Lula 3: não esqueçam quem é o inimigo

Ao posicionar o Brasil pela construção do mundo multipolar, Lula atiça o Império, que não hesitará em conspirar para derrubá-lo. A mídia já entendeu – e abre fogo contra ele. Cabe a nós defender seu mandato – e pressioná-lo criticamente à esquerda

por Maurício Abdalla*, em Outras Palavras

Lula, no cenário internacional, tem-se constituído peça determinante para uma possível mudança histórica, que, caso se concretize, será um marco decisivo para o futuro da geopolítica global e das relações internacionais: o enfraquecimento do poderio imperial dos EUA e o início da criação de um mundo multipolar.

Não é uma revolução socialista mundial. É avanço dentro mesmo do capitalismo global. Mas tem consequências enormes para o alívio dos países agredidos e sufocados pelos EUA, como Cuba e Venezuela (submetidos a bloqueios que geram fome e sofrimento para dezenas de milhões de pessoas), e dá mais poder de decisão aos países do Sul Global sobre suas políticas e economias internas, tornando-os menos suscetíveis às ameaças e interferências do Império do Norte, caso ousem cuidar de seu próprio povo. Isso não é pouca coisa.

Ao assumir a postura de país não alinhado a nenhuma das potências em disputa e colocar-se como ator soberano, no mesmo nível das outras nações, o Brasil, sob a liderança de Lula, assume um papel determinante como negociador e “voz da razão” nas guerras bélicas, comerciais, econômicas e ideológicas travadas entre EUA e Europa contra China e Rússia, além de poder contribuir para uma economia global independente do dólar americano.

Por isso, os EUA, usando a mídia corporativa borra-botas brasileira, começaram os trabalhos para detratar o governo eleito, tentar seduzi-lo à velha submissão com promessas vantajosas ou, se tudo der errado, derrubá-lo. Tenha sido por plano ou por benevolência do acaso, o fato é que Alckmin está no tambor de munições. Passadas as eleições, os que tiveram (ou quiseram ter) a ilusão de um Alckimin de esquerda podem deixá-la de lado. Ainda que não colabore ou até lute contra um novo golpe suave, quem assume é ele. E isso é tão conveniente para os EUA que a crença em coincidência deve ser acompanhada da crença em um deus sempre favorável ao Tio Sam e ao “mercado”.

Depois de envidarem esforços colossais para derrubar Dilma, apropriar-se do petróleo do pré-sal e colocar o Brasil na posição de subalternidade que sempre o caracterizou – ainda que isso tenha gerado o efeito colateral do governo tosco do último quadriênio, que até o governo dos democratas estadunidenses quis derrotar – o Império do Ocidente não iria assistir imóvel ao governo Lula querer retomar a soberania nacional, andar pelo mundo pregando a igualdade entre as nações no quadro geopolítico global, criticar o mercado e posicionar-se na economia e na política internacional de forma independente da cartilha ditada pelos EUA.

Cartilha, aliás, que é a mesma que nossa mídia corporativa assumiu como “a verdade” ou “o lado certo” e usa para criticar as posições de Lula, ora tratando-as como erradas ou perigosas, ora criando a imagem de um Lula trapalhão que não entende de relações internacionais e fala sem pensar. Lula poderia dar aulas de geopolítica e relações internacionais para a maioria dos jornalistas e comentaristas da mídia brasileira. Mas o caso é que essa mídia tem mais acesso à opinião pública do que esta à verdade das coisas, e a imagem que fica é a que a mídia tenta forjar.

Uma nova guerra começou. Ou a segunda etapa de uma guerra começada lá atrás, cujos primeiros movimentos foram revelados por telegramas vazados pelo Wikileaks (https://wikileaks.org/Nos-bastidores-o-lobby-pelo-pre.html) que mostravam o conluio entre o consulado dos EUA no Brasil e a indústria de petróleo estadunidense para se apropriar do pré-sal, por meio do apoio a políticos do PSDB (José Serra foi citado), lobby no Congresso Nacional Brasileiro e investimento nas eleições presidenciais.

Sabemos que, apesar de quererem o retorno da submissão neoliberal “limpinha e cheirosa” do PSDB, aceitaram o efeito colateral da barbárie bolsonarista que se manifestou nas primeiras eleições depois do golpe de 2016. Michel Temer era carta fora do baralho e não conseguiram emplacar um tucano, então, aceitaram a ascensão ao poder da escória social e política, já que a outra única opção era o retorno dos que foram destituídos.

Agora está um pouco mais fácil para eles. O tucano (aparentemente convertido – e que Deus perdoe minha incredulidade!) já está na vice-presidência. Para detonar um plano de eliminação da ameaça de um Brasil soberano, basta aos EUA manipularem a opinião pública (a mídia corporativa já está a postos fazendo esse serviço e inteiramente sob as ordens de lá) e estimular um Congresso cuja maioria é formada por extremistas de direita com comportamento delinquente e mercenários do Centrão. Um aceno dos EUA para essa gente é a linguiça procurando o cachorro.

