STF e as escolas indígenas que caminham. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

(De São Luís do Maranhão) – “Não é o aluno Guarani que vem para a escola. Somos nós, professores, que vamos até os alunos. Nós somos professores sem fronteira”.

Esta frase de Aline Jáxuca Adão foi dita na oficina realizada com Valcenir Karai Tibes no II Seminário de Arte, Educação e Cultura, organizado pelo Centro de Cultura Vale do Maranhão (CCVM), em São Luís, de 18 a 20 de abril, numa semana de eventos indígenas que pipocaram por todo Brasil.

Neste encontro, com a curadoria da linguista Flávia Berto, ocorreu um diálogo entre  acadêmicos indígenas e não-indígenas. A doutora em linguística Márcia Kaingang, o antropólogo Marcus Vinicius Garcia (Iphan) e este locutor que vos fala discutiram em uma das mesas os Instrumentos e estratégias de valorização da diversidade linguística, quando foi exibida a Plataforma Nimuendaju, que de uma certa forma contribui para explodir a tese furada do marco temporal, a ser julgada pelo STF em junho próximo.

Os participantes vieram, alguns de muito longe, para compartilhar experiências. Lá estavam professores Guarani Mbyá (SP), Kaingang (SC e RS), Mehin Krahô e Panhi Apinajé (TO), Yudjá-Juruna(MT), Tikmu´u Maxakali (MG), assim como os do Maranhão: Awá Guajá, Gavião Pykobjê, Tentenhar-Guajajara, Tremembé, Tupinambá, além dos Warao, lá do rio Orenoco, que migraram da Venezuela. Talvez as pedagogias indígenas sejam a maior contribuição dada para a construção do Brasil moderno.

Escola caminhante

A professor Aline Jáxuca, 31 anos, destacou que as 14 aldeias das Terras Indígenas Tenondé Porã e Krukutu localizadas dentro da cidade de São Paulo optaram por não ter cacique, mas uma equipe de lideranças de núcleos familiares. Lá, a escola bilingue funciona de forma descentralizada – completou Karai Tibes, durante a oficina sobre “Educação Escolar e a luta pelo território: construindo uma escola caminhante”.

– O importante não é ter um prédio de alvenaria. Qualquer espaço sem paredes de sala de aula pode ser lugar de ensino, desde que o aluno se sinta bem. Nosso aluno Guarani, em vez de se isolar, sentado em carteiras enfileiradas uma atrás da outra, olhando o cangote do colega, fica em círculo, cada um frente ao outro, olho no olho, – disse Aline, exibindo fotos de crianças sentadas no chão e até deitadas durante o ato de escrever.

– A alfabetização das crianças é feita em língua guarani e, só a partir do  quarto ano do ensino fundamental, nós ensinamos a “língua estrangeira – o português” – nas palavras da professora Aline, que é alfabetizadora e atua nas aldeias, algumas delas de retomada recente.

Os Guarani, que enfrentaram os canhões portugueses e os bandeirantes, os missionários e a catequese, além da escola desagregadora, que proibia a língua materna em seu recinto, agora resistem, em aldeias no coração da capital paulista, coabitando com o professor-celular e com o professor-Tv na luta para salvaguardar sua língua e sua cultura, numa escola diferenciada que funciona desde 2015.

– A função da escola é fortalecer a retomada do território, os modos de vida Mbya e os processos próprios de aprendizagem na transmissão dos saberes que sustentam o nhandereko, o modo de vida Guarani. A escola ensina também a plantar. “Em todas as áreas retomadas, conseguimos cultivar a terra. Na safra de 2019 – informou Karai – colhemos 16 toneladas de nove tipos de milho, além de toneladas de mandioca, batata doce, amendoim, feijão, abóbora, melancia”.

Das 14 aldeias novas, 10 já construíram sistemas de captação de água das nascentes, com filtros de areia para água dos rios, além de um sistema de banheiro ecológico sem poluição.

Alfabecantar

Experiências similares foram relatadas em  mesas com a participação de representantes de outros povos. Os acadêmicos do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (Profllind) do Museu Nacional / UFRJ, Jonas Gavião, autor de três livros, Cíntia Guajajara e Amyria Guajá expuseram os desafios da educação escolar indígena de 14 povos do Maranhão falantes de 10 línguas, todas elas ameaçadas.

