“Quanto mais restritiva é a definição de fome, menores são os números, menor é a quantidade de pessoas consideradas famintas. Precisamos ter isso em mente porque, à medida que os dados são lançados, muitas vezes eles carregam consigo uma aparência de objetividade e até mesmo de neutralidade que oculta as posições teóricas e políticas que estão por trás da sua formulação”, alerta o geógrafo
Por: Patricia Fachin, em IHU
A busca por compreender o fenômeno da fome em sua complexidade, a partir da análise dos dados, mas também do cotidiano real das famílias, permite observar que este não é um problema “conjuntural, pontual, transitório ou atípico” na sociedade brasileira, mas algo presente e contínuo, um fenômeno estrutural. Ter clareza sobre esta realidade permite “entender qual é a magnitude do problema e, portanto, quais são as possibilidades de superá-lo”, disse José Raimundo Sousa Ribeiro Junior na videoconferência intitulada “O panorama da fome no Brasil e as possibilidades da sua superação”, ministrada em 16-03-2023 no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Quando olhamos para a distribuição interna, para tornar esse panorama um pouco mais palpável, observamos que a fome, sim, é mais intensa em áreas rurais, mas, como nosso país é urbanizado, a maior parte das pessoas com fome reside em áreas urbanas. É desta complexidade que precisamos nos apropriar para não reproduzir certos mitos acerca da fome. Parece que na cidade as pessoas dão um jeito, se viram, que a fome está no campo, distante; não, a fome está na cidade, bem próxima de nós”, pontuou.
Segundo ele, os números absolutos sobre a fome no país indicam que “é no Sudeste que está a maior parte dos domicílios em situação de fome. Para diminuir e se contrapor aos estigmas e mitos de que a fome está no Nordeste e no Sertão Nordestino, o último dado do IBGE mostra São Paulo como o estado com o maior número absoluto de domicílios em situação de fome. Isso, para mim, foi sempre muito importante, porque, pesquisando a fome na metrópole de São Paulo, é possível explicitar que este lugar que concentra muitas riquezas também concentra muita miséria”.
Na conferência a seguir, que publicamos no formato de entrevista, Ribeiro Junior destaca que “a fome é produzida de diversas formas, no campo e na cidade. Não é somente uma atividade econômica que produz a fome. Não é só o agro, só o capital financeiro, só o capital industrial, mas toda a economia funciona de uma forma em que a produção e a reprodução da fome se mantêm em níveis altíssimos no país”.
Ele também reflete sobre as possibilidades políticas de superar o panorama da fome no país, a partir da construção de um projeto político emancipador, criado a partir das demandas dos movimentos sociais da sociedade civil. “Infelizmente, esse projeto não está no nosso horizonte mais imediato. Se estamos transitando entre o projeto ultraliberal autoritário e o projeto liberal progressista com alguma preocupação social, isso é um sinal de que nosso horizonte político está bastante reduzido. Mas ficar preso a essas duas perspectivas significa abdicar de um projeto de erradicar a fome, que deve ser o nosso projeto. Somente um projeto político emancipador, que questione as relações sociais capitalistas, pode nos livrar da fome. A meu ver, quem faz isso hoje são os movimentos sociais”, conclui.
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é graduado, mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, leciona na Universidade Federal do ABC – UFAB. Entre 2019 e 2021, foi professor visitante do Instituto Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, atuando junto ao Centro de Práticas e Pesquisas em Alimentação e Nutrição Coletiva – CPPNAC. É representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros no Conselho Municipal de Segurança Alimentar – COMUSAN-SP.
Confira a entrevista.
IHU – Qual o panorama da fome no Brasil?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Em um país tão extenso quanto o Brasil, diverso e desigual, é difícil traçar, sozinho, um panorama da fome. Essa é a tarefa de muitos pesquisadores e é uma agenda de pesquisa importantíssima no momento que vivemos. Essa agenda tem se fortalecido, especialmente desde a pandemia, com o crescimento expressivo da fome no país. Mais e mais trabalhos se debruçam sobre esta temática. Na Universidade Federal do ABC – UFABC, me surpreende a quantidade de estudantes que procuram estudar o assunto. É uma agenda que tem que ser tocada coletivamente, e a minha contribuição é pontual dentro deste debate.
O que é a fome?
Para dar conta de uma análise, em escala nacional, em um país como o nosso, uma forma de se aproximar desse panorama é por meio de dados obtidos via pesquisas de amostragem. Temos uma área muito extensa para cobrir, então, em geral, no Brasil os dados são obtidos por meio de pesquisas amostrais. Apesar de esses dados não serem suficientes para entender o fenômeno na sua integridade, eles são uma ferramenta muito valiosa para os pesquisadores se aproximarem da temática e, a partir dos dados, elaborarem hipóteses e perguntas de pesquisa que permitam a construção de um panorama mais complexo e mais profundo sobre a fome no país.
