Marina Silva: ‘Na minha opinião pessoal, a Petrobras não pode continuar a ser uma empresa de petróleo’

Em entrevista exclusiva a SUMAÚMA, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, fala sobre temas espinhosos como a exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas e a renovação da licença de operação da desastrosa hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu

por ELIANE BRUM, em Sumaúma

Até chegar à sala de Marina Silva, no Ministério do Meio Ambiente e (felizmente, agora também) Mudança do Clima, passei por vários funcionários empolgados. Há uma visível animação nos corredores do prédio modernista da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Para aqueles que sobreviveram aos anos de Jair Bolsonaro e seus ministros contra o meio ambiente, Ricardo Salles e o menos histriônico – mas não menos destrutivo – Joaquim Álvaro Pereira Leite, a mudança é tão radical que nem parece o mesmo prédio. Para os que chegaram agora ou retornaram depois do longo e tenebroso inverno que durou quatro anos que pareceram 40, a ideia de poder voltar a trabalhar a favor do meio ambiente vira essa alegria que é potência de agir, tão presente na floresta amazônica. E isso mesmo sabendo que voltaram para terra literalmente arrasada e que os desafios são imensos. Seriam em qualquer contexto, mas se tornam muito maiores numa estrutura material e humana “amputada”, reproduzindo a palavra que a ministra usa na entrevista a seguir, e com um orçamento que, apesar do aumento conquistado durante a transição, ainda é muito menor do que as necessidades.

Marina Silva estava sentada atrás de sua mesa de ministra quando eu entrei. É uma sala ampla e comprida, e há também uma grande mesa de reuniões. Ela veste roupas despojadas, de uma elegância sóbria, e usa um colar de inspiração Xavante mas feito com garrafas PET (infelizmente, não o da foto que ilustra esta página). Para Marina, a ética também se expressa pela estética. No estilo, ela carrega  a mesma ponte entre mundos que sustenta na vida, ao pertencer tanto à floresta amazônica, aos seringais do Acre, onde nasceu e cresceu, quanto aos círculos intelectuais acadêmicos, em que buscou completar seu conhecimento. Essa síntese nem sempre é fácil no exercício da política, mas na estética ela encontrou a simplicidade refinada que virou sua marca. Há também um recato que pode vir de sua fé evangélica na escolha de roupas sem decotes, cobrindo a maior parte do corpo,  diversa tanto da geração me too quanto da exuberância das indígenas que hoje circulam pelos ministérios carregando suas cores – e no cabelo crespo de sua ascendência africana, preso em um coque apertado e rajado de branco. No amálgama de tantas brasilidades, Marina parece ter criado uma sofisticação biodiversa.

A ministra prefere fazer a entrevista em sua mesa, o que mantém uma distância maior entre ela e seu interlocutor, e também marca uma posição hierárquica. Ela fica de um lado, eu e seu assessor de imprensa, Felipe Werneck, do outro. A entrevista durou uma hora e meia, um tempo considerável para uma pessoa num cargo público que trabalha tão duramente quanto ela.

Marina respondeu a todas as perguntas. As mais difíceis, e isso já se sabia, seriam sobre as toneladas de aço e concreto chamadas Belo Monte, hidrelétrica imposta no rio Xingu pelos governos do PT e agora de volta à mesa do novo governo, como se fosse um bumerangue gigante. Ao contrário do presidente Lula e de grande parte do PT, que seguem defendendo Belo Monte publicamente, nesta entrevista Marina chama Belo Monte pelo que comprovadamente é, tanto no dizer de suas vítimas quanto no dos especialistas em saúde mental que pesquisaram seus efeitos junto à população da floresta expulsa no processo de construção da usina: um “trauma”.

Outro tema que já se desenha como uma fonte de grandes divergências internas e externas é a exploração de petróleo na foz do Amazonas e o destino da Petrobras, não no discurso, mas na prática. Os combustíveis fósseis, hoje vistos como os grandes vilões que levaram – e ainda levam – o planeta ao superaquecimento global, têm uma positividade entranhada na alma da esquerda brasileira, especialmente a de origem sindical, de onde vem o PT. O pré-sal foi o funk ostentação do segundo mandato de Lula. E agora o petróleo precisará ser progressivamente substituído e a Petrobras deverá se tornar uma empresa de energias renováveis, isso se o Brasil quiser estar afinado com a parte esclarecida do mundo, a que não nega a crise climática, e se Lula quiser manter sua popularidade internacional e os investimentos que vêm com ela.

Marina Silva foi ministra do Meio Ambiente no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) e continuou no cargo no segundo até maio de 2008, quando deixou o governo e, no ano seguinte, o PT depois de uma gestão com conquistas notáveis. Naquele momento, ela afirma que deixou o governo “porque o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento estava sendo atacado com dados mentirosos por Blairo Maggi, Ivo Cassol, Evaristo Miranda e Mangabeira Unger”. Sua saída teria criado um fato político que levou o mundo a se opor à mudança de política para o desmatamento.

Quase 15 anos depois, em 2022, seu protagonismo na frente ampla que levou Lula à vitória foi decisivo para que voltasse ao cargo no terceiro mandato do petista. É na mediação com Marina, com a sociedade civil organizada e com os povos-natureza que o presidente vai cumprir – ou não – o compromisso com a Amazônia, os demais biomas e o enfrentamento da crise climática assumido publicamente.