O projeto comunitário Aldeia-Escola-Floresta, com encontros periódicos de pajés, foi exposto por Marcinho Maxakali, Sueli Maxakali e Carlos Maxakali, que discorreram sobre as oficinas de arte, a luta pela retomada do território e o reflorestamento da área, seguido da exibição do filmes “Nũhũ Yãg Mũ Yõg HãmEssa terra é nossa!” e o curta “Yãy tu nũnãhã Payexop: Encontro de Pajés”.

A oficina Alfabecantar: cantando o cerrado vivo foi ministrada por Gregório Krahô, Júlio Apinajé e Alexandre Herbetta, que abordaram tanto a educação ambiental quanto o ensino musical, como práticas pedagógicas decoloniais da escola e a construção de novas matrizes curriculares, com destaque para o material didático.

Finalmente, os Yudja-Juruna,  um dos povos mais importantes do Xingu,  realizaram a oficina Yudja iwïre ã’ã pe seha: aprendendo com os YudjaO professor e vice-cacique Yabaiwa Juruna, formado pelo projeto “Pedra Brilhante” do Instituto Socioambiental (ISA), participou com seus colegas Karin, Tawaiku, Dayalu e Sedayadu na exposição de seus métodos próprios de ensino, abordando os cantos, a arte, o grafismo, a história e aspectos da aprendizagem da sua língua pertencente ao tronco tupi.

Representantes dos Warao da Venezuela, que vivem no Maranhão, ouviram os relatos e narraram as dificuldades encontradas na caminhada por mais de quatro mil quilômetros, a violência sofrida, a xenofobia, mas também a solidariedade recebida. Hoje são milhares de Warao espalhados por muitas cidades brasileiras. Aguerridos, eles enriqueceram o nosso país, trazendo para cá cantos, literatura e mais uma língua a figurar no mapa do Brasil.  Merecem que o Ministério dos Povos Indígenas providencie uma terra para eles aqui em Pindorama.

A Plataforma Nimuendaju

Embora o Brasil apresente uma das maiores diversidades linguísticas do planeta, a ideia de que o país é monolíngue segue fortemente enraizada e está na base do apagamento das línguas indígenas faladas no país, conforme foi discutido na mesa na qual Márcia Kaingang discorreu sobre o Grupo de Trabalho Nacional da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) e Marcus Vinicius Garcia expôs as ferramentas da Plataforma Nimuendaju.

Trata-se da versão digital e interativa para a internet do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes elaborado pelo etnólogo teuto-brasileiro Curt Nimuendaju, cuja vida foi dedicada ao estudo das línguas indígenas do Brasil. Seu mapa, baseado num trabalho exaustivo de campo e em mais de 900 referências documentais e bibliográficas, traz a localização das áreas de ocupação tradicional, tanto as existentes, quanto aquelas consideradas extintas desde os primeiros séculos da colonização.

A Plataforma Nimuendaju permite diferentes interações com o Mapa, sobrepondo-o com distintas camadas de informações, entre elas as atuais Terras Indígenas, assim como as Unidades de Conservação e os Sítios Arqueológicos – diz Marcus Vinícius. É possível acessar as referências documentais e bibliográficas para definir a localização indicada no Mapa de centenas de povos indígenas.

Nimuendaju usou o suporte que possuía em sua época, nos anos 1940, sobretudo papel e tinta. Organizou as informações a partir de uma estratégia de classificação destinada a apresentar um emaranhado de dados complexos em plano cartesiano. Já a Plataforma consegue trazer tridimensionalidade ao mapa, possibilitando a interação do internauta de acordo ao seu interesse específico.

Os ministros do STF que vão julgar o marco temporal, em junho, poderão verificar, com um ou dois cliques,  a extensão de cada território tradicional e especialmente sua temporalidade, derrubando qualquer pretensão de quem cobiça as terras indígenas.

As traduções

Professores de diferentes etnias, que compartilharam suas experiências pedagógicas no evento do Maranhão, foram informados de que a ministra Rosa Weber determinou a tradução ao Nheengatu do texto completo da Constituição Federal de 1988. Eles decidiram, então, traduzir para suas respectivas línguas apenas o art. 231 da Constituição, com a esperança de que possam figurar na exposição sobre arte e cultura indígena inaugurada no STF, em Brasília, na quinta (19).

