“Esquecer é permitir que ocorra novamente”, diz diretora da associação Anjos de Realengo

Mãe de um dos 12 jovens mortos no massacre na escola no Rio, Adriana Silveira defende o combate à cultura de violência

Por Nathallia Fonseca, em Agência Pública

“Existe uma coisa muito maior do que as autoridades estão vendo. Uma cultura de violência que não está sendo tratada como deveria”, aponta Adriana Silveira, diretora da Associação Anjos de Realengo, ao comentar os recentes ataques a escolas brasileiras. Silveira é mãe de um dos 12 jovens assassinados na escola Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, no Rio, em abril de 2011.

Este ano, novos ataques e ameaças que citam o mês de abril, especialmente o dia 20 – aniversário de 24 anos da tragédia na escola secundarista Columbine, nos Estados Unidos –, se tornaram recorrentes. Para Silveira, a crise mostra como a questão não recebeu a atenção necessária. “Apesar do que tinha acontecido [em Realengo], achei que pararia ali, sabe? Que as providências seriam tomadas para que esse fato não viesse a acontecer nunca mais”.

À frente da associação, ela e os outros familiares de Realengo vem há anos cobrando das autoridades medidas efetivas de segurança nas escolas. A dona de casa e vendedora autônoma também participa de palestras e mantém diálogo direto com lideranças políticas que podem atuar na causa.

“O Estado falhou comigo. O país falhou com a minha filha e comigo como mãe. E continua falhando, porque honrar a memória da Luiza e o legado dessas crianças é garantir que isso não volte a acontecer”, diz ao lembrar da filha, que tinha 14 anos.

Veja os principais trechos da entrevista de Adriana Silveira à Agência Pública:

Como foi criada a associação?

Precisava-se iniciar uma luta para que não acontecesse mais. Isso pela própria memória dessas crianças. Elas partiram e deixaram um legado, que foi a atenção para essas mudanças, para a necessidade de que as autoridades deveriam parar e analisar um problema gravíssimo. Alguma coisa precisava ser feita lá atrás para evitar que ocorresse o que estamos vendo agora, e nós já estávamos brigando por isso. Eu era só uma pessoa comum, uma voz entre muitas, mas precisava fazer alguma coisa. Comecei a pesquisar o tema para lutar por justiça. Saúde mental, segurança, educação. Isso não fazia parte da minha rotina, agora faz.

Não é fácil. Até hoje eu não gosto de lembrar, não queria estar falando sobre esse tema, tocando num momento tão doloroso das nossas vidas. É terrível reviver tudo que estou contando aqui, mas não tem outra forma. A gente precisa debater, trazer esse assunto para a pauta em vez de empurrar algo tão importante para debaixo do tapete. Até porque esquecer é permitir que ocorra novamente.

A falta de assistência psicológica em escolas públicas é um dos problemas que a Anjos de Realengo aponta de maneira recorrente. Vocês acreditam que houve uma mudança nesse sentido desde 2011, quando ocorreu o massacre, até hoje? 

Pensando no ensino público, o acesso à assistência psicológica até piorou, né? Existe uma lei [13.935/2019] que exige serviço de psicologia nas escolas, mas não conseguem garantir que ela seja cumprida. Muitas escolas não contam com esses profissionais ou não aplicam da maneira correta.

Não adianta investir em ações de segurança e saúde mental depois que a escola já foi atacada. Nós precisamos garantir que a violência não chegue até a escola, não invada esse espaço. É muito claro para mim que tem um problema maior por trás disso, uma cultura de violência, e que esse problema não está sendo visto.

E o que você acredita que pode ser feito, efetivamente, para melhorar o acesso aos serviços psicológicos nas escolas? 

Ainda existe muito a ser feito, todo um trabalho com os professores, os docentes e os pais. Precisa-se de uma cartilha que seja para todas as escolas e que aborde esse tema. Uma semana de prevenção à violência dentro das escolas, que leve o tema a sério, que dialogue e ouça os alunos também. Além disso, existem coisas que não estão diretamente ligadas a esse tema mas que são fundamentais também, como a promoção do acesso à cultura, que diminui índices de violência em todas as comunidades.

Você acredita que o Estado falhou com a sua filha e com as demais crianças?