A seguir, um encontro com a ministra Marina Silva.

SUMAÚMA: Marina, você está voltando ao ministério depois de quase 15 anos. Há uma euforia geral, de uma parte da sociedade brasileira, porque é um alívio ter um governo democrático depois de quatro anos de Bolsonaro. Mas você está pegando um ministério de terra literalmente arrasada. Como é acordar e dormir com isso?

Marina Silva: Olha, eu estou vivendo um paradoxo. São problemas de uma magnitude de deixar muito tensa, muito triste, muito preocupada. Mas eu estou vivendo também um momento de alegria, apesar de tudo isso. Há 20 anos, quando eu entrei aqui pela primeira vez, eu tinha 44 anos. Agora, estou com 65. E a sensação que eu tenho é a mesma, de preocupação e alegria. Mas eu espero em Deus que com um pouco mais de sabedoria.

[Em 2003], eu recebi esse ministério das mãos do Zé Carlos Carvalho [ministro do Meio Ambiente do governo Fernando Henrique Cardoso], o Lula recebeu o governo das mãos do Fernando Henrique, que lhe passou a faixa. [Agora] eu não recebi esse ministério de ninguém. Só estavam aqui alguns funcionários e também militares que estavam aqui mais pra sabotar do que para qualquer outra coisa, isso durante toda a gestão Bolsonaro.

Da outra vez a gente veio pra cá pra consertar um avião voando. [Agora] a sensação que eu tenho é que nós estamos fabricando o avião voando. Eu nem sei se a gente deve dizer isso, mas a gente está funcionando com 53% do Ibama [Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Quando eu cheguei aqui, há 20 anos, na área de fiscalização, havia 1.100 fiscais. Quando eu saí, em 2008, tinha 1.700 fiscais. Agora, eu estou pegando com 700 fiscais. Esse é o tamanho do desmonte – e isso só na fiscalização.

Não tivemos mais concursos,  as pessoas foram ameaçadas, assediadas, abandonadas amedrontadas. Quem podia se aposentar se aposentou, quem já estava perto adiantou a aposentadoria, quem conseguiu passar em outro concurso passou em outro concurso. Esse é o estado de coisas que encontrei no ministério. E se você for falar com cada ministério, eles vão ter o seu déficit. Não é só o ministério que está desfalcado, é um Estado desfalcado, é uma política pública desfalcada, instituições públicas que foram amputadas. Estamos fazendo aqui um esforço de, inicialmente, colocar algumas próteses para que a gente depois possa andar sem elas.

Todo mundo sabia que a área ambiental tinha sido arrasada [que passaram a boiada, nas próprias palavras de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro]. Você participou da equipe de transição e viu de perto o que tinham feito no ministério. Mas houve algo que, ao entrar aqui, a surpreendeu, que era ainda pior do que você imaginava?

Acho que tudo isso que eu estou mencionando: encontrar um Ibama com 53% do seu efetivo é bem pior do que a gente imaginava. Verificar o nível de sofrimento emocional e psicológico em que os servidores estavam era pior do que eu imaginava. Chegar aqui e escutar os servidores dizendo que só podiam chegar até uma determinada altura  [aponta um lugar bem distante de sua mesa de trabalho], com um sistema de barreira de segurança… É uma sociedade civil que não vinha aqui, né? Eu estou recebendo uma média de 50 pedidos de audiência por dia. Multiplique isso por 60 dias e é uma demanda represada enorme.

E como você lida com isso?

Primeiro suprindo essa deficiência, que é o que nós já estamos fazendo. Nós conseguimos um aumento de 19% no orçamento do ministério na PEC [Proposta de Emenda à Constituição] da Transição, né? Agregamos 560 milhões [de reais] ao ministério. Uma boa parte disso foi para as ações de fiscalização, para o PrevFogo, para o Bolsa Verde [programa que visa ajudar famílias em situação de extrema pobreza, incentivando práticas de proteção à natureza]. Esse aumento de 19%, apesar de estar longe do que nós precisamos, pelo menos nos colocou naquilo que era o período pré-Bolsonaro. O que nos dá mais força é o presidente Lula. Ele está dizendo que é desmatamento zero, ele está dizendo que mudança climática está no mais alto nível de prioridades, e a gente já vê que são 11 ministérios que criaram ou secretarias ou departamentos ou uma coordenação-geral sobre a questão de desmatamento ou sobre clima ou sobre bioeconomia.

O presidente Lula se comprometeu com a questão climática e com a Amazônia em discursos na campanha, na vitória, na posse e na Cúpula do Clima. Quando denunciamos o genocídio Yanomami, ele foi a Boa Vista [capital de Roraima] e levou com ele uma parte do ministério, mostrando que o Estado estava presente para proteger os povos indígenas. Isso tem uma imagem simbólica forte e importante. Mas, se você é presidente de um país e você não é um genocida, decidir barrar o genocídio é uma escolha fácil. Pode ser técnica e logisticamente difícil, mas eticamente é uma escolha fácil e é também uma obrigação constitucional. Logo virão as escolhas mais difíceis, as que realmente vão mostrar o tamanho do compromisso de Lula com a Amazônia e o enfrentamento da crise climática. E aqui eu estou falando da exploração de petróleo, de gás, de combustíveis fósseis. Sabemos que o petróleo é algo muito simbólico no Brasil pelo menos desde Getúlio Vargas [1882-1954]. Algo ligado à riqueza e ao progresso, algo que Lula adora, basta lembrar a foto que representou a pujança do seu segundo mandato, com as mãos sujas do petróleo do pré-sal. Em 2008, no segundo mandato de Lula, você deixou o governo e, em 2009, deixou o PT. O petróleo pode ser tema de discórdia neste terceiro mandato? Como você pretende enfrentar essa questão?

