O desafio de distribuir a renda no Brasil

Por João Hallak Neto, em Terapia Política

A distribuição funcional da renda refere-se à repartição da renda gerada na economia pelos fatores utilizados na produção. O termo funcional indica que a repartição da renda é determinada de acordo com a função desempenhada pelos agentes no processo produtivo, se proprietários de capital, da força de trabalho ou responsável pela arrecadação e alocação dos impostos. Tais relações contribuem para a avaliação dos padrões distributivos nas sociedades.

Considerando que as remunerações incluem os salários e as contribuições sociais recebidas pelos assalariados e o excedente operacional é o rendimento das empresas (financeiras e não financeiras), dos proprietários de imóveis, de terras e de outros ativos; e que a renda gerada na economia também inclui o montante destinado aos impostos sobre a produção, as condições econômicas e sociais são determinantes para o resultado da distribuição funcional. Fatores como a organização produtiva, o peso e a forma de tributação, o valor do salário mínimo e o grau de organização sindical, bem como os efeitos de políticas econômicas, têm impactos sobre como a renda é distribuída entre os distintos agentes institucionais.

O estudo da distribuição funcional é importante sobretudo para países que historicamente apresentam renda desigual, como o caso do Brasil. Internacionalmente, este tema está no âmbito da Agenda 2030 para o acompanhamento de indicadores sociais, econômicos e ambientais dos países membros da ONU. O indicador “participação das remunerações do trabalho no PIB” faz parte do Objetivo 10: “Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles”.

Como evoluiu a distribuição funcional no Brasil nos últimos anos? A política de valorização do salário mínimo contribuiu, de fato, para uma melhor distribuição funcional da renda? Como foi sua trajetória depois do fim do ciclo de crescimento econômico do país, após 2014? E, em seguida, durante o aprofundamento da crise econômica e da estagnação que o Brasil viveu nos anos seguintes? Utilizando a nomenclatura apresentada por Pochmann (2022), em que o período recente da história política brasileira é classificado em mandatos presidenciais denominados Neoliberal (1994-2002), Trabalhista (2003-2015) e Ultraliberal (2016 em diante), a pergunta adicional é se as distintas tendências políticas que governaram o país entregaram resultados diferenciados para a participação da remuneração do trabalho no PIB brasileiro.

Os resultados, obtidos a partir da base de dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE, indicam que houve queda da participação da remuneração do trabalho até 2004, sendo que após esse ano, ao contrário, houve permanente tendência de crescimento que vigorou até 2015. De 2016 em diante, entretanto, a remuneração do trabalho sobre o PIB assumiu tendência inversa, com estagnação e posterior redução até 2020, último ano disponível.

O comportamento favorável aos trabalhadores, entre 2004 e 2015, pode ser atribuído a fatores externos e internos. Em um primeiro momento, prevaleceu o crescimento da economia mundial e o aumento das exportações brasileiras, o que beneficiou a economia dos países emergentes. Entretanto, após a crise internacional de 2008 e a retração dos mercados mundiais, foram os aumentos reais do salário mínimo, a consolidação de programas sociais reconhecidos e a expansão do investimento público que estimularam a demanda doméstica e propiciaram o aquecimento da economia que, por sua vez, sustentou a criação de vagas formais no mercado de trabalho. Embora tenha beneficiado o trabalhador, este aquecimento do mercado interno foi também positivo para empresas, pois as vendas de bens e serviços cresceram, assim como o excedente operacional em termos absolutos.

A comparação internacional mostra que, em um ranking de 50 países da base de dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil avançou da 38ª para a 28ª posição na participação da renda do trabalho, entre 2004 e 2015. Entretanto, com a drástica reversão nos anos seguintes, entre 2016 e 2020, o Brasil perdeu o que foi conquistado e voltou para a 38ª posição no ranking. Nacionalmente, a participação da remuneração do trabalho retornou ao nível de 2010, revelando uma década perdida nesse indicador (Gráfico 1).

Fonte: Sistema de Contas Nacionais, IBGE. Elaboração própria.

Após o final da gestão da presidenta Dilma, no início de 2016, uma série de políticas econômicas contra os trabalhadores foram rapidamente implementadas. Dentre elas, destaca-se a reforma trabalhista, que tornou os trabalhadores mais vulneráveis com a possibilidade de terceirização irrestrita e a adoção dos contratos intermitentes de trabalho. O fim da regra de reajuste real do salário mínimo, referência para a maioria dos empregados formais e até mesmo informais, e a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que inibe o investimento e a geração de empregos fomentada pelo Estado, foram duas outras medidas que prejudicaram a destinação da renda gerada aos trabalhadores.

O conjunto dessa obra, compilada sob o nome de “Ponte para o Futuro”, apresentada no governo Temer e continuada no governo Bolsonaro, trouxe nítido desaquecimento da economia, deterioração do mercado de trabalho e – talvez o pior dos efeitos – rigidez para que as rendas geradas pela atividade econômica sejam repartidas com mais equilíbrio entre capital e trabalho. A aprovação, já em 2021, da autonomia (em relação ao governo eleito) do Banco Central, órgão que define a taxa básica de juros vigente no país, foi mais uma medida que proporciona aos detentores de capital margens maiores na distribuição da renda.

Dessa forma, além de intensos, os efeitos contrários a uma melhor distribuição poderão ser duradouros, independentemente do governo que esteja no comando do Poder Executivo Federal. A indução do crescimento via gastos públicos é importante instrumento para qualquer país, sobretudo para os menos desenvolvidos e com alto grau de carências sociais, como o Brasil. A coordenação de políticas monetária e fiscal com o Banco Central e a efetiva distribuição de renda com programas sociais e com aumentos reais dos salários, bem como o fortalecimento da ação sindical são fundamentais para a retomada da melhoria da distribuição funcional da renda no Brasil.

Para tanto é necessário que se adotem medidas que favoreçam a remuneração do fator trabalho, responsável por cerca de 75% da renda total das famílias brasileiras. Dentre elas destacamos:

  • Aumentar gastos de investimento e custeio dos equipamentos públicos;
  • Rever a regra de reajuste do salário mínimo, passando a conceder novamente aumentos acima da inflação;
  • Reduzir juros em uma ação coordenada entre o governo e o Banco Central;
  • Fortalecer os sindicatos e proteger os trabalhadores, sobretudo os mais vulneráveis;
  • Implantar uma reforma tributária progressiva com o objetivo de desonerar o consumo e aumentar a tributação da renda e do patrimônio.

O governo Lula, marcado por ter conquistado, no passado, resultados favoráveis à classe trabalhadora, crescimento econômico e melhor distribuição da renda, será capaz de enfrentar tal desafio. Mas, dadas as dificuldades estabelecidas após anos de retrocesso político, será necessário um amplo apoio das forças progressistas para sua realização.

*Doutor em Economia pelo IE/UFRJ e conselheiro do Corecon-RJ.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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