Nas cidades brasileiras que mais exportam frutas, realizar o sonho de viver da terra não é pra qualquer um

Conflitos fundiários e por água marcam o cotidiano dos agricultores afetados pelos polos de exportação criados no Nordeste

Por Maíra Mathias, com colaboração de Mariana Costa, enviadas à Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, em O Joio e O Trigo

Da janela do avião se vê a Represa de Sobradinho. É fim de tarde em agosto e o maior lago artificial do Brasil reflete uma luz dourada. À medida que vamos nos aproximando da aterrissagem, outros elementos da paisagem se revelam.

O que antes parecia uma colcha de retalhos, com formas verdes salpicando um fundo terroso, agora pode ser observado com detalhes. Árvores dispostas em fileiras ganham o aspecto de retângulos, quadrados e círculos, uma formação ordeira que contrasta com a rebeldia da Caatinga circundante.

A sensação é de que fora desses limites perfeitamente racionais não há nada – mas é em busca desse suposto vazio que nós vamos.

O avião pousa na pernambucana Petrolina, que, junto com as cidades de Juazeiro e Casa Nova, na Bahia, forma o mais importante polo de fruticultura irrigada do país.

Em 2019, último ano com dados oficiais disponíveis, essa agricultura sugou 1,5 trilhão de litros de água para irrigar 94 mil hectares. Isso equivale a 600 mil piscinas olímpicas.

Toda essa água é usada principalmente para produzir manga e uva. Em 2022, os dois estados dedicaram 58 mil hectares à produção das duas frutas, e o valor total dessa produção ultrapassou os R$ 3,2 bilhões.

O destino dessas frutas – e, portanto, dessa água – não é apenas a mesa dos brasileiros, mas a dos europeus, norte-americanos e populações mundo afora. Nesse movimento de dentro pra fora também se implodem outros modos de vida e sonhos. O agronegócio exportador não deixa espaço para nada que seja muito diferente dele.

Sem água e sem luz

O rosto marcado de Nazareth da Rocha Silva, 59 anos, não deixa dúvidas de que, pra ela, a vida não foi fácil. Mas tampouco lhe tirou a beleza e a força. No olhar profundo, no jeito vívido de contar histórias e nos suspiros que comunicam tanto resignação quanto revolta, Nazareth é uma dessas pessoas que exala dignidade. Ela se define como “tudo um pouquinho”, já que além de agricultora é agente comunitária e professora da escola rural de Melancia, nosso ponto de encontro.

A comunidade de Melancia é um lugar deslumbrante – talvez um dos mais bonitos que eu já tenha visto na vida. Lá, a vegetação da Caatinga está em seu ápice e é possível admirar todas as cores da terra. Os arbustos retorcidos criam um efeito pollockiano na paisagem.

Nazareth nasceu numa comunidade próxima chamada Riacho Grande, de onde foi expulsa ainda adolescente pela ditadura (1964-85). Parte da cidade de Casa Nova foi alagada para a formação da represa que alimenta a Usina Hidrelétrica de Sobradinho. Apesar de não estar exatamente na margem do rio São Francisco, a porção de Riacho Grande em que a família de Nazareth vivia dispunha em abundância do bem mais precioso da Caatinga: a água.

Ela nos conta que em todo o lugar que eles queriam abrir uma cacimba; abriam. “Mesmo quando não tinha água, quando era tempo de sequeiro.” Cacimba, para quem, como eu, não sabia – a típica ignorância sudestina em relação às coisas do Nordeste – é uma cova grande na terra, onde se armazena água. Naquela época, as cacimbas eram cavadas manualmente durante meses, por muita gente. “Abria e a água era doce. Nunca faltava. Com a barragem, acabou tudo”, constata Nazareth.

A escassez hídrica é crônica em Melancia e, enquanto não chegaram as tecnologias de armazenamento de água da chuva, como as cisternas, a vida era mais dura do que o razoável. Por anos a fio, a comunidade dependeu dos carros-pipa. Essa água era armazenada em um tanque. “Só usávamos pra beber e cozinhar. Pra tomar banho a gente ia procurar longe porque não podia gastar.”

Lavar roupa era uma maratona que exigia caminhadas de dez quilômetros no sol. “A gente botava as roupas no jumento e ia de pé porque não dava para ir amontado… Saía cedinho para chegar lá, e só voltava quando as roupas secassem pra não pesar muito no jumento.”