Temos que começar celebrando conquistas, para a gente não ficar sempre na estaca zero. Nós tínhamos um governo que fez a escolha pelo petróleo, fez a escolha pelo genocídio, fez a escolha por não vacinar, fez a escolha por não respeitar direitos humanos, fez a escolha por ser racista e fez a escolha por ser machista e homofóbico. E agora nós temos que celebrar o ganho de ter um governo que faz a escolha pelos indígenas, que faz a escolha pelos direitos humanos, que faz a escolha por desmatamento zero e que tem uma fonte de geração de energia da qual o mundo ainda não teve condições de se livrar, até porque não priorizou, que é o uso de combustível fóssil. É uma escolha difícil, não há dúvida.

Na minha opinião, e aí é a minha opinião pessoal, a Petrobras não pode continuar como uma empresa de exploração de petróleo. Isso é um desafio para o governo e um desafio para os seus acionistas. Ela tem que ser uma empresa de energia que vai usar inclusive o dinheiro do petróleo para fazer essa transição [energética], para deixar essa fonte que é altamente impactante para o equilíbrio do planeta.

Esse é um desafio que está posto como um objetivo a ser perseguido, mas nós sabemos que, se alguém decretar que essa fonte de energia está paralisada no mundo, com a capacidade instalada que temos hoje no mundo ainda não temos como suprir as necessidades de energia. Então temos que trabalhar na transição, por isso temos valorizado tanto a ideia de outras fontes de geração [de energia], e isso o presidente Lula tem dito. Inclusive para sermos uma solução para outros países que terão muita dificuldade em fazer esse abandono do uso do combustível fóssil, como é o caso sobretudo da Europa, com a dependência do carvão e do gás da Rússia. Temos que ampliar nosso suprimento de energia renovável, sobretudo do sol, do vento. E, em condições adequadas, possíveis, da água, porque sabemos do trauma que é Belo Monte.

Neste momento, a nova direção da Petrobras, a Petrobras deste governo, está levando adiante a exploração de petróleo na foz do Amazonas. Parece surreal que “petróleo” e “Amazônia” estejam na mesma frase em pleno século 21, num planeta em colapso climático, mas é o que está acontecendo. E essa questão está na mesa do Ibama. Como este ministério vai lidar com isso?

Eu estou olhando para esse desafio do petróleo na foz do Amazonas do mesmo jeito que olhei para Belo Monte. É altamente impactante, e temos instrumentos para lidar com projetos altamente impactantes, que é o instrumento da avaliação ambiental integrada, da avaliação ambiental estratégica. Não pode ser licenciado como um caso isolado, temos que olhar para a bacia. O instrumento da avaliação ambiental estratégica, que foi uma inovação durante o primeiro governo do presidente Lula, quando a Dilma [Rousseff] ainda era ministra de Minas e Energia, serviu para que evitássemos colocar em leilão algumas rodadas altamente polêmicas de petróleo. Esse instrumento pode ser utilizado em qualquer situação, desde que tenha uma complexidade. No meu entendimento, essa exploração tem essa complexidade.

Mas, na minha perspectiva, acho que é um debate que a gente precisa fazer não apenas como governo, mas como sociedade. Porque são escolhas, né? Nós conseguimos fazer uma escolha pela democracia. Foi dito claramente que é desmatamento zero, então estou considerando que já não é mais uma escolha só de um governo, de um grupo de partidos. Passou a ser uma escolha também de uma parte significativa de um povo que votou nesse projeto. Tem um elemento da sustentabilidade que é a sustentabilidade política. O tema do clima, o tema das florestas, o tema dos indígenas têm ganhado sustentabilidade política, e nós estamos aqui para trabalhar nisso. Claro, são contradições, são paradoxos, são mediações que estão sendo feitas com uma realidade que tem um nível de complexidade muito grande. É um país que tem que proteger suas florestas, tem que proteger seus povos originários. Tem que mudar a forma como produz alimentos para si e para o mundo, enfrentando o dilema de 33 milhões de pessoas estarem passando fome. Vamos conseguir dar conta dos 33 milhões passando fome se não tiver crescimento? Qual é o desafio para fazer com que [o país] cresça sem que isso signifique mais violência, até porque esse crescimento com mais desmatamento nunca resolveu o problema dos pobres. Pelo contrário, né? São escolhas que estão sendo feitas, e a gente lida com o princípio da realidade. Mas elas levam para um caminho. E é isso que eu vejo, eu sinto que o presidente Lula está com essa agenda com ele como um compromisso, não é? Eu acho que cabe a nós, como sociedade, a nós, como gestores, a nós, como cientistas, ajudar a dar sustentabilidade política, ajudar a dar sustentabilidade técnica, ajudar a dar sustentabilidade cultural a essa nova inflexão.

Mas há essa questão urgente do licenciamento para a perfuração do bloco 59 na foz do Amazonas, que está agora na mesa do Ibama. E é um processo que está chegando ao fim. Agora mesmo, em fevereiro, uma equipe da Petrobras foi ao Amapá falar com os indígenas, dizendo quanto seria maravilhosa essa exploração de petróleo lá. E isso está avançando. E estamos muito ansiosos por essa decisão. Qual vai ser a decisão do Ibama?

Se eu disser agora, será uma posição política. Se eu disser que nós vamos nos pronunciar nos autos do processo, será uma decisão de natureza técnica, o que não significa que esteja esvaziada de qualquer conteúdo político. O que eu posso antecipar é que temos instrumentos para trabalhar que já estão colocados como parte da realidade de um empreendimento altamente complexo e de alto impacto. Não pode ser um licenciamento puramente pontual, é preciso fazer uma avaliação ambiental estratégica e trazer para a mesa todos os elementos, as implicações de um projeto como esse.

Faz sentido a minha análise de que a questão do petróleo, dos combustíveis fósseis, pode ser um ponto de discórdia entre seu ministério e a Presidência, entre a senhora e o presidente Lula?

Olhe, eu estou com 65 anos. O presidente Lula, com 77 anos e assumindo os compromissos que ele está assumindo. Eu não quero botar o foco na ingresia. Eu quero botar o foco na sinergia, para ajudar a ter respostas. Nós estamos aqui pela terceira vez. De todo o governo, somos só eu e ele pela terceira vez. Foi uma escolha dele me chamar pela terceira vez. E foi uma escolha minha voltar pela terceira vez, com esse sentimento de que a gente pode ajudar a encontrar os caminhos em alguns casos, em outros casos novas maneiras de caminhar. E isso eu estou tomando emprestado do [poeta amazônida] Thiago de Mello [1926-2022]. Com 44 anos, eu cheguei aqui e, seis meses depois, o Congresso aprovou a Lei dos Transgênicos. Foi uma discussão muito intensa dentro do governo, mas o projeto que saiu da Casa Civil, por ordem do presidente Lula, saiu exatamente como nós desenhamos. [Previa] Um modelo de coexistência, íamos decretar algumas áreas livres de transgênicos. Esse foi o arranjo que nós desenhamos, o projeto foi para o Congresso e lá derrubaram esse modelo. Eu me lembro de que um grupo de ambientalistas veio aqui, me trouxe flores e um recado: “Está na hora de você sair”. Eu disse: “Mas nós estamos aqui há seis meses, será que essa questão dos transgênicos é o nosso Armagedom, algo que ao ser derrotado já é motivo de ir embora?”. E eu falei: “Pra mim, o meu Armagedom é a Amazônia”. E de fato foi. Eu não quero ser forçada a escolher um Armagedom agora.

Ministra, Belo Monte está de volta à sua mesa. A renovação da licença de operação da hidrelétrica está na mesa do Ibama desde o ano passado. Há várias condicionantes que até hoje não foram integralmente cumpridas [13 das 47], a Volta Grande do Xingu está secando porque a Norte Energia [empresa concessionária da usina] usa o rio como se fosse uma caixa-d’água gigante, e isso está causando uma catástrofe ambiental e humanitária. Bem, SUMAÚMA vem desse mundo, é baseada no Médio Xingu, e o povo de lá quer muito saber o que o Ibama vai fazer. Sabemos que reparação [no sentido de eliminar os danos causados] já não é possível, mas é possível fazer justiça e mitigação. Quem acompanha esse assunto de perto sabe que com frequência a equipe técnica do Ibama e seus pareceres foram ignorados para contemplar uma decisão política. O que vai acontecer agora que a licença de operação está de volta à sua mesa? Essa é uma pergunta que trago de gente que está sofrendo imensamente, cuja vida depende dessa decisão.

Esse ponto é bastante doído, o de que tem muita coisa que já não tem como reparar. O Ibama vai ter que olhar tecnicamente para esse pedido de renovação da licença. O que tem que não deve ser agravado, em questões que já estão claramente comprovadas? Não olhar para a curva [da Volta Grande do Xingu] como algo. Se [o rio] continuar sendo usado como caixa-d’água, como você acaba de mencionar, vai se agravar para além do que já se tem. Deve-se olhar e colocar todas essas questões para uma decisão que será encaminhada como resposta a esse pedido de licença para uma realidade que já está em três dimensões. A única coisa que eu posso dizer é que não tenho como responder a priori. Estamos inteiramente à vontade para fazer a análise. Esta é a diferença: ninguém será coagido, como vinha sendo, e isso já muda de figura completamente.

Mas a senhora pode garantir, como ministra, que as decisões técnicas do Ibama serão respeitadas?

Olha, eu nunca dei uma licença aqui que tenha sido por decisões políticas. Nunca foi dada uma licença por decisões políticas.

O povo do Xingu pode esperar, então, que as condicionantes de Belo Monte finalmente sejam cumpridas?

Você me faz perguntas que não estão ao meu alcance. Nós podemos estabelecer as condicionantes. Mas quem cumpre as condicionantes não é exatamente o Ibama. Nós podemos acionar os meios legais para que sejam cumpridas, porque senão se põe na responsabilidade do setor ambiental aquilo que às vezes é responsabilidade da empresa, aquilo que é responsabilidade da Justiça, aquilo que é responsabilidade de outros setores. E eu acho que esse peso a gente tem que tirar de cima do Ibama e do ministério. A nossa parte será feita. E eu espero que a gente consiga fazer em benefício do interesse público, da melhor forma possível.