Dito isto, a primeira questão que se coloca é quais são os dados que podemos utilizar para traçar o panorama da fome no Brasil. O debate em torno de quais dados podem ser utilizados atravessou o século XX porque esse assunto dialoga diretamente com a ideia de como se define e como se mede a fome.
Definições nutricionais, clínicas e médicas
Durante o século XX, o que prevaleceu foram definições nutricionais ou clínicas ou médicas de fome. Merece um destaque muito importante neste tópico a contribuição de Josué de Castro, médico e geógrafo pernambucano. Seu texto mais conhecido é Geografia da fome: o dilema brasileiro – pão ou aço. Uma das maiores contribuições dele para o debate foi o fato de que ele, utilizando uma definição nutricional de fome – definia a fome tanto a partir da quantidade de energia como dos nutrientes que eram ingeridos pela população –, alargou o conceito de fome e rompeu com uma leitura muito comum na sua época – e persistente ainda hoje –, que tende a igualar o conceito de fome à ideia de inanição.
Josué reconheceu que, para além da fome total, haveria uma fome parcial. Quando lemos Geografia da fome, observamos que, ao passar pelas diferentes regiões de fome do Brasil, ele identifica as carências nutricionais específicas que ocasionavam doenças e mortes prematuras e fez uma diferenciação entre as temporalidades dessas fomes. A fome total, aquela que leva à inanição, tende a surgir em surtos epidêmicos, enquanto a fome parcial ou oculta é uma fome endêmica, constante. Isso é muito importante para a leitura do fenômeno da fome porque nos indica que a fome nem sempre está associada a períodos de crise, como a pandemia. Quando ele diz que existe uma produção constante da fome ou que a fome é endêmica em algum lugar – e ele estava falando sobretudo da Zona da Mata do Nordeste –, explicita, de alguma forma, que o modelo agroexportador, instalado no Brasil desde o período da colonização, produz fome. Então, não é o fracasso do modelo agroexportador que produz fome, mas seu sucesso.
Por mais importante que Josué tenha sido e sua obra tenha recebido reconhecimento nacional e internacional, não foi a definição de fome dada por ele que prevaleceu para além do ambiente acadêmico. Eu diria até que no ambiente acadêmico houve um processo de apagamento de sua obra.
Indicador restrito para medir a fome
Os dados sobre a fome produzidos no século XX são, sobretudo, os dados que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO passou a produzir desde os anos 1970. A FAO usa um indicador muito mais restrito de fome, que é o Indicador de Prevalência de Desnutrição. Aqui, cabe destacar que a desnutrição é um dos elementos e resultantes da situação de fome, mas não é a única. Ela é a expressão nutricional da fome. Esse indicador considera como pessoas famintas aquelas que ingeriram menos de 1.800 calorias por dia, durante todo o ano. Isso mostra que, dentro das definições nutricionais ou clínicas, há mais de uma possibilidade de definir e mensurar o fenômeno. Quanto mais restritiva é a definição, menores são os números, menor é a quantidade de pessoas consideradas famintas. Precisamos ter isso em mente porque, à medida que os dados são lançados, muitas vezes eles carregam consigo uma aparência de objetividade e até mesmo de neutralidade que oculta as posições teóricas e políticas que estão por trás da sua formulação. Ou seja, existe um debate que é anterior ao número em si, que diz respeito à própria produção do dado. A produção do dado nos importa muito para entender qual é a magnitude do problema e, portanto, quais são as possibilidades de superar esse problema.
Definição socialmente reconhecida de fome
Nos anos 1990, por conta do aumento da fome nos Estados Unidos, e pelo fato de o Indicador de Prevalência de Desnutrição ser insuficiente e incapaz de captar as experiências de fome menos severas, que levam à desnutrição crônica, pesquisadoras americanas [Radimer e Wehler] desenvolveram uma nova definição e uma nova forma de mensuração da fome. Tenho dado o nome de “Definição socialmente reconhecida de fome” para esta mensuração, que não é uma definição nutricional ou clínica. É uma definição socialmente reconhecida porque parte da realidade de mulheres, sobretudo mães, que vivem ou viveram em domicílios submetidos à privação de alimentos.
