Meritocracia hereditária. Por Hugo Albuquerque

Como sempre acontece no Brasil, famílias se perpetuam no poder em processos de sucessão enquanto defendem o mantra liberal da meritocracia. É o caso de Roberto Campos Neto, presidente do “independente” Banco Central, que segue a missão de seu avô na implantação do capitalismo selvagem no país desde a ditadura.

Na Jacobin

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC), é a bola da vez. Defensor de uma política de juros altos, ele é o guardião do neoliberalismo em tempos em que Lula retorna ao Planalto. Beneficiado pela “independência” do BC e nomeado por Jair Bolsonaro, ele ganhou um “mandato” que vai até 2024, atravessando metade do governo Lula.

Ironia das ironias, o próprio Campos Neto se vê como um ministro de Bolsonaro, figurando no grupo de Whatsapp de “ministros” — e é isso que na prática ele é, um ministro extemporâneo do governo anterior. A tal “independência” do BC sempre foi o sonho de dez entre dez neoliberais, pois, na prática, tira aquilo que é o coração das finanças do país das mãos do governo eleito.

Argumentos como a necessidade de “autonomia” e “blindagem contra pressões da política” são apenas algumas das muitas falácias que se atropelam, uma vez que se fosse o caso, certamente o primeiro presidente do BC “independente” não deveria ser o ministro nomeado pelo presidente em exercício, que ganhou, na prática, uma extensão de mandato. A “independência do BC”, pelo jeito, é apenas dependência em relação ao poderoso oligopólio de bancos e da direita bolsonarista.

Para além das variáveis econômicas dessa “independência”, é necessário lembrar quais as razões que fizeram de Campos Neto o homem certo para essa missão. E isso não se deve apenas por ser um neoliberal convicto, mas também um herdeiro do clã ligado ao comando da política econômica, cujos vínculos vêm dos anos 1940 e seu avô, o Roberto Campos original.

“Poucos dias depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, Roberto Campos se torna o poderoso ministro do Planejamento da ditadura.”

Na vanguarda do capitalismo nacional

Quando a ciência econômica apenas engatinhava no país, Roberto Campos avô teve um início de carreira curiosa, estudando filosofia e teologia. Depois, ele passou no concurso do Itamaraty, o que o levou a servir nos Estados Unidos dos anos 1930.

É nessa época em que ele se aproxima de Eugênio Gudin, o decano dos economistas liberais no Brasil, que chefia a delegação brasileira na famosa Conferência de Bretton Woods – que molda a organização do capitalismo internacional, ainda em 1944, quando a Segunda Guerra já caminha para o seu fim, com uma vitória certa dos Aliados, o que legaria ao mundo um bloco capitalista sob a liderança dos Estados Unidos.

Com menos de 30 anos, o jovem Roberto Campos é testemunha do episódio que definiu as linhas do capitalismo mundial, pelo menos, até os anos 1970. Enquanto Gudin permanecia no protagonismo da ala pró-Estados Unidos do getulismo, Campos cresceu junto do seu mentor.

“O americanizado Roberto Campos lhe valeu o apelido de Bob Fields, em uma referência à sua postura entreguista.”

Nos anos 1950, Campos participou da criação do BNDES e depois serviu como seu presidente no final dos anos 1950. Membro da comissão mista Brasil-Estados Unidos, ele foi mais tarde nomeado por João Goulart como embaixador nos Estados Unidos — em um momento de ardente conspiração de Washington, o que viria a culminar no golpe de 1964.

E é aí que Roberto Campos ascende e encontra seu lugar na história.

Nasce Bob Fields

Poucos dias depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, Roberto Campos se torna o poderoso ministro do Planejamento da ditadura. E na esteira disso, cria meses depois o Banco Central – antes, as atribuições do banco eram exercidas por uma série de órgãos, entre eles o Banco do Brasil.

O americanizado Roberto Campos lhe valeu o apelido de Bob Fields, em uma referência à sua postura entreguista, o que chegava a ser um eufemismo perto de sua atuação conspiratória em alto grau, cujos anos na embaixada brasileira em Washington foram centrais para o golpe de 1964.