A população da floresta pode ter a confiança de que não vai mais haver grandes hidrelétricas na Amazônia?

Vamos trabalhar para que sejam priorizadas outras fontes de geração de energia, até porque os grandes projetos, como Belo Monte, não resolveram os problemas de geração de energia e criaram outros problemas incomparavelmente mais graves, com prejuízos enormes do ponto de vista econômico, social e ambiental. Temos que olhar para outras coisas, mas obviamente que não é o ministério [do Meio Ambiente] sozinho. Nós temos o Ministério de Minas e Energia. Vamos trabalhar para priorizar outras fontes ou projetos que sejam de impactos reduzidos ao máximo possível.

A bacia do Tapajós, então, está livre de grandes hidrelétricas?

Bem, eu não posso falar pelo Ministério de Minas e Energia, certo? Por aquilo que o presidente disse, vamos priorizar outras fontes de geração de energia.

Nós acabamos de viver esse evento extremo, no litoral norte de São Paulo, em que a senhora inclusive sobrevoou a área de helicóptero para ver o alcance da destruição. Essa foi uma das primeiras vezes em que os mais ricos viram chegar até eles os efeitos diretos de um evento extremo da era da emergência climática. Apesar de a maioria dos mortos e desabrigados serem pessoas pobres, muitos dos mais ricos ficaram de repente confinados em suas mansões, o que pôs em xeque a ideia de que sempre estarão a salvo. Mas, mais uma vez, muitos deles se ergueram acima dos destroços em seus helicópteros, deixando no chão crianças, mulheres grávidas, velhos que pertencem às camadas mais pobres. Essa é uma imagem forte do apartheid climático. E, provavelmente, o que veremos a seguir é que, em vez de recuperar a infraestrutura da natureza, como os morros, vai se apostar mais uma vez apenas na recuperação da infraestrutura material, como as rodovias. Como fazer para que as elites entendam que, num planeta com uma ocorrência cada vez maior de eventos climáticos extremos, vai chegar o dia em que helicópteros não as salvarão? Porque ainda são as elites que, em grande parte, determinam as políticas públicas…

Infelizmente, colocamos em ação um processo [a crise climática] que nós não temos como controlar. Infelizmente, as emissões [de carbono] já mudaram as regularidades naturais estabelecidas, com as quais os seres humanos caminharam até aqui. E, por mais que a gente chegue agora a emissão zero, é possível que a gente não consiga mais reverter isso que já mudou. Então, vamos ter que nos adaptar a essas novas regularidades naturais. E essas novas regularidades naturais são mais  perversas para os mais pobres.

É por isso que as ideias de justiça climática, de racismo ambiental, entram como suporte político-filosófico-ideológico, para servir de apoio a essa adaptação. Essas pessoas precisarão de espaços seguros porque elas não terão helicóptero para voar acima da lama, para então poderem ir para os seus lugares seguros. Os lugares seguros precisam também existir para os mais vulneráveis.

Já há algumas situações em que os ricos também estão sendo afetados, como no caso da seca no Rio Grande do Sul. Talvez ela esteja prejudicando mais as grandes lavouras, o que não é desejável para ninguém. Como você disse, chega um momento em que não tem para onde subir de helicóptero. A única forma que nós temos é mitigar, mitigar, mitigar, adaptar, adaptar, adaptar. Por isso nós, desde a transição, já colocamos a questão de ter um plano para a prevenção dos efeitos causados pelos eventos climáticos extremos. Dentro desse plano estaria o Plano Nacional de Mitigação. Nós já temos uma série histórica [que permite saber] onde estão acontecendo recorrentemente esses eventos. Por que esses 1.038 municípios não recebem a condição de Estado de Emergência Climática, para que os orçamentos sejam alocados para essa emergência, para que as obras que precisam ser feitas não tenham que passar pelos mesmos processos morosos de uma obra que é feita em situação de normalidade? Ah, [dizem], mas isso pode levar à corrupção. A gente pode ter alternativas que deem uma estrutura de transparência, com Ministério Público, Tribunal de Contas, sociedade e academia acompanhando projetos determinados, seja de remoção de população, seja de infraestrutura de drenagem, seja de reflorestamento, que, como diz o [cientista do clima] Carlos Nobre, é o que há de mais eficaz para fazer essas contenções. Também temos que trabalhar com os sistemas de alerta, com as rotas de fuga, com os espaços seguros. Isso para a emergência climática já instalada, para o preventivo imediato. Precisamos também do preventivo de médio e longo prazo. Com uma emergência diagnosticada, é possível agir preventivamente, agir mais estruturalmente. A adaptação não dará conta se não tiver a mitigação [redução dos efeitos da crise climática], porque só vai agravar. A adaptação é para o que temos hoje. Precisamos da mitigação para não chegarmos ao ponto de não ter mais o que adaptar.

Existem várias realidades paralelas na Amazônia e no Brasil, mas conectadas. Há este governo, que tem sido um enorme alívio para todo mundo que viveu na floresta nos últimos anos e vem dando demonstrações da retomada pelo Estado de áreas dominadas por criminosos, como no caso da Terra Indígena Yanomami. Mas há, ao mesmo tempo, um Congresso lotado de destruidores da Amazônia e de outros biomas e um cotidiano nas cidades amazônicas em que grande parte das prefeituras e das câmaras de vereadores é dominada por grileiros, madeireiros e garimpeiros. Semanas atrás, por exemplo, o prefeito de Itaituba [no Pará] fez uma reunião pública para estimular os garimpeiros da região do Tapajós a seguir garimpando. Como enfrentar essas realidades?