Reproduzimos aqui as traduções do referido artigo:

Português Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Língua Awa – Awa ikuae mumu’u aena  – Awa rakwaha pãja awa iku py Brasil pe. Ame karai tamỹawa rakwaha tixa katy rate awa ikuha. Ame karai tamỹariˈĩ te tinu katy rate. Ame karai tamỹarikuha tixa katy rata. Tewe arikuha kijã. Aria ariku py wy kurehe aria. Kwa karai u mije amo hakwaha ria arikaˈa mamaka. Amekarai tamỹarixaˈa taha hurate kumehe te kyryˈy. Maˈakera arikaˈa kyryˈy nỹ. Nanimanoka titi tari karai py kyryˈy. Ame arikaˈa tine kua arimymy pe. (Tradutores: Tatuxa’a Awa Guajá e Amyria Guajá).

Língua Tikmu – ‘un yumu ãte yãy yu mug yu mu g xape ãtep tup ug putat hãg mog u g mug yĩy ax no hexpexta ne he kutex xatep tup pax nuy-om xip tap yikopit puxa mĩha yu mug pu homimo ug mu ̃ãtep tup u gmu g xape xop mu tix hãhãm pu gohet u gmu g a homipxup (Tradutor Marcinho Maxakali)

Língua Tentehar – I’i maper uhu ikàg ma’e rehe, izeruze’egaty haw, tenetehara waneko haw rehe. Amogwer a’nam pawywy rehe wiko ma’e wanupe kury. Tuwe uruwiko izypy mehe we nehe, ze’egete, zeruzar haw tuwe rehe. Pezekwaikatu zote ywy rehe urwe. Ta’e kwehe mehe we uruwiko xe ywy rehe ure. (Tradutyora: Cíntia Guajajara)

Língua Gavião – Cogxxetohhehsa w Iodeual
Cohte me he h te amjho to e hi himpexxy , me cohte amjo hjahyhrxy, me pa’cacuc, me paate e hmpoo to amjo hje pixxy, paajapacxy , me paate amjo hje hpixxy, pom coh me pji’ cỹm paapaehnta, qui cohpehatox cỹm me paamy pji ri, ne me paamy pji’ cỹm e hmpoo e hnta ji jamy, me paamy e hmpoo pyhty. (Tradutor: Jonas Gavião).

Língua Yudja kamena – Kamena sede ekariku yãhã Pe ide hae yãhã 231
Abi ha sade pe ide lubahu seha, se wïre, se kamena, se ziya, ī du seme idju seha, pe seha, epïa du seme ha anu, dusi pe yãhã ha anu, epïa a dube dade karai epïa zaka ulu ikua hinaka te, ulume ha anu, ubaha he ī uluzaka ulu be, ī bitïhu pe au taha ubaha. (Tradutor Karin Juruna)

Guarani Mbya Ma oexa kuaa aguã nhande reko, nhandeayvu, jajeroviaa, nhande yvy jareko hae ma va’e va’ekue rupi hae União oexa kuaa rã, omã’e ve rã, omboete ve rã opamba’e nhande yvy re jareko va’e. (Tradutores: Aline Jáxuca Adão e Valcenir Karai Tibes)

Kaingang – Estado brasileiro m
Kanhgág ag tũ pẽ tỹ ki venhra nỹ ha ag vẽnhmãn kỹ nỹtĩj fẽ, ag jykre pẽ, ag vĩ, ag nén kri fij fã, kar ag jagnẽ mré ag si ag jykre nón han fẽ ti, kar ag jave ag tỹ ga kri mũ ja tóg tỹ ag tũ pẽ nỹtĩ ti, kỹ união tỹ han ge mũ vỹ tỹ ag mỹ ag ga vin mãn ke nĩ, kar ag mré kirĩr ke, kar ag tũ pẽ há kar vin han ke nĩ gé. (Tradutora Márcia Nascimento)

Warao
Kajono oko yabanaja, tai ka ñbu kuare taera obonoya, deje warakitane ka jobaji eku. Ama Yatukamo diana ko ja, kuare, rome orikuare abane jakitane, dau kabakitane, yabakitane tai ka najoro tane ka jobaji eku. Oko kokotuka abane oñkuare nakakitane ja, tai nojibana jisaka abane narkitane ka comunidade eku. Oko waraotoma kokotuka on etomanetea warao jisaka monika diana yakerawitu. (Tradutor: Hector Pérez)

P.S. Ver também:
– Plataforma Nimuendajú mostra a diversidade indígena brasileira em mapa interativo — Revista RAIZ – cultura brasileira
– http://mapa-nimuendaju.eita.coop.br

 

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