Ligado a Bolsonaro, indígena do agro participou de furto milionário de madeira em terra indígena

Ronaldo Zokezomaiake, da etnia Haliti Pareci, foi condenado a quatro anos de reclusão por participar de furto toras de mogno e cedro rosa estimadas, em valores de hoje, em mais de R$ 22 milhões

Por Leonardo Fuhrmann, Tatiana Merlino e João Peres, em O Joio e o Trigo

Um condenado por furto de madeira em terra indígena foi escolhido como símbolo da política indigenista do governo Jair Bolsonaro. O líder indígena Ronaldo Zokezomaiake foi um dos anfitriões dos ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da Agricultura, Tereza Cristina, quando os dois foram, em fevereiro de 2019, participar da festa da colheita de soja dos povos das etnias Pareci, Nambikwara e Manoki.

Além deles, estavam na comitiva o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, e o secretário nacional de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR). A colheita, como já mostrou o Joio, foi realizada em uma área que estava embargada por decisão do Ibama devido a desmatamento e cultivo ilegal com grãos transgênicos.

Esses povos e sua produção de grãos foram apontados como exemplos positivos no discurso do governo Bolsonaro, defensor da monocultura em áreas indígenas e de que a produção em larga escala em “parceria” com latifundiários seria uma forma de tirar os povos originários da miséria e garantir a independência deles. Aliado do então presidente e dos ruralistas, Mendes chegou a propor programas estaduais para financiamento e outras formas de apoio para as monoculturas em territórios tradicionais.

Zokezomaiake era presidente da Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti-Parecis, Nambikwara e Manoki (Copihanama), criada em 2018 e responsável pelo plantio dentro dos territórios. E assim se tornou uma voz ouvida por diversos veículos de imprensa, de como a soja seria uma solução para a fragilidade econômica em que viviam muitas dessas comunidades, carentes na fauna e da flora originais de suas regiões e com seu modo de vida tradicional devido ao avanço do agronegócio.

Agro em terras indígenas

O indígena participou também de audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, em outubro de 2019, para defender essas propostas. O convite foi feito pelos então senadores Márcio Bittar (MDB-AC), Chico Rodrigues (DEM-RR), Jayme Campos (DEM-MT) e Soraya Thronicke (PSL-MS), na época presidente da CRA. Todos os parlamentares listados faziam parte naquele momento da base bolsonarista. Na ocasião, ele disse que sua comunidade optou pela produção agrícola em razão do alto índice de desnutrição de seu povo, nos anos 1990. Disse, também, que a burocracia e normas legais geram entraves à produção indígena e impedem a regulamentação de muitos projetos.

Enquanto era recebido com honras por grupos favoráveis aos ruralistas, notadamente ligados ao ex-presidente, Zokezomaiake cumpria pena em regime aberto por ter participado do furto de madeiras de lei de uma terra indígena em Comodoro (MT), município a cerca de 130 quilômetros de Sapezal, onde mora. A condenação em primeira instância foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Como não tinha antecedentes criminais e a pena era de quatro anos, Zokezomaiake teve sua pena convertida para prestação de serviços à comunidade.

No final de 2021, o Ministério Público Federal enviou um ofício para a Justiça estadual do Mato Grosso para saber se as horas de serviço comunitário tinham sido cumpridas. É o procedimento normal para que a pena seja considerada extinta. A Justiça, no entanto, não conseguiu citar Zokezomaiake até fevereiro deste ano, última movimentação que consta no processo. Um funcionário da Funai assinou a citação.

O crime foi cometido em agosto de 1997 e o indígena foi preso em flagrante pela Polícia Federal junto com seis pessoas, que não tinham qualquer relação com a comunidade indígena. Seu pai também estava no momento da detenção, mas não havia provas suficientes de que ele havia participado do crime.

Os policiais federais faziam naquela madrugada a Operação Madeira Livre, na Reserva Indígena de Comodoro, habitada pela etnia Nambikwara Mamaindê, por conta dos constantes ataques de madeireiros ilegais contra o território. Foi assim que flagraram um caminhão saindo do local com 10 toras de madeiras nobres. Um outro veículo vinha logo atrás com um trator que foi usado para a retirada das toras e a sua colocação em cima do caminhão.

Segundo a perícia feita pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a carga total era de 16.780 metros cúbicos de mogno e cedro rosa, o equivalente a dez toras. Na época, a carga estava avaliada em R$ 2,7 milhões. O valor, atualizado pelo Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), supera R$ 22 milhões. Os agentes acreditam que as árvores foram derrubadas na madrugada anterior e apenas o transporte estava sendo feito naquele momento. O grupo havia se articulado em diferentes funções para que o crime fosse cometido.