Eu acho que a gente tem uma boa experiência, que foi provada por dez anos, com o PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, criado em 2004]. Foram dez anos de políticas públicas continuadas, mesmo com todas as dificuldades, que depois foram sendo enfraquecidas e, por fim, totalmente interrompidas por quatro anos. Agora, nestes quatro anos [de governo Lula], é manter a presença do Estado. Não é fácil, porque nós temos um conjunto de demandas neste momento. Precisamos olhar para todas as frentes. O que nós temos que parar é de ter a indústria que produz o dano ambiental. Essa é que tem que parar, porque daqui a pouco nós estaremos usando todo o efetivo e os recursos públicos para ficar enxugando gelo.

Esse é um freio que tem a ver com algo muito mais complexo, que é o freio da consciência política, porque nós também decidimos ser uma democracia. Quem vai escolher o prefeito é o povo, quem escolhe o presidente é o povo, quem escolhe os deputados é o povo, e estamos numa situação em que o povo, e infelizmente também o nosso povo da Amazônia, escolheu. Só há um deputado com tradição de resistência que voltou, que é o Airton Faleiro (PT). Os outros todos que vieram não vieram dessa tradição de resistência. Talvez tenham vindo novos comprometidos com essa agenda. Mas os que historicamente estavam comprometidos com essa agenda não voltaram. Então, tem um processo político de disputa que está posto e que tem que ser manejado com muita sabedoria.

É por isso que eu digo que, ainda que existam contradições, eu prefiro colocar o foco naquilo que fortalece. E é a visão política, a decisão política, a sensibilidade política do que vai a favor da preservação, do que vai a favor dos indígenas, do que vai a favor da mudança do modelo. Porque o outro lado já está aí, na lógica de que, para ter liquidez, tem que destruir alguma coisa, tem que destruir a floresta, tem que destruir recursos hídricos, tem que destruir a diversidade, tem que destruir os povos indígenas. Não é essa lógica que já vem desde 300, 400 anos? A outra lógica está sendo preconizada ainda de forma muito tênue. Quais são as vantagens de apostar nessa outra lógica [a da preservação e do respeito à diversidade]? Quais são os instrumentos econômicos que apostam também nessa outra lógica? Porque nem todos vão se mobilizar só pelo coração, como foi a nossa escolha de vida… Ou nem sei se foi uma escolha, né? Se foi uma cardiodecisão que já estava em nós antes mesmo de a gente ter a consciência política dela. Mas nem todos vão se mobilizar pelo coração. Vão se mobilizar pela razão, né? Mesmo que seja a razão ambiental, mesmo que seja a razão social.

Tem o Plano Safra para os grandes e médios, tem um Plano Safra para a agricultura familiar, agora vamos fazer o Pró-Floresta [se emociona], que é o  Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] dos extrativistas, dos castanheiros, dos geraizeiros, dos babaçueiros, das quebradeiras de coco, dos pescadores tradicionais, das comunidades indígenas naquilo que é a sua produção em conformidade com as suas escolhas endógenas, porque elas também têm uma produção valiosíssima.

Eu conversava com a ministra Margareth [Menezes, da Cultura], que gentilmente veio aqui me dar um abraço de aniversário, sobre a ideia de criar uma espécie de royalties para o uso dos motivos indígenas, da iconografia indígena. Quem usar terá que pagar royalties. Como é um processo coletivo,  é possível fazer um fundo que vai beneficiar a todos. Há coisas lindíssimas. Inclusive, este é um colar Xavante [aponta para um colar lindo no seu pescoço]. Eu tenho um original Xavante que ganhei, certo, mas essa pessoa aqui [que fez o colar que ela usa], acho que ela faz isso com garrafa PET. Há essas estamparias maravilhosas, que não cansam. Se eu usar uma roupa com flores todo dia ninguém vai aguentar, mas você olhar para [motivos indígenas] não cansa. Tem muitas coisas para a gente fazer numa outra frequência, numa outra direção. E me anima ver as pessoas em 11 ministérios falando da transversalidade.

Quando você lida com uma questão como essa, ela não tem critério de antiguidade. Não importa se a gente estava lá no começo. É importante que todos venham para essa agenda. É o ensinamento bíblico em que, na contratação dos trabalhadores de uma vinha, Jesus fala que uns foram contratados às 5 horas da manhã, outros ao meio-dia e outros no finalzinho da tarde, e no final ganharam todos o mesmo salário. Parece injusto, mas é que só dava para colher toda aquela colheita com os que chegaram na primeira hora, com os que chegaram na segunda hora e com os que chegaram na última hora. Porque, por mais que a gente esteja trabalhando desde sempre [na questão ambiental], só nós não vamos conseguir completar essa nova colheita. Então, precisamos dos que vêm agora e dos que virão depois, né?