Mas essa escassez também é seletiva. No caminho para Melancia, passamos por enormes fazendas, como a GVS Fruit Company, com 100 hectares dedicados ao cultivo de manga e uvas.

A ironia das ironias fica por conta de um fato que choca quem se acostumou a ouvir a propaganda oficial das duas últimas décadas no Brasil: expulsas na ditadura por uma usina, as famílias da comunidade vivem sem luz até hoje. Governante após governante, o problema permaneceu. A falta de abastecimento elétrico causa uma série de problemas – incluindo obstáculos para a geração de renda.

Nazareth tem vontade de produzir polpa de umbu na comunidade. “Ia ser bom demais. Quem não pode trabalhar de dia, ia de noite, que liga as luzes. Nós pegava as nossas polpas e colocava no freezer”, antevê.

Hoje, a produção só pode acontecer por encomenda, já que precisa ser escoada de um dia para o outro pra não estragar. Ela conta que já houve um acordo de vender para as escolas, mas a falta de autonomia foi um entrave. “Ficava pedindo ao povo lá na cidade, incomodando. Aí tivemos que parar.”

Na comunidade, existem placas para geração de energia solar. Mas Nazareth relata que isso não é o suficiente para que as famílias tenham alguns eletrodomésticos, ou mesmo bombas que puxem água das cisternas para as plantações – o que também seria fundamental.

Por lá, cultivam-se mandioca, feijão, milho, batata doce, coentro, cebolinha e plantas medicinais. “Mas falta água e aí tem que reduzir.” A escolha das frutas segue o mesmo critério. Limão e laranja têm preferência, já que demandam menos água. “Não planta muito; é pouco. Só pra consumo, mesmo.” A comunidade se vira na base da troca. “Se seu vizinho não tem, você ajuda. Ele tem feijão, eu tenho o milho.”

Melancia é uma comunidade de fundo e fecho de pasto, modo tradicional de ocupar a terra que pode soar estranho para quem se acostumou a valores como individualismo e patrimônio. As famílias moram em uma parte do território e criam animais soltos em outro canto. No caso de Melancia, esse outro canto é Areia Grande. “Lá não tem casa, lá é só pra criar os bichos”, explica Nazareth.

As 45 famílias de Melancia, assim como núcleos de outras comunidades semelhantes, criam cabras e abelhas em Areia Grande. A área de uso comum é visada por grileiros há décadas.

Os conflitos se intensificaram no final da década passada, quando ao menos uma liderança comunitária – José Campos Braga – foi assassinada, em 2009. Mas demorou bastante pra Nazareth falar sobre esses problemas durante a uma hora que conversamos. “Às vezes a gente não fala porque rasga. É uma ferida que está dentro da gente que é muito difícil.”

Uma consulta ao Mapa de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) demonstra que a chapa esquenta em Casa Nova. Os dados disponíveis vão de 2012 a 2021. Nesse período, apenas em dois anos nenhum conflito foi registrado na cidade.

O mais recente episódio aconteceu bem perto de Nazareth. Quando conversamos, no fim de agosto do ano passado, fazia dois meses que um homem havia chegado na região, falando que uma área de aproximadamente 60 quilômetros quadrados – que inclui as terras da comunidade – era dele. Segundo Nazareth, veio cheio de banca, com um drone para filmar tudo de cima e exigindo que os moradores mostrassem seus títulos de propriedade – pedido que foi recusado.

Um mês depois – em julho, portanto – um incêndio atingiu o terreno da casa do pai de Nazareth. A família registrou um boletim de ocorrência, mas não deu em nada. Os movimentos sociais que acompanham as comunidades de fecho de pasto em Casa Nova têm sérias suspeitas de que uma coisa e outra estejam ligadas.

Derrotas e vitórias

Nas regiões-chave para exportação de frutas, realizar o sonho de viver da terra não é para qualquer um. Nessas cidades do semiárido, não basta lutar por terra: é preciso também lutar por água que garanta a produção agrícola.

Há quem faça isso de forma coletiva e organizada. É o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tem, desde os anos 2010, ocupado áreas dentro dos projetos públicos de irrigação. A perspectiva é que, em vários locais do Nordeste, não basta reforma agrária: é preciso ter reforma agrária irrigada. No Ceará, o acampamento Zé Maria do Tomé ainda resiste, como mostramos na terceira reportagem da série.