Essas pesquisadoras abordam a temática da fome a partir de uma pesquisa qualitativa. Radimer realiza entrevistas com as mulheres e, a partir das entrevistas, chega a conclusões interessantíssimas. Em especial, o fato de que as experiências que as mulheres relatam como experiências de fome tendem a ser as mesmas nos variados domicílios e, mais do que isso, elas tendem a apresentar uma ordem de como a fome aparece nos domicílios. Radimer explicita que em um lar, em geral, a privação de alimentos é antecedida por uma preocupação, no sentido de se o orçamento vai ser suficiente para adquirir todos os alimentos necessários para a família. Passado o estágio de preocupação, se a situação persiste, a qualidade da alimentação é comprometida e diminui drasticamente. Se a situação se torna ainda mais grave, chega-se aos aspectos quantitativos: as refeições diminuem, pulam-se refeições, as pessoas levantam da mesa sem ter a sensação de terem comido o suficiente, até o momento em que elas passam longos períodos ou dias inteiros sem comer.
IHU – Quais as vantagens dessa abordagem?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – O grande ganho desta definição de fome foi tirar essa definição daqueles que não experienciam o fenômeno e trazê-la para aqueles que a experienciam. Muitas vezes, o discurso médico se afasta da realidade social das pessoas; isso não é uma novidade. Essa abordagem também explicita que a fome não é uma situação repentina. Muitas vezes, as mulheres vão manejando essa situação até chegar aos casos mais graves. Se olhamos somente para os casos mais graves, inviabilizamos toda uma série de experiências anteriores que já caracterizam uma situação de fome.
Como as experiências de fome apresentam uma ordem comum, essas pesquisadoras elaboraram questionários que captam essas experiências e, dependendo da quantidade de experiências relatadas por domicílio, o domicílio é classificado em um grau das “escalas de fome” – termos que usaram inicialmente, mas depois substituído por “escalas de insegurança alimentar”.
Classificações da fome
Quando as escalas de fome da Radimer e Wehler foram implementadas pelo governo americano, elas ganharam novos rótulos e os domicílios passaram a ser classificados como em situação de “em segurança alimentar”, “em insegurança alimentar sem fome”, “em insegurança alimentar com fome moderada” e “em insegurança alimentar com fome grave”. Em 2006, foi feita uma revisão dessas escalas por conta do incômodo que a palavra “fome” causa quando é pronunciada. É raro um Estado querer produzir um dado contra si mesmo e a fome tem uma força política muito grande. O próprio Josué destacava isso ao comentar o tabu que existe em torno da palavra fome e os vários eufemismos que são utilizados para não se dizer essa palavra. A revisão dos termos, em 2006 nos EUA, revela essa tentativa de tirar a palavra fome das escalas, a ponto de o que antes era considerado fome passa a ser considerado “em segurança alimentar muito baixa”. É o eufemismo do eufemismo. Nem o termo “insegurança” aparece nessa definição.
Classificação brasileira da fome
Na escala brasileira de insegurança alimentar, que vou utilizar bastante para falar dos dados, usa-se o termo “em insegurança alimentar” e três graus de insegurança: “em insegurança alimentar leve”, “em insegurança alimentar moderada” e “em insegurança alimentar grave (fome)”. No Brasil, apenas a “insegurança alimentar grave” foi considerada como fome no momento de adaptação da escala. Discordo dessa restrição no país e proponho uma revisão dos termos que usamos para essas escalas, dividindo-os em quatro escalas: “sem fome e risco de fome”, “risco de fome”, “fome moderada” e “fome grave”.
IHU – Quais são as informações reais que caracterizam essas escalas?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – As perguntas contidas em cada uma das escalas dão materialidade para os números. Utilizamos a escala brasileira de oito perguntas, que foi utilizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Penssan para produzir os dados mais atuais que temos sobre a fome no país. Se a pessoa responder afirmativamente a até três questões, ela está em risco de fome. Por exemplo, se uma pessoa responde afirmativamente que tem preocupação de que os alimentos acabem, que não teve dinheiro para uma alimentação saudável e variada, ou que comeu apenas alguns poucos tipos de alimentos, ela está em risco de fome. Se a pessoa responde afirmativamente a mais do que três questões, ela entra num grau de fome. Por exemplo, se a pessoa responde afirmativamente que deixou de fazer alguma refeição, que comeu menos do que achou que deveria, que sentiu fome, mas não comeu, ou fez apenas uma refeição por dia ou ficou o dia inteiro sem comer, isso indica estágios de fome.
Claro que há, dentro desses estágios, gradações diferentes, mas se a pessoa já está pulando refeições e está comendo menos do que achou que deveria, é bastante justo considerar essa pessoa como alguém que já está sofrendo privação de alimentos e, portanto, está em situação de fome. Utilizando essa escala e essas perguntas, podemos demonstrar o quanto o dado que, historicamente, a ONU produziu subdimensiona a fome no mundo.