Eu, antigamente, às vezes [pensava]: “Meu Deus, essa bisca tava até ontem aí…” [no lado oposto, o da destruição]. Depois, eu passei a me alegrar, sabe? “Caramba, tá percebendo, ela tá vindo. Mesmo que venha por uma outra lógica, com outras motivações políticas, ideológicas, estéticas.” Eu vou repetir agora uma outra coisa: seja por amor a Cristo, seja por vaidade, o importante é que [a pessoa] prega o Evangelho, porque a linguagem do amor fala por si mesma. A linguagem do que é bem-feito, a linguagem do que é ético e do que é estético fala por si mesma. O que eu vejo é esse esforço de a gente fazer com que essa agenda possa ser vencedora. Uma fagulha de luz pode acender outras luzes, né? Talvez seja por pensar assim que eu estou aqui, vivendo esse paradoxo de estar muito preocupada, mas ao mesmo tempo muito animada.

A subjetividade, a cultura, me parece o mais importante. O que chama atenção, na questão da Amazônia, é o desmatamento, a mineração, que são combatidos com ações de impacto. Pode ser que nunca seja possível recuperar a destruição destes últimos anos. Quanto tempo leva para recuperar um rio contaminado por mercúrio? Quanto tempo leva para reflorestar? Mas tem algo que aconteceu nestes últimos anos que me parece muito mais terrível, no sentido de que talvez seja impossível recuperar, que é a destruição da cultura. A maneira mais efetiva de destruir a natureza é pela destruição da cultura. Quando a gente vê adolescentes Yanomami que, no espaço de dois, três anos, foram levados de uma cultura tradicional, milenar, ao uso de álcool e cocaína, ao aliciamento de meninas Yanomami para a prostituição, ao uso de celulares – e não por conta dos celulares em si, mas porque isso entrou na vida deles de repente –, me parece que isso é irrecuperável, porque mudou por dentro. Vi isso acontecer também nas reservas extrativistas da Terra do Meio, essa mudança por dentro, que é a mudança da subjetividade, do seu ser e estar no mundo. Esse é o ataque mais eficaz de governos como o de Bolsonaro. E não há operação do Ibama que resolva. Eu queria te ouvir sobre isso.

As mudanças culturais não impactam o corpo físico, mas a alma. É o lugar do sentido, é o lugar da significação. Essas são as mais difíceis, as mais incontroláveis. Essa vizinhança que nós somos. É resultado do contato do humano com o outro ser humano. E não tem como esse contato ser asséptico, a não ser quando a gente parte da perspectiva de que somos dois reais diferentes, que podemos nos interpelar mutuamente, mesmo que seja para cada um caminhar mais profundamente na sua respectiva direção. Quando a gente parte desse ideal de mundo, aí é possível coexistir. Sem querer induzir que o belo é o que eu vejo, próspero é o próspero que eu acho, e não a beleza e a prosperidade da singularidade da condição social e cultural, da cosmovisão dos indígenas.

Infelizmente, a nossa cultura e a nossa civilização, como [diz] Caetano [Veloso], acham feio o que não é espelho. Mas, mais do que isso, odeiam, querem destruir aqueles que gozam diferente de nós. Aqueles que eu não consigo penetrar nem consigo entender. A não ser que eu parta do princípio de que eu não preciso penetrar, de que eu não preciso entender: eu só tenho que estar disposta a ofertar e receber. E oferta nunca será imposição. E o que eu recebo também não é imposição. Mas você não vê uma pessoa branca, da linguagem do Ocidente, que se transformou em um indígena. Mas você vê um processo que tentou arrancar do indígena a sua singularidade para transformá-lo em um ocidental.

E esse ódio inconsciente está aí, é ele que quer fazer que esse gozo diferente seja igual. Seja igual a mim. Acha que ser rico é ter os alimentos no celeiro e não no rio, acha que ser rico é ter as frutas uma plantada atrás da outra e não pra gente correr atrás delas na mata, subir no pé de cacau-de-macaco e subir no pé de bacuri e passar embaixo do pé de pama e comer a pama e ver o tempo em que o breu está todo branquinho na floresta e comer o breu porque você o achou no tempo dele, na época dele, e quando não tem breu eu consigo não comer breu e vou comer outra coisa, né? A gente não, a gente quer comer laranja o ano todo, melão o ano todo, uva o ano todo, morango o ano todo, e a gente não entende como é que tem uma forma que fica feliz de não ter o peixe no freezer porque prefere o peixe no rio.

Caramba, que bonito ter o peixe no rio, eu não sei viver tendo apenas o peixe no rio, mas esse é um modo de vida que eu quero que continue. Por isso a terra deve ser demarcada. Por isso não deve ter garimpo. Por isso não deve ter fazenda. Por isso tem uma parte que eu nem sei como é que é direito, porque nem deve ter contato comigo, porque essa é uma escolha e esse é o exercício do poder supremo. Porque o maior poder não é fazer aquilo que eu posso fazer e eu quero fazer. O maior poder é aquele em que, mesmo sabendo fazer, mesmo podendo fazer, mesmo desejando fazer, eu não faço. Como entrar na terra de quem quer ficar isolado.

Marina, não é por acaso que a primeira ministra dos Povos Indígenas é uma mulher, Sonia Guajajara, que a primeira presidenta indígena da Funai é uma mulher, Joenia Wapichana, que você, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que esteve nos dois primeiros mandatos de Lula e agora no terceiro, é uma mulher. Há um protagonismo crescente das mulheres na Amazônia e em todos os biomas, não só no Brasil mas no mundo, e há um consenso cada vez maior de que será só pela liderança das mulheres que será possível proteger a floresta e enfrentar a crise climática. Você concorda com essa ideia?

