Seria necessário que toda pessoa branca se visse na sinhá de São Conrado. Por Milly Lacombe

No UOL

As imagens mostram uma mulher branca usando a guia do cachorro para chicotear um entregador negro.

O cachorro ela soltou da guia e largou à própria sorte pela rua. Naquela hora era mais importante chicotear um corpo negro.

A estética é altamente reveladora. Bastaria a cena, sem som.

Mas temos mais.

Sabemos o que foi dito pela mulher branca ao grupo de entregadores sentados em uma calçada enquanto aguardavam serem chamados pelo aplicativo para a próxima entrega.

A presença deles sentados ali deixou a mulher branca furiosa.

Como ousam sentar numa calçada de bairro de gente rica?

Esses corpos que carregam caixas quadradas nas costas são tolerados enquanto se prestam a ir nos levar comida na porta de casa.

Fora isso, vazem. Sumam das nossas vistas.

Se nós, pessoas brancas de classe média, olharmos para o que fez a tal Sandra Mathias Corrêa de Sá e não nos identificarmos nem um pouco, então alguma coisa estará errada.

É como o homem que, ao ler as notícias sobre abusadores, diz: “que horror, não aceito ser comparado a isso. Não sou esse cara. Nem todo homem?”

Nem todo homem faz, mas todos os homens se beneficiam de um sistema que faz.

A oligarquia brasileira foi construída para se identificar com a europeia.

Odiar o Brasil e tudo o que venha das frestas – incluindo corpos negros e seus saberes – é a base da educação oligárquica e, por derramamento e identificação, da classe média que sonha um ser oligarquia.

A percepção de que brancos são superiores a negros é ensinamento diário nessa sociedade há 500 anos.

Ricos e remediados no Brasil cresceram com pessoas negras servindo o café, arrumando nossas camas, lavando nossas roupas e louças, fazendo nossas comidas, colocando pratos na mesa, tirando da mesa etc.

É apenas natural que, por mais bacana que sejamos, por mais conectados a lutas sociais, ainda tenhamos em nós essa configuração padrão.

A desconstrução deve ser feita durante todos os minutos de todos os dias.

Entender que um corpo branco – por mais sensível que seja à luta antirracista – carrega com ele violências quando se apresenta socialmente é um começo.

Mas alto lá, dirão alguns: somos responsáveis pelo que fizeram nossos ancestrais?

Sim. Em muitas e diferentes camadas.

Aquela mulher chicoteando o entregador somos todas e todos nós.

É preciso que nos impliquemos nesse horror.

É preciso que olhemos no espelho e encaremos a triste realidade desse Brasil erguido sobre extermínios e genocídios.

É preciso que reconheçamos o privilégio de entrar um shopping center e não ser perseguida ou ter a bolsa revirada.

O privilégio de ir ao supermercado e não ser acusada de furto.

O privilégio de saber que as chances de enterrarmos nossos filhos são mínimas se comparadas à chance de uma mãe negra enterrar seu filho.

É preciso colocar a luta antirracista como ponto central de nossa jornada.

É preciso reconhecer que esse país não é a história que nos contaram e que, até aqui, o que houve foi um massacre de tudo o que não fosse parecido com o ideal europeu de vida, de saber, de existir.

É preciso entender que não somos ainda uma nação.

E que não seremos enquanto alguns dos nossos forem tratados à bala, à tortura, a chicoteadas.

E é preciso com urgência olhar para as formas através das quais o capitalismo reforça todo esse horror.

O rapaz agredido tem três filhos, trabalha 12 horas por dia, sete dias por semana.

É uma organização econômica e política desenhada para humilhá-lo, silenciá-lo, enfraquecê-lo, matá-lo.

Não nos importamos com sua morte.

Amanha haverá outro para nos trazer comida à porta. Tem por aí um exército industrial de reserva que serve para conferir mais poder ao patrão e menos ao trabalhador.

Muita gente a fim de trabalhar. Se você não quer, tem outro logo ali que tá precisando. Se liga e pedala!

E nós faremos um escândalo se o entregador se recusar a subir pelo elevador para entregar o pacote de modo a que meu corpo tenha que me mover o mínimo possível.

Queremos o serviço deles, mas não queremos vê-los parados por aí.

Escondam-se como ratos enquanto aguardam o aviso pelo celular de que uma nova entrega deve ser feita.

A reforma trabalhista piorou essa realidade, pintou o trituramento com cores mais vivas, para deleite de pessoas como a sinhá de São Conrado, que acredita que nasceu para ser princesa.

Um aplicativo não tem sede, não oferece registro na carteira, não tem onde acomodar o trabalhador entre entregas.

Mas tá tudo certo para muitos. É assim que deve ser.

Quem se esforça chega lá.

Acorda cedo. Trabalha, desgraçado. Pedala. Me traz a comida logo que tô com fome.

Os filhos deles, com sorte, vão a uma escola pública e quando chegarem ao ensino médio – se antes disso uma bala atirada por algum homem fardado não estourar seus miolos – aprenderão disciplinas como “brigadeiro gourmet”, “como ser um tiki-toker” e (apenas um dos dispositivos de sadismo que temos) “como ser um milionário”.

Tá tudo liberado com essa reforma aprovada durante o governo Temer e apoiada por tantos corpos brancos poderosos.

A reforma do ensino tem suas garras fincadas nesse princípio também: formar trabalhadores, aqueles que servem, aqueles sobre os quais poderemos perpetuar esse sistema de castas que se chama Brasil.

Mas é vendida como a salvação, como um marco no começo da melhora de tudo.

Pensada, idealizada e executada por executivos. O que pode dar errado, não é mesmo?

O entregador Max Angelo dos Santos é tão brasileiro quanto a tal Sandra Mathias, de quem apanhou sem revidar.

Tivesse revidado, estaria preso – e isso na melhor das hipóteses.

Max Angelo deveria ter acesso ao que diz a constituição. Saúde, educação, dignidade, cultura, pertencimento.

Mas foi chicoteado numa rua de São Conrado.

Sandra Mathias não é uma maluca violenta destacada da sociedade. Ela é parte integrada ao corpo social.

Ela representa a pessoa que senta à mesa com amigas num fim de tarde qualquer, faz suas compras, come sua torrada com abacate e toma seu suco verde, vai à academia, engole seus suplementos, fala mal do país em que vive, elogia o padrão europeu de vida, reclama da pintura do hall social do apartamento em que mora que ficou num tom de bege que não era o mais adequado, envia carta à síndica exigindo que o condomínio teste outras cores para que o hall social seja lugar mais agradável à vista, estala o dedo para chamar o garçom, dá ordens à empregada e, vai ver, até diz uns obrigada, uns por favor e entrega alguns presentinhos para os funcionários no Natal.

Ela é parte pulsante de um Brasil que precisa se olhar no espelho para poder deixar de existir.

Ou a gente se reconhece nela, ou estaremos envolvidas e envolvidos num simulacro de lutas sociais.

Em 2019, escola de samba Mangueira levou à Sapucaí um enredo que reivindica para os livros “a história que a história não conta”.Foto: Richard Santos /Riotur

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