Nesta tabela, temos, no lado direito, a relação de pessoas cronicamente desnutridas, a partir de um número obtido pelo Indicativo de Prevalência de Desnutrição, e, do lado esquerdo, a relação de pessoas com fome, que são as pessoas em situação de insegurança alimentar moderada e grave, de acordo com a escala de insegurança alimentar desenvolvida pela própria ONU. O cenário entre 2018 e 2020 é bastante grave e já capta, um pouco, o que foi – e está sendo – a pandemia. À época, no mundo existiam dois milhões de pessoas com fome, o que representa mais de 1/4 da população mundial, e 683 milhões, com desnutrição crônica. Advogo o uso do dado de insegurança alimentar moderado e grave para dizer o tamanho da fome no mundo. Isso não significa que precisamos jogar fora o outro dado, que também nos dá informações sobre o estágio mais avançado de fome.
Distribuição da fome no mundo
A distribuição da fome no mundo, assim como no Brasil, é muito desigual e essa distribuição desigual nos permite formular hipóteses e caminhar para uma explicação mais apropriada do fenômeno. Quando olhamos para os dados, vemos que as porcentagens são muito mais altas na África (55,5% da população), na América Latina e Caribe (mais de 1/3) e na Ásia (quase 1/4). Os menores índices, mas ainda assim significativos, estão na Oceania, na América do Norte e na Europa. Usar esses dados é uma forma de tirar da invisibilidade e de um processo de ocultamento milhões e milhões de pessoas que estão em situação de fome. Os números nos ajudam a explicitar que a fome é um fenômeno estrutural e não conjuntural, pontual, transitório ou atípico. Isso é importante para depois podermos tecer algumas reflexões sobre as possibilidades de superação da fome no Brasil e no mundo.
IHU – O que os dados indicam sobre o fenômeno na realidade brasileira?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Os dados publicados pela Rede Penssan se apropriam dos dados que foram produzidos anteriormente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Todos esses dados foram apresentados com aquela escala que apresentei anteriormente.
Quando olhamos para a evolução da fome no Brasil, percebemos que entre 2004 e 2013 houve, sim, uma significativa redução da fome no país. Ela caiu pela metade: de 21,5 para 10,3% da população. Sobre este primeiro período, é importante dizer duas coisas. Quando Lula chegou à primeira vez à presidência do país, com o Programa Fome Zero como carro-chefe da sua campanha e do primeiro mandato, muitos diziam que não havia fome no Brasil. Entretanto, a primeira pesquisa desse tipo aponta para mais de 1/5 da população nesta situação, o que diz muito sobre um processo de negação e invisibilização da fome que, historicamente, atravessou nosso país. Também é importante dizer que, por mais que tenha diminuído a fome entre 2004 e 2013, não vivemos o fim da fome no país.
Mapa da Fome
A saída do Brasil do Mapa da Fome dialoga com o dado de desnutrição crônica da ONU, que foi quando o Brasil deixou de ter mais de 5% da população cronicamente desnutrida. A desnutrição crônica tinha caminhado virtualmente para desaparecer, mas a fome não. A fome ainda era persistente em muitos lares, e o que se tinha em 2013 era a necessidade de ampliar e intensificar as formas de combate à fome. O que foi feito entre 2004 e 2013 já tinha mostrado seu limite; o processo de transformação teria que ser mais profundo para caminharmos, de fato, para um período em que as pessoas não dissessem nem estarem em risco de fome nem com fome.
Retrato da fome no Brasil
De 2013 em diante, essa realidade política e econômica no Brasil mudou. O projeto político-econômico a partir do golpe intensificou a produção da fome no país, tanto que em 2018 ela já havia crescido. Os dados de 2020 e 2022 refletem a forma desastrosa com a qual o governo federal, apoiado por uma parte da sociedade, lidou com as questões sociais e econômicas durante a pandemia, ao ponto de chegarmos no estágio, em 2022, de 30% da população em insegurança alimentar moderada e grave: 1/3 da população com fome e 28% com risco de fome.
Quando olhamos para a distribuição interna, para tornar esse panorama um pouco mais palpável, observamos que a fome, sim, é mais intensa em áreas rurais, mas, como nosso país é urbanizado, a maior parte das pessoas com fome reside em áreas urbanas. É desta complexidade que precisamos nos apropriar para não reproduzir certos mitos acerca da fome. Parece que na cidade as pessoas dão um jeito, se viram, que a fome está no campo, distante; não, a fome está na cidade, bem próxima de nós.
