‘Sem anistia’: movimentos sociais cobram fim da violência policial nos 59 anos do golpe militar

11ª edição do Cordão da Mentira percorreu as ruas da cidade de São Paulo em memória às vítimas da ditadura e por punição contra a violência do Estado, que atinge principalmente a população negra e periférica

Por Jeniffer Mendonça, na Ponte

Familiares de vítimas da violência policial saíram de diversas cidades do país e se reuniram, neste sábado (1/4), por um propósito: exigir o fim do genocídio da população negra e periférica. A 11ª edição do Cordão da Mentira percorreu as ruas da cidade de São Paulo para relembrar os crimes do Estado ocorridos no passado, com a ditadura civil-militar, que completa 59 anos, e no presente, pela violência policial que segue mesmo após a Constituição de 1988.

“É um espaço muito representativo, era o DOI-Codi, lugar de tortura”, enfatizou o professor Maurício Monteiro, 53, sobrevivente do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos e outros feridos numa ação da Polícia Militar na extinta Casa de Detenção de São Paulo, em 1992. “E continua sendo um espaço de repressão, à medida que o Estado mantém uma delegacia onde deveria ter um museu para não esquecer o que foi a ditadura”, afirma.

Monteiro também cobra punição pela chacina que presenciou e que até o momento não houve resposta, já que mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) ter mantido a condenação de 74 PMs, ainda estão em discussão no tribunal paulista a dosimetria das penas, ou seja, o tempo a ser cumprido por eles, e o indulto que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu no final do mandato, em 2022.

Ana Paula Oliveira, 46, coordenadora do Movimento Mães de Maguinhos, perdeu o filho Jonathan, 19, em 2014, após ser atingido por um tiro da PM fluminense. Ela viajou do Rio de Janeiro até a capital paulista para fortalecer a luta das mães. “É juntar o grito por justiça, por memória, por verdade”, afirmou. “A gente não quer anistia para os assassinos dos nossos filhos”, prosseguiu em relação ao tema do ato deste ano: “Genocidas, Fascistas, Fardados: serão mesmo anistiados?”.

O jornalista e ativista de Direitos Humanos Ivan Seixas, 68, lembrou as torturas que ele e sua família sofreram no DOI-Codi e destacou que é “muito importante que a geração de hoje se some nessa luta” contra o autoritarismo. “Eu fui capturado aos 16 anos, junto com o meu pai [Joaquim de Alencar Seixas, um dos dirigentes do Movimento Revolucionário Tiradentes], e nós fomos torturados juntos. Depois de dois dias de tortura, meu pai foi assassinado”, contou. “Prenderam minha mãe e minhas irmãs. Uma delas sofreu espancamento e violência sexual aqui dentro”, apontou para o distrito policial.

Em frente à delegacia, os movimentos de mães colocaram bonecos de pele negra e flores em frente à fachada em alusão aos filhos que perderam. O Movimento Independente Mães de Maio e o Coletivo Preta Performance fizeram uma intervenção artística com integrantes enrolados em sacos pretos, enquanto tinta vermelha era despejada na calçada, a que chamaram de “Negrotério” _forma de expressar como a necropolítica tem como alvo a população negra. “É isso que se faz na periferia todos os dias”, declarou Bruna Silva, 40, do Movimento Mães da Maré e mãe de Marcus Vinicius, que teve a vida interrompida aos 14 anos quando ia para escola e foi baleado pela PM fluminense em 2018.

“A morte é naturalizada nas periferias. Como essas mortes não pararam o país?”, questionou Debora Maria da Silva, 63, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio e que há 17 anos luta por justiça pelas 564 vítimas dos Crimes de Maio de 2006, sendo uma delas seu filho Edson Rogério, assassinado aos 29 anos, durante o massacre na Baixada Santista. “Nós estamos aqui resistindo por uma democracia de raça, classe e gênero porque essa [violência] é a continuação do golpe. Eu não queria ter que estar aqui”, disse.

A performance abalou muito as mães presentes, principalmente Maria Cristina Quirino, 43, mãe de Denys Henrique, 16, uma das nove vítimas que foram encurraladas e morreram sufocadas após dispersão da PM a um baile funk na zona sul de São Paulo, em 2019, na favela de Paraisópolis. “Nos sacos, os meninos [da performance] saíram com vida. O meu filho me foi entregue dentro de um saco de lixo”, declarou, às lágrimas.

Muitos abraços, choro e acolhimento eram trocados entre as mães durante o percurso. O cortejo passou na sede do Comando Militar do Sudeste do Exército, onde, por 72 dias, golpistas que não aceitavam o resultado das eleições gerais de 2022 ficaram acampados para pedir intervenção militar. Lá, apenas sobraram alguns adesivos em alguns postes pela campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro, que é fã confesso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-Codi e acabou condenado por tortura, mas morreu em 2015 sem pagar pelos crimes.

A passeata se encerrou em frente ao Monumento às Bandeiras, que homenageia os bandeirantes paulistas que exploraram o território brasileiro durante a colonização para capturar e escravizar povos indígenas e negros. No local, havia pelo menos duas viaturas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) ao redor do monumento e quatro viaturas da Força Tática da Polícia Militar. Ali, outras mães e movimentos sociais e anti-cárcere também fizeram discursos emocionados.

“Negrotério”, performance feita com manifestantes enrolados em sacos pretos simbolizando corpos | Foto: Daniel Arroyo /Ponte Jornalismo

Edna Carla Souza Cavalcante, 50, do Movimento Mães do Curió, teve o filho Alef, 17, assassinado na chacina que deixou 11 mortos e sete feridos na periferia de Fortaleza (CE), em 2015. Em direção às viaturas, bradou às lágrimas: “Vocês vieram da periferia e matam a periferia. Nós pagamos pela bala que vocês usaram para matar nossos filhos”.

“Quantos mais vão ter que morrer para essa guerra acabar?”, prosseguiu Fernanda Reis, integrante do Grupo Acolher da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio. Seu filho Matheus Henrique foi morto aos 14 anos, em 2022, pela PM paulista.

Ajude a Ponte!

Coro de “sem anistia”, “nossos mortos têm voz” e “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar” se fizeram presentes. Os manifestantes encerraram o protesto entoando o samba-enredo de 2019 da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, que homenageou a vereadora Marielle Franco, assassinada há cinco anos no Rio de Janeiro.

 

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