Ainda defensor de alguma intervenção do Estado na economia, Campos já inovava com a defesa da austeridade fiscal, o que lhe valeu a inimizade dos governadores de Rio e São Paulo, respectivamente, Carlos Lacerda e Adhemar de Barros – dois insuspeitos apoiadores da ditadura.

Depois de 1967, Campos avô não ocupou mais nenhum cargo ministerial, mas foi o pai da ordem econômica da Constituição daquele ano – na verdade, a adulteração não democrática da Constituição de 1946, feita de cima para baixo pelos militares e seus apoiadores civis.

“Quando ele era colega de bancada do também ex-ministro da ditadura Delfim Netto, ele teria confidenciado: ‘Delfim, perdi muito tempo. Só deveria ter lido Hayek’.”

Anos depois, Campos fará mais uma inflexão para a direita, quando a onda neoliberal varreu os países do Norte global. É aí que ele se lança primeiro como senador pelo seu estado natal, Mato Grosso, e depois se elege deputado federal pelo Rio de Janeiro – todas as vezes pelos partidos que sucederam a antiga Arena, o partido de sustentação civil da ditadura.

Nos anos 1990, quando ele era colega de bancada do também ex-ministro da ditadura Delfim Netto, ele teria confidenciado: “Delfim, perdi muito tempo. Só deveria ter lido Hayek”. Ele mesmo, Friedrich Hayek, um dos protagonistas da Escola Austríaca, que a partir dos anos 1970 iria contra-atacar o bem-estar social, depois de ter relativizado o papel do fascismo nos anos 1930-1940.

Nada de novo sob sol, Delfim e Campos eram, naquela altura, também colegas de bancada de Jair Bolsonaro, depois de terem colaborado ativamente com a ditadura militar e jamais rompido com seu legado – tanto que se elegeram e reelegeram várias vezes para mandatos parlamentares pela ultradireita.

Enquanto cumpriam um papel intelectual e polido, entre palestras universitárias e artigos para a grande mídia, deixavam o papel de defesa pornográfica da ditadura para o jovem deputado Bolsonaro, futuro presidente do Brasil.

O jovem Campos Neto

O velho Roberto Campos se foi em 2001, depois de sua radicalização e uma derrota para o progressista Saturnino Braga nas eleições para o senado do Rio em 1998.

Antes, ele já tinha deixado um filho com o mesmo nome, com atuação no sistema financeiro. E depois de Roberto Campos Filho, seguiu Roberto Campos Neto, mantendo o nome da dinastia, cuja carreira no setor privado foi interrompida com o convite de Bolsonaro para que ele assumisse o Banco Central.

“Nada a se estranhar. Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, sempre enfatizou a necessidade de protagonismo da família e dos vínculos sanguíneos no poder.”

Como quase sempre no Brasil, famílias se perpetuam no poder às vezes em processos de sucessão quase literal. Aqui é um desses casos. A fidelidade dos Campos ao projeto de capitalismo total – que os militares por diversas ocasiões levaram a cabo – parece ter sido um fator decisivo da escolha.

Nada a se estranhar. Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, sempre enfatizou a necessidade de protagonismo da família e dos vínculos sanguíneos no poder: do projeto dinástico da família Bolsonaro aos vários Robertos Campos, tudo faz sentido no projeto de poder que abalou o Brasil nos últimos quatro anos – e que de alguma forma se estende para além dos quatro anos de Bolsonaro, em virtude do mandato de Campos Neto.

Em um momento chave da vida do Brasil, o Banco Central não está nem um pouco preocupado com os rumos da economia. Manterá os juros nas alturas para agradar os bancos, muitos deles também empresas familiares, passadas de pai para filho, enquanto toda e qualquer migalha para a mais de uma centena de milhão de famintos será julgada duramente como “gasto público”.

Nada de novo no front, a necessária missão do socialismo no Brasil é pôr fim a um sistema no qual direta ou indiretamente famílias oligárquicas se reproduzem no poder, indicando seus filhos, netos e bisnetos – enquanto a “meritocracia” é quase sempre um argumento para defender isso e alijar os trabalhadores do poder.

HUGO ALBUQUERQUE é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

 

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