Quando olhamos para a distribuição regional da fome, percebemos que as regiões Norte e Nordeste apresentam índices de fome mais altos que as demais regiões. É interessante observar como a região Norte ultrapassou a região Nordeste. Nesse sentido, as áreas de fome são dinâmicas em nosso país e isso tem a ver com processos econômicos, sociais e políticos que fragilizaram as condições de vida nessas regiões. Uma hipótese, para nós, como comunidade científica, é examinar em que medida o avanço da fronteira agrária e mineradora está diretamente relacionado com a produção da fome nesses territórios.
Mas, quando olhamos para os números absolutos, é no Sudeste que está a maior parte dos domicílios em situação de fome. Para diminuir e se contrapor aos estigmas e mitos de que a fome está no Nordeste e no Sertão Nordestino, o último dado do IBGE mostra São Paulo como o estado com o maior número absoluto de domicílios em situação de fome. Isso, para mim, foi sempre muito importante, porque, pesquisando a fome na metrópole de São Paulo, é possível explicitar que este lugar que concentra muitas riquezas também concentra muita miséria.
Relação entre renda e fome
Evidentemente que em uma sociedade monetarizada, onde o acesso aos alimentos se dá no mercado e as pessoas precisam ter dinheiro para comer, porque são poucas as pessoas que plantam o que comem e mesmo as que plantam o que comem não plantam tudo e precisam recorrer ao mercado, a relação entre fome e rendimento per capita é muito direta: 71% dos domicílios com até 1/4 do salário-mínimo per capita apresentavam situação de fome. É importante destacar que, mesmo aqueles domicílios onde a renda per capita é maior do que um salário-mínimo, o risco de fome e a fome estão presentes.
Isso mostra que o salário-mínimo brasileiro é um salário de fome; historicamente, foi um salário de fome. Podemos identificar a insuficiência do salário-mínimo de diversas formas. Estudando historicamente a fome na cidade de São Paulo desde as décadas de 1930 e 1940, que é o momento de formulação do salário-mínimo, passando pelos anos 1970, que é o momento da ditadura, observa-se muita fome nos domicílios que estão nesta faixa de renda. Isso mostra também como o Estado brasileiro, em grande medida, legitima essa situação e não se contrapõe a ela ao permitir e sancionar um salário-mínimo que não é suficiente para a reprodução de uma família.
A situação de trabalho da pessoa referência no domicílio também está diretamente relacionada com a fome. O desemprego produz a fome, políticas econômicas que produzem desemprego são políticas que produzem a fome. Percebemos também que, nas famílias, quando tem ao menos um morador que recebe aposentadoria de emprego formal, os índices de fome tendem a ser menores, embora ainda altos. Estar empregado não significa estar livre da fome. Receber aposentadoria não significa estar livre da fome. Isso dialoga diretamente com a produção da fome por meio de reformas, como a reforma trabalhista e a previdenciária que, ao tirar os direitos dessas populações, joga as pessoas no emprego informal, na situação de autônomos, produzindo maiores índices de fome.
Como a inserção das pessoas no mercado de trabalho é completamente atravessada pelas questões de raça e gênero, isso vai se traduzir em orçamentos muito diferentes para famílias que são chefiadas por homens ou mulheres, ou pessoas brancas em comparação a pessoas pretas ou pardas. Quando a pessoa de referência no domicílio é preta ou parda, a fome é mais intensa e tende a ser mais presente. O mesmo acontece quando as mulheres são as pessoas de referência.
IHU – Quais os limites dos dados para uma abordagem mais precisa do fenômeno da fome?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Como eu disse anteriormente, esses dados são amostrais e não permitem que olhemos para territórios mais específicos. Recentemente, junto com alunos e professores da UFABC, dentro de um projeto de extensão em Heliópolis, que é uma das maiores favelas de São Paulo, fizemos um levantamento de fome em uma das escolas. Os dados de fome são assustadores. Mais de 50% das famílias com crianças no ensino fundamental declaravam essas experiências que ratificam que elas estavam em situação de fome. Isso coloca desafios enormes para a comunidade escolar porque é difícil, para os professores e a direção, lidar com uma população que está com esse grau de carência. Qual é a possibilidade de um estudante se concentrar nos estudos, de ter uma possibilidade de aprendizado plena quando está nessa situação? Pensando que estamos montando uma agenda de pesquisa para o país, esse tipo de abordagem também é um incentivo para que outros pesquisadores façam análises mais pontuais, utilizando as escalas de fome, para que tenhamos retratos pontuais, que retratem situações particulares e específicas e não fiquemos somente com retratos gerais.