Quem defenderá o governo Lula?

Lula tem acertos, mas também comete erros. Seu governo não tem condições de ser o governo dos sonhos da esquerda socialista, não é bem-visto pelos caçadores da “terceira via” e está pouco antenado às múltiplas transições de linguagem e posturas advindas de temáticas específicas e pautas identitárias. Como velho sindicalista do mundo operário, não tem as manhas discursivas da militância mais jovem, não foi criado no movimento estudantil universitário e nem tem na cabeça as pautas de acadêmicos pós-modernos.

Além disso, apesar de estar com o discurso mais à esquerda do que em seus governos anteriores, a composição do governo e a configuração do Legislativo Nacional não lhe permitem ir muito longe. Isso torna o seu governo criticável à direita e à esquerda.

É fato que nenhum governo está imune às críticas. Porém, há um fator que deve chamar à responsabilidade toda a esquerda, de todos os “graus de radicalidade” e de todas as pautas. Devemos entender que estamos também em uma disputa maior, tanto interna como externamente. A luta política não se resume à correção de discursos ou a melhor intenção econômica. Não podemos ficar neutros e imparciais, comportando-nos como meros espectadores nas batalhas do governo contra o Império estadunidense e na sua disposição (até agora verbal) de enfrentar o mercado financeiro, mas nos posicionar com dureza e manifestar nossa crítica com veemência apenas nos deslizes verbais de Lula ou nos limites do anunciado arcabouço fiscal.

Com todos os limites que possa apresentar, o governo Lula 3 é um enorme avanço não só na saída do esgoto político do governo anterior, mas nas pautas pelas quais os movimentos sociais lutam há décadas e séculos. Não podemos deixar de defender esses avanços e disputar a opinião pública para o lado positivo do governo, principalmente no momento de ataques das forças imperiais e do mercado, a menos que tenhamos uma alternativa real que não sejam os reacionários bolsonaristas. Não dá apenas para fazer estardalhaço nas redes sociais e dizer-se decepcionado com o governo caso Lula venha eventualmente a usar o termo “índio”, sem reconhecer tudo o que o governo está fazendo em favor dos povos originários.

O governo terá inimigos demais e sabemos que sua derrubada não significará avanços para os temas caros à esquerda, muito menos para as pautas identitárias. Mas, pior ainda é o sofrimento do povo mais pobre e abandonado, que acaba sendo a principal vítima de retrocessos políticos. Se tudo se resumisse à disputa discursiva em uma assembleia de professores universitários ou a mensagens no WhatsApp do grupo de esquerda, nenhuma responsabilidade maior nos caberia. Mas quando se fala de comida, saúde, vacina, educação, emprego etc. precisamos pensar um pouco mais sobre os fundamentos e objetivos de nossa militância.

Não precisamos ser acríticos e aceitar tudo do governo Lula. É possível e necessário criticar o que está errado e, mais do que nos primeiros governos petistas, Lula 3 deve ser foco de pressões populares e de movimentos organizados para fazer a balança da frente ampla pender mais para o povo. É para isso que os movimentos existem, para pressionar políticas públicas a seu favor e não para paparicar governo algum.

Mas devemos ter o cuidado de também defendê-lo na guerra informacional e na formação da opinião pública naquilo que ele traz de avanços. Não é hora de colocar como prioridade o “lacre” em redes sociais ou a performance discursiva esquerdista em público a cada deslize de Lula ou com relação às medidas do governo que flertam com o neoliberalismo. Podemos, sabemos e devemos fazer essa crítica de forma mais madura, sem dar reforço às fake news ou às críticas irresponsáveis da mídia corporativa.

O plano estadunidense é de ter uma direita moderna e comportada no poder, aberta a todas as pautas identitárias e ao discurso ecológico moralista, mas sem disposição para mudar as coisas na economia nacional e na geopolítica global, como são os democratas estadunidenses. Alguns chamam isso de esquerda liberal (e tem gente que se acha de esquerda radical pensando que isso basta…). Esse plano pode não ser concretizado com Lula, desde que ele continue dando mostras de querer enfrentar o mercado financeiro e de agir com soberania na política internacional. Aí, o plano B é Alckimin e uma continuidade tranquila em 2026. Mas esse plano, que já falhou uma vez, pode falhar outra vez. Não teremos um outro Lula lá na frente para salvar a todos de novo.

Ao pensar em seu posicionamento público sobre o governo, pese bem as coisas. Não é mais a direita liberal que nos ameaça, mas a cadela do fascismo, solta, sem vacina e sempre no cio.

*Filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).

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