Já na Bahia, essa experiência acabou de maneira traumática. Quem nos conta essa – e outras histórias – é Socorro Varela, 56 anos, integrante do MST de Juazeiro. Depois de uma manhã de entrevistas com trabalhadores das maiores empresas de frutas, vamos ao seu encontro. Pra facilitar nossa vida (forasteiras que somos), ela marca num ponto chamativo da rodovia: um motel.

Dali, seguimos pela BA-210, uma estrada reta que lembra aquelas highways de filme gringo de onde do nada surgem problemas – assassinos em série, perseguições policiais – mas tudo de cinematográfico que acontece é a visão de um gigantesco domo em ruínas fincado a uns 20 metros da via, e que os locais chamam de Monumento Sublime.

Ao contrário das cenas – sublimes ou não – que desaparecem rapidamente diante dos nossos olhos, as lembranças de Socorro são fixas: as brechas que o movimento vem explorando pra fazer chegar terra a quem não tem.

Isso tem se dado à base de muito suor e lágrimas. De longe, o maior trauma remonta a 2019, estreia do governo Jair Bolsonaro. Em 25 de novembro daquele ano, uma reintegração de posse deu fim, ao mesmo tempo, a três acampamentos do MST. “Nós produzia muita coisa. Do melão ao feijão. Do milho à batata. Macaxeira, cebola, enfim… Tinha muita plantação. Levava muita coisa para o Mercado Produtor [de Juazeiro]. Vendia. E aí chega um aparato de policiais e faz o maior terror, tirando as famílias dos três acampamentos”, recorda Socorro.

Os acampamentos Irmã Dorothy, Irani de Souza e Abril Vermelho haviam sido instalados há mais de uma década em áreas da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o órgão federal responsável pela política que fez do polo irrigado Juazeiro-Petrolina um oásis para o agronegócio – e que, como mostram dezenas de reportagens, é também um oásis de cargos e recursos para o Centrão comandado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira.

A ação aconteceu de madrugada, usando helicóptero, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Poucos meses antes, em abril de 2019, empresários da região tinham pedido à então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, empenho do governo federal no despejo dos acampamentos. De acordo com o MST, 700 famílias foram afetadas.

Questionada sobre a violenta reintegração de posse – e também sobre o timing da ação, meses após empresários da região pedirem o fim dos acampamentos à então ministra Tereza Cristina –, a Codevasf apenas respondeu que a “Justiça Federal concedeu reintegração de posse de áreas de domínio público” e  o “cumprimento do mandado de reintegração foi efetuado pela Polícia Federal”.

“Foi uma crueldade que desmotivou as famílias a terem a sua casa, a sua terra, a sua vida”, relembra Socorro, que, percebendo o tom pessimista, emenda no instante seguinte: “Mas o sonho não acabou.”  E é isso que ela quer nos mostrar.

Nosso destino é o Assentamento São Francisco, também em Juazeiro. Por lá, não só o sonho de viver da terra está bem vivo, como um grupo de assentados quer ir além e produzir sem agrotóxicos. Quem nos espera é José Aparecido de Oliveira, o Zezinho, um senhor de 65 anos que anda rápido de lá pra cá, apontando para uma planta e outra da estufa que virou o laboratório da empreitada.

“Eu era do veneno. Envenenado, né? Não tinha consciência sobre o agrotóxico”, nos conta. Para ele, o ponto de corte foram os efeitos dessas substâncias sobre o corpo. Mas Zezinho sabe que essa tomada de consciência não pode ser apenas individual. “Pra mudar é preciso ter um sistema, né? Pra ter técnico, escola que fale sobre agroecologia e agricultura orgânica. Tem que mudar uma nação.”

Ele nos leva a uma plantação de melancias ainda cultivada com agrotóxicos. O plano é que, dentro dos próximos anos, esta e outras frutas passem a ser produzidas no modelo agroecológico. “Manga, goiaba, melão, coco, maracujá…”, enumera.

O assentamento é um lugar bucólico, que se estende da BA-210 até as margens do Velho Chico. Zezinho mostra, orgulhoso, que as famílias passaram três anos “debaixo de lona”, mas hoje moram em casas de alvenaria, com espaço pra quintal e cisterna de água onde cada qual tem sua hortinha. Conseguiram escola para a comunidade – ele próprio frequenta o curso técnico em agroecologia. As coisas não são perfeitas, mas vão caminhando.

Bloco do eu sozinho

Dias depois, estamos a 700 quilômetros dali, no limite entre o Rio Grande do Norte e o Ceará, onde se firmou o segundo polo de exportação de frutas mais pujante do Brasil. Conversamos com agricultores que também se arriscam perseguindo o sonho de viver da terra – mas de outros jeitos.