IHU – Como a fome é produzida?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – É importante compreender que este fenômeno é produzido. Se estou dizendo que a fome é um fenômeno produzido, isso já é, automaticamente, uma posição à qual estou aderindo e uma contraposição a um conjunto variado de explicações que tendem a naturalizar ou justificar a existência da fome. Por mais que as teses do [economista Thomas] Malthus já tenham sido plenamente refutadas pelos dados da realidade, os argumentos malthusianos e neomalthusianos voltam como forma de justificar a fome.
Escutamos que as pessoas passam fome porque as famílias são muito grandes, ou argumentos ambientalistas de que tem muita gente no mundo e que essa seria uma forma de pressão sobre o meio ambiente, que não seria possível produzir alimentos para todos. Esses são argumentos mentirosos e ideológicos para manter as coisas como elas estão e justificar a existência de pessoas que estão submetidas à privação de alimentos.
Outros discursos tendem a colocar a fome como produto de um fracasso pessoal. Economistas liberais justificam, por exemplo, o baixo valor do salário-mínimo, dizendo que o salário é baixo porque a produtividade do trabalhador é baixa. Esse tipo de argumento também responsabiliza aquele que passa fome pela sua situação e torna a fome um problema individual. Ou seja, a pessoa deveria, ela mesma, criar as condições para sair dessa situação.
Em contraposição a isso, é importante reconhecer, a partir dos dados como ponto de partida, que a fome não é um problema pontual, transitório e atípico na nossa sociedade. Nesse sentido, quando olhamos para os dados, muitos autores afirmam que a fome é um problema estrutural.
IHU – O que significa abordar o problema a partir desta perspectiva?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Refletindo sobre essa afirmação da fome como um problema estrutural, proponho dar um passo adiante para não considerar a fome estrutural por conta da sua magnitude, que é enorme, mas porque ela é um elemento estruturante da nossa sociedade.
Dizer que a fome é estruturante é dizer que ela não é apenas um produto das relações sociais e econômicas existentes, mas também é produtora dessas relações. Do ponto de vista lógico, é importante pensar como o desenvolvimento do capitalismo, seja na Europa, seja no resto do mundo, aconteceu a partir da desestruturação de outros modos de vida. A fome, desde sempre, foi uma ferramenta muito eficaz para desestruturar outros modos de vida. Quando se retira a fonte de sustento das pessoas, por exemplo, a terra, quando se desapropriam as pessoas da terra da qual elas retiravam e ganhavam seu sustento, ou dos meios de trabalho que elas tinham, e as submetem à privação de alimentos, porque elas não têm mais de onde tirar seu sustento, elas tornam-se cativas das suas próprias necessidades e, portanto, prontas a aceitar condições de trabalho que lhes são impostas; não são desejadas.
O que quero dizer é que os trabalhadores ditos “livres” são tornados escravos das suas necessidades. A fome é uma necessidade. A não satisfação de uma necessidade muito básica tem o poder de desestruturar uma comunidade, um povo, muito rapidamente e, nesse sentido, abrir caminhos para a transformação das relações nessa sociedade e para os avanços das relações capitalistas ali.
Situação dos yanomami
Olhando para o caso brasileiro, percebemos que houve um processo histórico de expropriação. Com a população negra, esse processo começa com a escravidão, que foi uma forma de expropriar as pessoas de tudo, até do controle do seu próprio corpo. Essa expropriação não parou com a colonização; é um processo contínuo e formou uma massa proletarizada que não tem acesso aos meios de produção. Essa expropriação, que atravessou séculos no Brasil, adentrou o século XX.
Em Os parceiros do Rio Bonito, Antonio Candido narra como a desagregação do modo de vida caipira produziu a fome, e como a fome acelerou essa desagregação do modo de vida caipira. Outros relatos mostram como a imposição de relações sociais modernizantes, muitas delas atreladas à revolução verde, na segunda metade do século XX, e aqui impostas pela ditadura militar, redundaram em processos de expropriação violentíssimos, responsáveis, entre outros processos, pelo enorme fluxo migratório para as grandes cidades.
Um exemplo recente disso é o que aconteceu e está acontecendo com os yanomami no Norte do país. Essa situação mostra que a desestruturação de outros modos de vida, pela fome, não acabou. Sabemos que os yanomami estão sob constante ataque há centenas de anos, mas esse ataque se intensificou no período em que a extrema-direita esteve à frente do governo federal, que estimulou o avanço do garimpo ilegal na região. Esse avanço teve consequências gravíssimas, entre as quais estando a produção de uma situação de fome intensa e total.
Vimos cenas de pessoas se aproximando do estado de inanição. Essa é uma forma de acabar com um modo de vida, de acabar com a existência daquela população e, portanto, para o governo é uma forma de tomar as terras deste povo e disponibilizá-las para outros usos, especialmente para aqueles que beneficiam.