Esse olhar para esse tempo tem a ver com essa prática do cuidado. Do compartilhar, de fazer junto, de pensar junto, de não se prender aos modelos preestabelecidos. Pensando dessa forma, com certeza será o feminino que vai fazer. Mas não queremos essa outra parte, os homens, anulada do processo. Eu espero que eles sejam ativados por essa forma do feminino. Porque esse é o desafio do feminino, o de fazer as coisas não no modo cartesiano, em que você vai colocar todas as suas divisas em um líder, mas sim que elas estarão distribuídas nesse coletivo que somos nós. A gente precisa de um mundo sem heróis, e não sei se a gente vai conseguir alcançar esse mundo sem heróis, mas no dia em que não precisarmos mais de heróis eu acho que a gente vai descansar mais, vai dormir mais, vai se divertir mais, vai preguiçar mais, né? Porque o mundo dos heróis tem um peso muito grande sobre alguns, para fazer o que os transforma em heróis. E um peso também muito grande em outros, no que os faz anti-heróis. E, como os heróis são raros e os anti-heróis são muitos, significa que aquilo que os heróis fazem nunca será na quantidade certa para que possamos descansar.

Marina, você disse, no início da entrevista, que neste governo só estão você e Lula das pessoas do primeiro mandato, lá em 2003. Por que só vocês dois?
Como sou uma mulher de fé, acho que primeiro pela vontade de Deus e do povo brasileiro. E isso tem um peso para mim e para o presidente Lula. E não estou aqui me colocando em pesos iguais. O peso dele é incomparavelmente maior, a liderança política dele é incomparavelmente maior, e assim por diante. Na área ambiental, nós temos inúmeras lideranças políticas. A maior parte delas, mais competente do que eu. Então, de novo, significa que algo muito grande aconteceu. Talvez a gente precise que a fruta tenha que novamente adubar a semente. A semente da democracia, a semente das políticas públicas, a semente do respeito à legislação. Não sei se dá para entender bem a metáfora. Mas a fruta aduba a semente ao se decompor. Eu estou com 65 anos. O Lula está com 77. Ele está sendo a fruta que aduba a semente da democracia, e a gente tem que ter essa gratidão ao que nós temos hoje. Imagina se não tivesse [Lula], o que teria acontecido. O que iria acontecer se Bolsonaro ganhasse de novo? Que bom que, mesmo com tudo que aconteceu, ele [Lula] estava ali para ganhar essa eleição. E eu sou grata a Deus e ao povo brasileiro e a ele por estar aqui pela terceira vez, mas com a consciência de que tem muitas pessoas que poderiam estar aqui. A política não é só feita de técnica. A política é um processo vivo. Essas células, elas se refazem o tempo todo, mas existem alguns órgãos que são vitais, e esses órgãos vitais às vezes precisam ser preservados pelo corpo político, pelo corpo social, pelo corpo ambiental. E foi por isso que uma vez, no dia em que eu saí do ministério [em 2008], eu falei: “a derrota e a vitória a gente só mede na história”. Com certeza isso se aplica ao Lula. Ele foi preso e parecia definitivamente derrotado. Mas a derrota e a vitória a gente só mede na história.

Falando no que só se mede na história, qual é a importância de Bolsonaro ser julgado por genocídio dentro e fora do Brasil?

Tem uma importância de natureza ética, de natureza política, de natureza humana. Isso não vai reparar nada do que ele fez. Tem coisas que são tão maldosas que não têm punição, porque são um mal supremo, são a banalização do mal [referindo-se ao conceito criado pela filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt a partir do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém]. Mas é preciso que mesmo os banalizadores do mal sejam igualmente punidos, ainda que isso não repare a eles, no rumo do respeito à vida e à dignidade humana. Os seres humanos são capazes de fazer coisas maravilhosas e coisas terríveis. Então, essas punições servem para que nos percebamos como seres falhos, como seres incompletos, como seres que não são bons a priori.

Eu sei que está na hora de terminar a entrevista, mas SUMAÚMA tem o desejo de fazer jornalismo desde a Amazônia e há na floresta uma grande expectativa sobre o seu ministério. O que a senhora diria para os povos da Amazônia?

Olha, eu não vou dizer para os povos da Amazônia. Eu sou uma amazônida. Então, eu estou dizendo para mim, para nós. Talvez não seja o que a gente precise dizer para nós mesmos, mas o que a gente precisa dizer para os outros. E o que eu vou dizer eu já repeti muitas vezes. Que não sejamos vistos como problema, mas como solução. Que não sejamos vistos apenas como uma pergunta, como uma interpelação, mas como resposta. Que não sejamos vistos apenas como o estranho, o diferente, mas como a parte mais íntima, a parte mais viva, mais diversa, mais bela, mais forte, mais frágil da nossa realidade social, geográfica, cultural. E que não sejamos vistos apenas pelo olhar do desespero, mas sobretudo pelo olhar da esperança.

NO DIA 5 DE MARÇO DE 2023, MARINA ACOMPANHOU TRABALHOS DE ASSISTÊNCIA NA BASE FEDERAL INSTALADA NA TERRA INDÍGENA YANOMAMI, EM RORAIMA. FOTO: DIVULGAÇÃO/MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE E MUDANÇA DO CLIMA

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