Eles enfrentam sozinhos as incertezas do clima semiárido, se endividam para cavar poços profundos e são reféns das exigências do mercado. Mas, no fim, garantem que tudo vale a pena: prezam autonomia e dignidade, valores facilmente maculados quando trocam a agricultura familiar pelo trabalho assalariado nas empresas de frutas.

É noite quando chegamos na terrinha de José André da Silva. Ele passou a maior parte dos seus 34 anos trabalhando para grandes exportadoras de frutas, como WG e UGBP, até que, há três anos, passou a viver do que planta. Mesmo em tão pouco tempo, tornou-se uma referência na cidade de Baraúna (RN) – e foi na condição de agricultor exemplar que ele nos foi apresentado por José Saldanha, o ex-presidente do sindicato dos assalariados rurais do município, que nos acompanhou na visita.

Como bom millennial, André começou a guinada pela internet. Foi graças a um grupo do Facebook chamado “Fanáticos por Parreiras” que ele fez suas primeiras experiências na produção de uvas. “Comecei a pegar gosto”, conta. Mas o sucesso não veio de primeira. “As mudas morriam.” Até que sobreveio um elemento imponderável: André conta que uma vizinha sonhou que ele deveria colocar as mudas no banheiro. “Pegou tudinho.”

A história de André poderia ser descrita por um publicitário como uma espécie de “jornada do empreendedor” – que de típica não tem nada, sendo mais exceção do que regra. Do dinheiro da venda das mudas de uvas, ele começou a investir em uma fruta exótica que passou a fazer sucesso no Brasil: a pitaia. “Da pitaia veio TV a cabo, veio bomba nova pro poço, veio mais um pedacinho de terra.”

André planta pitaia orgânica porque tem mais valor de mercado. Em média, vende o quilo da fruta por R$ 12. Sua banana também é orgânica – o que lhe dá um diferencial numa região em que, majoritariamente, os pequenos agricultores vivem dessa fruta plantada da forma convencional. A banana é a escolha preferida por gerar renda o ano todo.

Na tentativa de girar capital, ele alterna culturas: melancia, feijão, jerimum e milho. Hoje, a área plantada é de 4,5 hectares, num total de 7 – mas ele quer crescer. André sonha em ter um lote em um projeto público de irrigação como o Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas, que fica a uma hora de carro da sua propriedade. “O maior risco que a gente corre aqui é a falta de água. Muita gente já perdeu terreno, casa…”, conta.

A imagem de Baraúna ficou colada à exploração predatória das águas subterrâneas. Porque água em abundância sempre houve, mas debaixo da terra. Na região, existem dois aquíferos: o Jandaíra e o Açu. O Jandaíra fica mais perto da superfície, e por isso é o mais acessado pelas famílias de agricultores.

Apesar disso, dar com essa água é uma espécie de loteria: o aquífero tem uma geologia semelhante à das grutas. Debaixo da casa do seu vizinho pode ter um bolsão, mas você mesmo pode ficar chupando o dedo. No passado, essa dificuldade existia, mas era comum achar água a dez metros de profundidade. Nas nossas conversas com pesquisadores, sindicalistas, militantes e agricultores, Baraúna era sempre citada como “a cidade que secou” por culpa das grandes empresas.

André teve sorte também nisso, e achou água em seu pequeno terreno logo na primeira tentativa. Precisou cavar 101 metros – quando a média dos poços é de 150 metros.

O custo do poço foi de R$ 6 mil. A bomba que puxa a água para irrigar sua roça levou  outros R$ 10 mil. Mas a necessidade de investir não para nunca. “O meu sonho é cavar mais outro poço e adquirir um tratorzinho”, diz com o sorriso mais largo possível.

Numa região em que o agronegócio puxou somente em 2019 446 bilhões de litros dos aquíferos e dos rios em troca da difusa promessa de empregos para a população, os pequenos produtores como André estão abandonados à própria sorte. “A desigualdade é grande na agricultura.” Para ele, o poder público deveria assumir um papel proativo. “Uma prefeitura, era pra ela cortar terra, ajudar na manutenção de um poço. Mas a gente não tem esses apoios de jeito nenhum.”

Ao lado da esposa e dos filhos pequenos, antes de se despedir, ele partilha conosco uma conclusão. “Na verdade, eu me considero um cabido”, resume, para explicar na sequência: “O cabido é aquele que quer entrar à força num negócio que não cabe ele.”