Não é só a expropriação que produz a fome. Precisamos olhar também para os graus de exploração que produzem a fome. Nem vou mencionar os casos de trabalho escravo que recentemente chegaram à mídia, mas observamos que, para atingir certos graus de rentabilidade e lucratividade dos seus negócios, umas pessoas submetem outras. Então, há aqui personificações que precisamos nomear: alguns submetem outros a um regime alimentar exíguo, monótono, que muitas vezes levam à situação de fome.
Negócios lucrativos X remunerações insuficientes
O processo de expropriação produziu a massa proletarizada que se urbanizou durante o século XX, e essa força de trabalho urbano nunca foi plenamente absorvida pelo capital. A produção de um excedente de trabalhadores faz parte da lógica de reprodução do capital. Ao ter mais trabalhador do que postos de trabalho, há uma pressão enorme sobre as remunerações daqueles que estão empregados. Então, vivemos um processo de proletarização que não garante a inserção das pessoas no mercado de trabalho e, quando há inserção no mercado de trabalho, não há garantia de satisfação, dadas as necessidades básicas. Mas isso não explicita, necessariamente, um fracasso da nossa economia porque observamos índices de crescimento muito altos no Brasil durante o século XX. A lucratividade bastante expressiva de alguns negócios se traduz, do outro lado, em uma vida cotidiana com remunerações exíguas e insuficientes.
De alguma forma, estou tentando apontar para o fato de que a fome é produzida de diversas formas, no campo e na cidade. Não é somente uma atividade econômica que produz a fome. Não é só o agro, só o capital financeiro, só o capital industrial, mas toda a economia funciona de uma forma em que a produção e a reprodução da fome se mantêm em níveis altíssimos no país.
IHU – Quais as possibilidades de superação da fome dado esse cenário?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Se digo que a fome é um problema estrutural, que desestrutura outros modos de vida, e faz parte das estruturações sociais capitalistas, isso me impede de afirmar que a superação da fome pode se realizar sem transformações de caráter estrutural. Então, em alguma medida, precisaríamos de transformações bastante radicais nas relações sociais do país para vislumbrar a superação da fome.
Projeto político ultraliberal e autoritário
Vale a pena entender como diferentes projetos políticos lidaram com a fome no Brasil no século XX. Vou me abster de fazer qualquer análise do atual governo porque é muito cedo e ainda não sabemos o que virá. Mas é bom olhar mais para trás como forma de nos preparar para interpretar o que está por vir.
Houve, a partir do golpe da presidente Dilma [Rousseff], a ascensão de um projeto ultraliberal e autoritário, que produziu muita fome. Esse projeto promoveu a compressão dos rendimentos dos trabalhadores, que se traduziu em orçamentos domésticos cada vez mais apertados e insuficientes. A produção dessa compressão se deu de diversas formas: o aumento do desemprego, do subemprego, da informalidade, e a desvalorização do salário-mínimo. Este projeto produziu a fome por meio dos ataques aos direitos sociais com as reformas trabalhista e previdenciária. Ele também deu suporte a práticas e projetos que expropriam camponeses, indígenas e a população das cidades. Este projeto se vende como produção de novas riquezas – e até produz –, mas elas não ficam para as pessoas que operam essa fronteira.
Também merece destaque o desmonte das políticas públicas. Algumas políticas públicas que, historicamente, contribuíram para diminuir o fenômeno da fome no país, como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, foram francamente sucateadas e destruídas durante a manutenção deste projeto. É uma característica também deste projeto negar a existência da fome. Então, não há muita novidade no fato de o ex-presidente Bolsonaro dizer que não havia fome no país – ele dizia que “não via pessoas magras pelas ruas”. Isso mostra que ele carrega consigo uma definição hiper-restrita de fome, como forma de ocultar o problema.
Projeto político liberal progressista
Outro projeto recente do século XXI – e há uma dificuldade de dar um nome a esse projeto, então uso uma classificação provisória – é o projeto liberal progressista, que atuou de outra forma. No gráfico anterior, vimos que, entre 2004 e 2014, houve uma diminuição da fome, que dialoga com a gestão e administração da fome.
Diferentemente de um projeto ultraliberal, que nega a existência da fome, o projeto liberal progressista tende a reconhecer a existência da fome e busca minimizá-la. Algumas organizações internacionais, como o Banco Mundial – BM e a FAO, têm um papel importante no desenvolvimento deste projeto político. São essas organizações que trazem a perspectiva da segurança alimentar. O uso desse conceito, que atualmente é hegemônico no debate sobre os problemas relativos à alimentação, tem origem nas duas guerras mundiais, quando os alimentos foram utilizados como arma de guerra. Naquele momento, governantes e militares reconheciam que a privação de alimentos poderia desorganizar completamente uma sociedade. Então, seria imprescindível garantir que a população tivesse acesso a uma ração mínima. Desde então, esse conceito passou por reelaborações, mas, sobretudo a partir da década de 1980, quando o BM passou a utilizá-lo, ele passou a ser uma ferramenta de gestão e administração da fome.
