A condenação foi justa e necessária […] São mais de 30 anos e pelo menos uma pessoa foi responsabilizada por uma morte tão sensível e tão brutal”.

 

Vicente Cañas, o Kiwxi

Vicente Cañas, o Kiwxi como foi batizado pelos Myky, nasceu em Albacate, na Espanha, em 1939, mas morreu como um Enawenê, povo que contatou em 1974 e com quem viveu até a sua morte, sendo considerado por seus membros como um deles.

Conhecido e estimado por diversos povos indígenas da região noroeste do Mato Grosso, Kiwxi possui uma importância histórica no trabalho indigenista junto a povos em isolamento voluntário ou povos livres. Nolan lembra que “ele estabeleceu a necessidade de ficar um tempo fora, em quarentena antes de entrar em uma área indígena, uma prática que continua sendo exigida até hoje”, explica a assessora jurídica do Cimi.

Para o missionário jesuíta, o contato com esses povos nada tinha a ver com pretensões de integração nacional. Kiwxi inaugura um trabalho de apoio à resistência destes povos a fim de garantir o direito de permanecer em seus territórios, cobiçados por fazendeiros.

“Ele estabeleceu a necessidade de ficar um tempo fora, em quarentena antes de entrar em uma área indígena”

O trabalho de Vicente foi também fundamental para o início do processo de demarcação da Terra Indígena desse povo. O missionário do Cimi integrou, de 1985 até seu assassinato, o grupo de trabalho que atuou no processo para demarcação das terras dos Enawenê-Nawê, que não considerou a região do Rio Preto (Adowina), parte da disputa que desencadeou a morte do missionário. A disputa segue ainda hoje no TRF1 junto ao município de Juína (MT) que pede a anulação da revisão dos limites da TI para inclusão do Adowina.

Vicente Cañas, o Kiwxi, se mantém vivo na história do indigenismo brasileiro e da presença missionária na causa indígena pelo compromisso assumido junto a esses povos, cuja intensa atuação levou ao martírio de sua morte. Para Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Cimi, a decisão judicial confirma não só a justiça à morte do missionário, mas a resistência e a esperança de quem trabalha com os povos indígenas. Vicente Cañas é “sempre exemplo para nós de resistência, de compromisso com a causa não só indígena, mas com a causa dos pobres, com a causa de Deus”.

Vicente Cañas junto a crianças Enawenê-Nawê. Foto: arquivo Cimi

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