Enquanto André vende as frutas que cultiva para diferentes atravessadores, encontramos a 50 quilômetros dali, na porção cearense da Chapada do Apodi, um agricultor que depende de uma única grande empresa pra escoar sua produção. Vamos chamá-lo de Jonas*. Algumas semanas depois da entrevista, ele pediu para não ser identificado por medo de retaliação.

Isso porque Jonas* apostou toda a sua renda e ainda pegou um dinheirinho emprestado com a família para fazer a transição da banana para a acerola orgânica, em 2018. A escassez de água foi um fator importante na decisão. “A banana, se você passar um mês sem irrigar, acaba.” Assim ele perdeu duas safras da fruta. Ao invés de desistir, ele trocou de cultura. “Acerola aguenta um pouco mais.”

Ele já furou três poços na propriedade de cinco hectares. Numa dessas tentativas, desceu mais de 80 metros para não encontrar um pingo de água. Hoje, a água vem de um poço que já rateia: 35 dos 55 metros não têm água. “No final de setembro de 2021, fiquei quase sem água. Pensei em desistir, mas aguentei um pouquinho. Chegou a chuva.”

Ele começou com 200 pés de acerola e hoje já tem 900. Batalha há dois anos pelo selo de certificação de produtor orgânico – uma exigência para exportar para mercados como Estados Unidos e Europa. Nas contas dele, as exigências da certificação dobram o custo da produção em comparação com o manejo tradicional. Além disso, o processo de gestão fica mais difícil. “A certificação quer saber de um tudo. Se eu comprar 10 centavos, ela quer saber. Até os apanhador têm que assinar um documento”, conta, fazendo referência à força de trabalho que contrata informalmente para colher acerolas todo mês.

A guinada da produção convencional para a orgânica também é um movimento solitário, incentivado unicamente pelo mercado que paga mais por esse tipo de fruta. “Não existe nenhum tipo de incentivo da prefeitura, do estado ou do governo federal”, lamenta.

Jonas* produz para a Empresa Brasileira de Bebidas e Alimentos (EBBA), detentora das conhecidas marcas Maguary, Dafruta e Bela Ischia. Apesar do nome, a EBBA é parte de uma corporação estrangeira: desde 2015, pertence à Britvic PLC, uma das maiores empresas de bebidas não alcoólicas do mundo, parceira da PepsiCo na Europa desde os anos 1980.

Escolhemos esse nome fictício para Jonas porque, à sua forma, ele também precisa lidar com uma baleia. Mas, diferente da música de Sa, Rodrix & Guarabyra, ele não assinou um papel com ela. Jonas não tem contrato com a EBBA – o que o deixa numa espécie de limbo. Ele trabalha como se estivesse num sistema integrado de produção, quando o agricultor concorda em vender com exclusividade para uma firma sua safra, mas, se alguma coisa acontecer, arcará sozinho com o ônus. “Sempre investindo no risco, pelejando. E confiando na venda”, resume o drama.

Mesmo assim, Jonas* não quer parar de plantar e, como o André da pitaia, tem planos de crescer. “Em Russas, a água é certa. Meu sonho é plantar no perímetro irrigado lá.” No final da conversa, sua companheira nos serve um maravilhoso suco da acerola plantada pela família. Não sossegamos enquanto a jarra não esvazia.

Estreitamento de horizontes

Em quase todas as casas pelas quais passamos, as pessoas tinham canteirinhos e roças. Ao final de 51 entrevistas, foram raras as vezes que não nos ofereceram uma melancia, uma jaca, um mamão, uma penca de bananas. Depois de dois quilômetros rodados por Pernambuco, Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte, deu pra ver que a ligação da população com a terra é muito forte.

Nessas cidades-chave para a exportação das frutas brasileiras, poucos têm seu pedacinho de terra – e, quando têm, faltam água, crédito e toda sorte de políticas públicas.

“Aqui, a escolha que tem é trabalhar na manga ou trabalhar na uva”, nos conta Valéria*, 42 anos – 13 deles trabalhando nas plantações de uvas do polo Juazeiro-Petrolina. Ela é uma das funcionárias dessas empresas que, a despeito da dureza das condições e das variadas humilhações pelas quais passam, veem suas filhas e filhos seguindo pelo mesmo rumo. “Não tem outra opção”, é a frase que mais ouvimos. 

Valéria sonha em ter o próprio negócio. “Uma lanchonete, uma vendinha, um pontinho que eu pudesse ficar ali, me mantendo, vendendo minhas coisinhas”, descreve.