A preocupação do BM com a fome está diretamente relacionada com os efeitos e os ajustes estruturais que o projeto neoliberal produziu. Essas mesmas instituições produziram ajustes estruturais que intensificaram a fome ao redor do mundo e, ao intensificar a fome, observaram-se, em vários países, revoltas, conflitos, interrupções na ordem. O sentido, portanto, é de não deixar isso acontecer novamente, ou seja, de não deixar que a fome atinja uma magnitude que interrompa a realização dos negócios.
Mas não é a superação da fome o sentido desse projeto. Ele opera por meio de restrições restritivas do que é a fome, como a desnutrição crônica, por exemplo, e, em muitos sentidos, aposta no livre mercado como forma de sair dessa situação. Há, no BM, claramente uma posição em que os estoques públicos de alimentos ou os canais públicos devem ser evitados. Quanto mais livre o mercado, maior será a possibilidade de que as pessoas não passem fome. Não à toa é o BM que advoga, como política pública de superação da fome, os programas de transferência de renda. Não estou me colocando contra os programas de transferência de renda, mas é importante um olhar crítico porque eles não são suficientes. Esse mesmo BM faz política contrária aos direitos dos trabalhadores, aos direitos previdenciários. Então, em alguma medida, o que ele quer é diminuir os direitos e administrar a população mais empobrecida por meio de programas de transferência de renda.
Neste projeto político estão ocultas as relações sociais e de classe e o antagonismo entre elas. Parece que estamos todos no mesmo barco, mas, como a pandemia explicitou, não estamos.
IHU – Qual projeto político, em alguma medida, nos ajudaria a vislumbrar a superação da fome?
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior – Seria um projeto político emancipador. Infelizmente, esse projeto não está no nosso horizonte mais imediato. Se estamos transitando entre o projeto ultraliberal autoritário e o projeto liberal progressista com alguma preocupação social, isso é um sinal de que nosso horizonte político está bastante reduzido. Mas ficar preso a essas duas perspectivas significa abdicar de um projeto de erradicar a fome, que deve ser o nosso projeto. Somente um projeto político emancipador, que questione as relações sociais capitalistas, pode nos livrar da fome. A meu ver, quem faz isso hoje são os movimentos sociais.
Durante a pandemia, vimos crescer formas bastante precárias de emprego e uma delas é a dos entregadores de alimentos, circulando de bicicleta e com fome. Esta é uma situação contraditória e reveladora da nossa sociedade: jovens, em sua maioria, negros e periféricos, estavam pedalando pela cidade, levando comida para outras pessoas, com fome, enquanto o seu empregador, que não se coloca como empregador por conta da fluidez das relações de trabalho permitidas pela legislação, crescia e recebia investimentos para crescer. O iFood atua, como várias outras empresas, por meio do seu marketing social e ações de filantropia. Então, a empresa que produzia a fome também convocava seus clientes a compartilharem uma refeição. Ela não se sentou na mesa para dialogar com os entregadores, aumentar o valor das entregas daqueles que trabalhavam diretamente com ela, mas, na esfera da doação e da filantropia, ela, de alguma forma, limpava sua imagem.
Movimentos sociais e a construção de um projeto emancipatório
Alguns movimentos sociais precisam ser reconhecidos como portadores de um projeto emancipatório. Um deles é a Via Campesina, que propõe um projeto de soberania alimentar. Reivindicar soberania sobre um elemento tão central para a reprodução da vida e dos trabalhadores, significa reivindicar uma transformação dos fundamentos da nossa sociedade. Significa se contrapor à tirania da propriedade privada dos meios de produção, reivindicar o acesso à terra para os camponeses, indígenas, e reivindicar os demais meios de produção de subsistência. Significa também se contrapor à chantagem que existe de empurrar as pessoas a trabalhos degradantes e mal pagos porque elas estão com fome.
Precisamos reconhecer quais são os projetos emancipadores, por menores que sejam, e somar força com eles porque só eles carregam a possibilidade de vislumbrar um futuro sem fome. A administração e a gestão da fome podem produzir seus efeitos, mas não podemos perder de vista que o sentido deve ser o de superação da fome.
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Foto: Jorge Araújo | Fotos Públicas