Falhou. Falhou com a Luiza, falhou comigo como mãe. O país falhou e continua falhando com a gente e com todas essas vítimas e famílias, porque honrar o legado dessas crianças é garantir que isso não volte a acontecer. Nós não podemos naturalizar o fato de que esses crimes aconteceram num lugar que era para ser seguro. Eu deixei a minha filha com saúde na escola, um lugar que eu confiei. Eu fui uma mãe presente, olhava os cadernos dela. Costumo lembrar sempre que, aos 14 anos, ela nunca tinha dado um passeio sem a supervisão de um adulto, porque nós tínhamos medo que alguma coisa acontecesse. Mas na escola eu confiava.

Eu não devo nada às autoridades. Pelo contrário, o país é que me deve muito. Me devem uma resposta, me devem a vida da minha filha, eles devem aos cidadãos. Porque nós entregamos a eles, ao Estado, um futuro promissor. Eu entreguei a minha maior esperança, a minha filha, dentro uma escola. E o que eles me entregaram de volta foi um corpo.

A justiça e o respeito à memória dessas crianças, para mim, só vai ocorrer quando a gente não precisar mais ver ataques assim. Quando não existir mais o risco de ataques nas escolas.

Hoje, muitos pesquisadores associam o avanço da extrema-direita ao aumento dos massacres nas escolas. Como você vê essa tese?

É claro que quando se fala em liberação das armas de fogo, quando facilita o acesso de crianças e adolescentes a essas armas, existe um aumento da violência. Mas eu costumo lembrar que no dia 7 de abril de 2011 [data do massacre em Realengo] ainda não tinha essa história, né? É importante que a gente esteja muito consciente de que isso já vinha acontecendo bem antes, não é uma novidade. Lembrar disso reforça que o trabalho de prevenção é muito mais urgente e deve ser muito mais intenso do que parece.

Este dia 20 é aniversário do ataque a Columbine, nos EUA. É também uma data muito utilizada em ameaças recentes e historicamente atrelada a esses ataques. Você vê alguma conexão entre o contexto dos EUA e do Brasil? 

Acho que sim, mas é um problema maior. Eu não acho que tudo se resume ao bullying, ao caso individual desses assassinos. Não dá para tratar assim. É isso também, mas é uma cultura maior. Lembro que logo após o ataque em Realengo, a polícia impediu um ataque em Brasília. Nas investigações, foi visto que eles se comunicavam em grupos onde estava o assassino da minha filha. Ou seja, tem algo grande aí, né? Nós sabemos que existem redes que idolatram esses assassinos, inclusive é doloroso demais pensar nisso.

No caso das ameaças que estão rolando agora, acredito que muitas são fake news, porque quem planeja algo assim não avisa o dia. Gostaria, inclusive, que as pessoas parassem de divulgar, porque as famílias estão assustadas, as crianças estão aterrorizadas. E é exatamente isso que eles, que exaltam esses ataques, querem.

Qual o papel dos pais e tutores no combate à violência nas escolas? 

O mais importante. Nossas crianças e adolescentes são responsabilidade nossa. Observem o que os seus filhos estão fazendo nas redes sociais, com quem eles estão falando. Observem o comportamento dos seus filhos dentro de casa. Às vezes a gente está lá, na mesma casa que eles, mas não sabemos o que eles fazem na escola, ou como está a vida deles. É importante buscar os nossos filhos, tratar, oferecer apoio. Às vezes nós estamos ocupados e não paramos para observar um grito de socorro que está bem ali, na nossa frente. Um filho é o bem maior de uma família, eles precisam de cuidado.

Ao longo do seu contato com esse tipo de radicalização e ataques em escolas, você imaginou que chegaríamos à crise que temos hoje?

Não. Eu não imaginei nunca que isso se tornaria uma crise. Apesar do que tinha acontecido, achei que pararia ali, sabe? que as providências seriam tomadas para que esse fato não viesse a acontecer nunca mais. Ver mais uma vez essa situação é um sinal de impotência muito grande.

Na época, nós vimos ações emergenciais, vimos ações alarmadas, mas logo depois as coisas voltaram a retroceder. Por exemplo, várias escolas do Rio de Janeiro contrataram porteiros nos anos seguintes aos ataques, hoje em dia muitos deles já foram mandados embora. A mesma coisa com câmeras, segurança. As escolas investem depois de algum problema e não antes. Não adianta investir em monitoramento quando o ataque já aconteceu.

Adriana em memorial construído para as 12 crianças, na praça ao lado da escola Tasso da Silveira

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