Mas mesmo o celebrado empreendedorismo do século 21 esbarra na falta de oportunidades que vai empurrando todos para uma espécie de destino inescapável. Nesses lugares, a pujança da exportação de frutas esconde um processo de predestinação que aprisiona a parcela mais vulnerável da população local. “Pro agronegócio, o bom é ter esses trabalhadores na mão pra continuar explorando”, resume Socorro, do MST.

“É um desafio convencer os jovens de que é possível trabalhar na comunidade e gerar a própria renda”, conta Tamilo Costa, do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). O foco da entidade, que atua no polo Juazeiro-Petrolina, tem sido a convivência com o semiárido. Tamilo é um pouco a imagem e semelhança de quem está falando: aos 32 anos, ele também é um remanescente de uma comunidade de fundo e fecho de pasto. Em Melancia, seu trabalho é assistir a essas e outras comunidades tradicionais.

Conviver com o semiárido, nos explica, significa se adaptar à escassez das chuvas, a criar formas de lidar com o calor, a valorizar a flora e a fauna locais. Em Melancia, a própria escola onde encontramos Nazareth é um exemplo de convivência com o semiárido. A construção é feita de tijolos de barro, com revestimento em gesso, e, por isso, fica fresquinha. Parece que estamos dentro de um filtro de água. Nossa entrevista aconteceu perto do meio-dia, horário em que, do lado de fora, a pele doía depois de poucos minutos de contato com o sol.

É literalmente outra lógica. Nazareth cria abelhas não com um fim único – o lucro –, mas para preservá-las. “A ideia de criar as abelhas sem ferrão é não só para ter o mel, mas sim para resgatá-las da mata porque, quanto mais cria, mais elas rendem. E aí a ideia foi essa: preservar as abelhas nativas”, nos contou.

Ao contrário, a fruticultura de exportação, com seus círculos, quadrados e retângulos verdinhos, à custa de muita infraestrutura pública de irrigação, tenta fingir que o semiárido não existe, desmatando a Caatinga e transformando a riqueza de tradições locais em um processo de contrata-demite-contrata que não tem fim para a população.

Mas nem sempre foi assim – e ainda existem formas de disputar esse modelo de desenvolvimento que, quando olhado à lupa, revela um conjunto de problemas. E não há ninguém melhor do que Franscisco Edilson Neto, ex-presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Apodi (RN), para falar desse passado não tão distante.

Aos 65 anos, já com a voz vacilante, ele relembrou da infância e da adolescência, quando várias famílias vizinhas se juntavam para produzir coletivamente, em canteiros na beira do rio Apodi. “Eu fui criado com meu pai plantando arroz vermelho. Ele nunca botou um quilo de adubo químico. Foi uma coisa muito gostosa, foi minha escola.”

Além do arroz, produziam hortaliças e frutas nativas – autonomia que, nos anos da seca braba da década de 1980, fez com que a pequena comunidade tivesse o suficiente para comer, em lugar de depender das doações da chamada frente de emergência. “A gente criava pequenos animais – o porco, a galinha…  Aquela vida de camponeses que para muitos é um atraso. Mas a gente queria que esse modo ficasse para os nossos netos, o que tá sendo muito difícil.”

No ano 2000, a monocultura de frutas apareceu em Apodi como promessa de melhorar a renda das famílias. “Resultado? A gente plantou seis hectares e se endividou para o resto da vida”, Edilson conta, rindo. Foram R$ 13 mil, que ele passou cinco anos para pagar.

Mas o pior resultado, na avaliação dele, foi a quebra do modo de produzir em comunidade. “Depois nunca mais juntou.” O melão – carro-chefe da fruticultura de exportação do polo Rio Grande do Norte e Ceará, e que tem tudo para viver um novo boom de produção após o governo Bolsonaro acertar os trâmites para exportação para o gigantesco mercado da China – foi, na avaliação de Edilson, o canto da sereia responsável pela guinada.

“O pessoal achava que aquela agricultura que nós fazia era o atraso. E que era pra plantar melão pra exportar. Eu lembro do povo esperando pra assistir o Jornal Nacional pra saber o preço do dólar. Você vê os absurdos que o capital faz com o povo…”, relembra, para concluir: “Confesso a você que doeu muito quando a gente viu isso se destruir.”

O agricultor André se define como um “cabido” por ser pequeno e ter entrado “à força” no negócio das frutas. Foto: Raquel Torres

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