Os anos a partir de 2016, especialmente, marcaram uma verdadeira marcha a ré no processo de integração regional da América do Sul. Esse processo já vinha se complicando desde a década passada. Primeiro, com a entrada em cena de uma China pujante no comércio com os países da região, o que é positivo, mas aprofundando um modelo de integração comercial em que os países sul-americanos se especializam em exportação de produtos primários e extrativistas, como commodities agrícolas, minerais e energéticas, o que é um complicador. Depois, com a própria conjuntura a partir da crise de 2007-2008, que reconfigurou prioridades dos países da região, em particular o Brasil. E, finalmente, com a onda que foi sendo criada do ponto de vista político, algumas vezes eleitoralmente, outras através de mecanismos não institucionais ou maquiados como institucionais, em que vários dos governos na região que buscavam construir alternativas foram sendo substituídos por governos liberais, alinhados com o projeto de integração da América do Sul como fornecedor de commodities nas cadeias globais de produção.
A partir do governo Bolsonaro, o Brasil não apenas reforça essa tendência, mas também se isola dentro da região e no mundo, movimento assumido pelo próprio governo de então como uma espécie de estratégia frente ao que chamavam de “globalismo”.
No período mais recente, em especial a partir da eleição de Lula no Brasil, o novo crescimento de um processo de busca de alternativas pelos países da região (e não só da América do Sul, pois esse processo há algum tempo envolve, por exemplo, o México) voltou a tomar força, apesar de os processos eleitorais terem sido bastante polarizados, com pequenas diferenças nos resultados eleitorais, como mostraram Chile, Peru, Equador, Colômbia, Argentina e o próprio Brasil. Desta forma, o tema da integração regional volta a assumir um papel importante na pauta de discussões, assim como a retomada da institucionalidade que havia sido regionalmente construída no período anterior de busca de construção de alternativas (como o Mercosul, a Unasul e a CELAC, entre outros mecanismos).
Esse cenário mostra ter fôlego para os próximos anos, em especial por processos marcantes no cenário internacional que afetaram a própria lógica da produção existente e prevalecente com o neoliberalismo. Primeiro, com o governo Trump nos EUA e uma tentativa dos EUA de endogenizar a dinâmica produtiva. Mesmo antes disso, já havia críticas sobre a distância dos processos globais de produção e os efeitos de gastos de energia desse processo, e os impactos ambientais desse consumo energético. Depois, com a pandemia do coronavírus e a disrupção das cadeias globais de produção pelo efeito das desconexões causadas por fechamento de portos e fronteiras, paralisação da produção em alguns momentos em alguns países chave da cadeia global, como a China, e a chamada “crise dos containers” que serviram para instabilizar o sistema. Finalmente, com a Guerra da Ucrânia, que levou a uma politização maior das cadeias de produção, onde parceiros não totalmente confiáveis politicamente deveriam ser evitados. Assim, pouco a pouco houve um rearranjo (que está em curso) das cadeias globais de produção no sentido de seu encurtamento e de um encadeamento politicamente mais “confiável”, o que não é um processo simples.
Independentemente do detalhamento e da temporalidade dos processos, o fato é que do ponto de vista regional, na América do Sul, esse movimento abre um espaço e pode funcionar como uma força no sentido de dinamizar o processo de integração entre os países da região. E isso é particularmente verdadeiro entre os países que mantém alguma estrutura e memória (embora em alguns já bem enfraquecidas) do que foi o processo regional de industrialização, em especial Argentina, Colômbia, México e Brasil. Ou seja, esse processo internacional pode ajudar não apenas uma retomada industrial na região, como a montagem de cadeias regionais de produção.
Se esse processo puder seguir adiante, é importante que questões importantes para os novos governos da região, como o tema da inclusão social e o tema ambiental sejam a ele conectadas, pois apareceram em todas as disputas eleitorais que tiveram lugar na região no último período, defendidas pelas forças políticas do campo progressista em cada um dos países.
O Brasil pode assumir um papel importante, pois é visto pelos povos e governos da região que buscam alternativas, como o país que tem a maior capacidade de impulsionar esse processo, pelo tamanho da sua economia, conexões geográficas com múltiplos países, estrutura produtiva e tamanho populacional e de suas estruturas financeiras. Nesse quadro, o Brasil pode ser pensado como um importante protagonista do processo, em especial pelo discurso de integração regional levado adiante por seu atual governo. A grande questão aqui talvez seja a fragilidade política desse processo, onde o governo foi resultante de um processo eleitoral altamente polarizado, em que na sua base política acaba contando com forças econômicas e sociais bastante simpáticas, para dizer de uma forma generosa, a um modelo econômico baseado na exportação de commodities e na dominância dos capitais vinculados à especulação financeira. E qualquer movimento transformador partindo do âmbito político interno pode se mostrar frágil por essa composição política. Dessa maneira, o “gigante” (como o Brasil é visto de fora) pode ser muito mais frágil do que aparenta, sustentado por “pés de barro”.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone