O mérito e a sabedoria. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

A face de pele bem cuidada e barba completamente aparada era emoldurada por cabelos meticulosamente penteados e mantidos íntegros em seu arranjo entopetado por uma destas pastas para modelar cabelos teimosos. As roupas, muito elegantes e evidentemente caras, completavam o figurino de pretendente a macho alfa do mundo corporativo.

Tomou a frente de outras pessoas que disputavam um momento de conversa com o sábio, como se elas não existissem. Com uma fleugma pouco natural, anunciou-se como Cí-Éff-Ôu de uma empresa brasileira com nome em inglês.

O sábio o cumprimentou mais preocupado com o pão de queijo que acabara de pegar para comer que com aquela figura narcísica plantada na sua frente.

O executivo queria puxar conversa. Ser visto conversando com o sábio o faria parecer um pouco sábio também. Já o sábio, só queria mesmo terminar seu pão de queijo sem o incômodo daquela figura estranha na frente. Respondia monossilabicamente, no limite entre a educação e o incômodo.

– Eu acredito em meritocracia! – Disse o executivo lá pelas tantas.
– Interessante… – Disse o sábio, desinteressado da conversa.
– E sempre levo a meritocracia para todos os aspectos da minha vida!
– Sempre? Todos?
– Claro, todos.
– Casado?
– Você escolheu sua mulher pelo mérito, suponho.
– Claro! E ela a mim. Sou um homem de valor.
– Com qual critério? Em que consiste o mérito que os uniu?
– A beleza dela e eu ser uma pessoa de valor.
– Filhos?
– Dois.
– Filhos não escolhemos, não é? Como você é meritocrático com eles então?
– Eu os incentivo a serem pessoas de valor também.
– E como seria isso?
– Ensino que se eles se esforçarem, se forem persistentes e competentes, vão receber o que merecem.
– E suponho que tudo que você recebeu na vida, foi por seus méritos.
– Exatamente!
– Diga-me uma coisa, então. Você acha que o mundo é justo? Se forem pessoas de valor como você, então seus filhos receberão naturalmente o que merecem, sejam benefícios ou malefícios?
– Evidentemente.
– Outra dúvida. Você foi promovido ao cargo que ocupa assim que mereceu, ou já tinha os méritos antes de ter o cargo e, só depois, foi promovido?
– Eu já os tinha antes, claro!
– Então, houve um momento em que você merecia algo, mas não tinha o que merecia?
– Sim, infelizmente.
– Então não se pode dizer que sempre os méritos serão recompensados, porque afinal, contigo mesmo havia merecimento sem recompensa por um tempo.
– Sim, mas isso é por causa dos outros. Nem todos são justos o suficiente para premiar quem merece.
– Então, apenas ser uma pessoa de valor não é garantia de receber o que merece. Antes, o que pode garantir justiça é a disposição de alguém de ser ou não justo em razão dos méritos de alguém?
– Sim.
– Então, você é justo?
– Sempre.
– Vamos supor que quando você foi promovido houvesse um concorrente mais capaz do que você. Neste caso, para ser justo, você recusaria a promoção ou renunciaria ao cargo para que a justiça do mérito fosse feita?
– Bom… É diferente. Quem promove é que precisa ser justo. Se eu fui promovido é porque mereci.
– Mas isto seria uma injustiça que você causaria a outro, não?
– Não. Injusto seria quem me promoveu e não a ele.
– Mas, de qualquer maneira, você não receberia o que mereceria segundo seus valores.
– Sim, mas o mundo não é perfeito.
– Então, o mundo nem sempre é justo e você não é sempre justo. Mas você é justo quando decide sobre os outros.
– Sim.
– Qual dos teus filhos você mais ama?
– Como assim? Eu os amo da mesma maneira.
– Mas você não os ensina que se deve conquistar as coisas da vida segundo seus méritos? O amor por sua esposa não aconteceu por seus valores? Supondo que seus filhos não sejam idênticos, haverá diferenças entre eles e, portanto, um será ao final mais merecedor de seu amor que o outro. Então, para qual filho você dá mais do seu amor?
– Com filhos é diferente. Eu os amo do mesmo jeito.
– Entendo. Você os ensina a importância do mérito, mas não os trata com a justiça do mérito.
– Os dois são filhos. Iguais no meu amor. Justo é dar o mesmo amor a cada um deles.
– Resumindo, para eles, a sua justiça é socialista. Para os outros, é meritocrática. Para si mesmo, o mundo será justo sempre que você ganhar e injusto quando não ganhar?
– Com licença, preciso cumprimentar o anfitrião…

Enfim, o sábio pôde comer seu pão de queijo.

Ilustração: Mihai Cauli

 

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