A função de Zokezomaiake na ação era conferir se as toras retiradas correspondiam ao valor combinado. Ele tinha conduzido os outros participantes da ação para o local onde a madeira seria retirada. Em sua defesa, ele alegou que apenas cumpria as ordens do líder da terra indígena, mas a Justiça considerou que não havia relação hierárquica entre eles, até por Zokezomaiake ser morador de outra aldeia, distante de lá. Segundo outro participante do crime,  o indígena, hoje produtor de soja, chegou a comentar que tinha outras cinco toras de mogno em ponto de corte em outra área daquela mesma reserva.

Ele foi condenado, pela Justiça Federal, a quatro anos de reclusão e ao pagamento de 90 dias-multa, fixados com base no salário-mínimo. Os demais participantes da ação também foram condenados a penas que variavam entre 3 e 4 anos de prisão. O crime foi julgado pela Justiça Federal porque as terras indígenas são áreas da União.

Esta matéria faz parte da série de reportagens “O feroz e o encantado”, sobre os projetos de produção de soja nas terras indígenas das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara, o histórico da produção de monocultura, as tentativas de licenciamento da área, os aspectos positivos e negativos da lavoura, a relação com Ibama, Funai e MPF. Essa série integra o projeto “Entre a soja e o Cerrado”, que investiga o avanço do agronegócio em terras indígenas.  Para conhecer os projetos, em agosto de 2022, a equipe do Joio dirigiu mais de 2 mil quilômetros e circulou por cinco terras indígenas das três etnias, no Mato Grosso, onde entrevistou cerca de 20 pessoas.

Soja 

Meses atrás, Ronaldo recebeu a reportagem do Joio na Terra Indígena Utiariti, em Campo Novo dos Parecis (MT), onde comanda, junto com Arnaldo Zunizakae, o projeto de agricultura mecanizada. Orgulhoso da produção de soja que comanda na Aldeia Bico do Papagaio, ele elogiou o governo de Jair Bolsonaro, “que passou a acreditar no projeto e a defendê-lo. E hoje o próprio governo federal, através do presidente Bolsonaro, tem esse projeto como modelo a ser implantado para os outros povos que queiram também buscar a sua autonomia econômica através de sustentabilidade.”

Ronaldo foi o primeiro presidente da cooperativa indígena, criada em 2018 para representar a produção das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara. Oficialmente, os Pareci plantam soja desde 2003. Em junho de 2018, cinco terras indígenas das etnias foram embargadas pelo Ibama. Os indígenas foram multados por desmatamento sem licenciamento ambiental, plantio de soja transgênica na área indígena e arrendamento de terras para não-indígenas. Em 2019, eles assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ibama, a Funai e o MPF para produção agrícola sem a participação de não-indígenas e sem transgênicos.

Procurado pelo Joio, Ronaldo Zokezomaiake afirmou que considera a condenação um problema pessoal. “Não sou mais presidente da Copihanama e não sou um líder nacional dos indígenas. Sou um líder apenas do meu povo”, disse. Ele também se comparou ao presidente Lula. “Ele também foi réu e foi eleito presidente da República e ninguém fala nada”, acusou. Diferentemente do presidente, que teve suas condenações anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ele teve sua condenação confirmada em instância superior.

Sobre o crime em si, Zokezomaiake reafirmou a versão rejeitada pela Justiça, de que ele apenas estava fazendo um serviço para o líder daquela reserva. Também alegou que não tinha conhecimento da irregularidade do furto de madeiras. “A gente aprende que a área pertence aos indígenas e entende que eles podem fazer o que quiserem dentro da casa deles”, diz. “Após a condenação, passei a fazer tudo conforme as orientações da Funai e do MPF”.

Ele afirma ter cumprido a pena em serviços administrativos na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) entre 2012 e 2014. “Houve um erro de comunicação entre a Sesai e o MPF, por isso, que não consta. Já contratei um advogado para regularizar a situação”, diz. Segundo ele, a Sesai tem em seus arquivos toda a comprovação de que a pena foi totalmente cumprida. Zokezomaiake também afirma ter pago também a pena em dinheiro. Ele conta que respondeu pelo crime em liberdade, depois de ter passado 27 dias preso em razão do flagrante.

Procurados pelo Joio, Soraya disse que não se pronunciaria sobre a sessão da comissão com a participação do indígena. Jayme Campos afirmou que não participou da audiência na íntegra. Já Chico Rodrigues disse não conhecer os antecedentes criminais do indígena mas que acredita que “essa informação não comprometeu os depoimentos e ensinamentos compartilhados na audiência, sobre a experiência daquele povo no desenvolvimento de sua atividade agrícola e na autodeterminação enquanto povo indígena”.

Área de produção na Terra Indígena Utiariti, onde vivem indígenas das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara, Foto: Fellipe Abreu

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