Povos originários de Mato Grosso cobraram respeito a direitos e territórios no 1º Acampamento Terra Livre do estado

Primeira edição estadual da tradicional mobilização indígena reuniu lideranças de 26 povos entre os dias 10 e 13 de abril, em Cuiabá (MT)

POR GILBERTO VIEIRA DOS SANTOS, COORDENADOR DO CIMI REGIONAL MATO GROSSO, E TIAGO MIOTTO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

“Hoje é um marco importante na história de Mato Grosso”. Assim deu início a sua fala, copresidindo a audiência pública, Eliane Xunakalo, do povo Kurâ-Bakairi, presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). Esta audiência, realizada fora das dependências da Assembleia Legislativa, no dia 13 de abril, foi convocada e presidida pelo deputado estadual Lúdio Cabral (PT), tendo como tema: Direitos dos Povos Originários: saúde, educação, sustentabilidade e uso da terra nos biomas Cerrado, Pantanal e Amazônia, encerrando os quatro dias do Primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) Regional de Mato Grosso.

Durante as falas da mesa, composta também pelo deputado estadual Valdir Barranco (PT), Renan Sotto Mayor, da Defensoria Pública da União (DPU), Ricardo Pael, do Ministério Público Federal (MPF), Filadelfo Umutina, do Conselho Estadual de Educação Indígena (CEEI), representante do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso, entre outros, ressaltou-se a importância da demarcação e proteção dos territórios indígenas, rechaçou-se as invasões e explorações ilegais, reafirmando ainda o papel do poder executivo estadual na efetivação de outros direitos, como educação e saúde.

De fato, foi um marco importante a realização deste 1º ATL em Mato Grosso, organizado pela Fepoimt, que contou com a participação de 26 povos do estado e organizações aliadas, somando em torno de 290 pessoas que acamparam nas proximidades do Monumento Ulysses Guimarães, enfrentando dias de chuva, o calor próprio da cidade de Cuiabá e as ações discriminatórias de algumas pessoas que passaram pela região do Centro Político Administrativo (CPA), onde o acampamento se instalou.

Durante a audiência, em uma breve, mas relevante passagem, o cacique Raoni Metuktire foi acolhido e ovacionado pelos presentes, reafirmando sua grande importância não só enquanto liderança histórica, mas também pela valorização daquele espaço, construído por muitos jovens, inclusive por seus netos. Raoni voltou à tarde para uma fala aos seus parentes, que o aguardavam ansiosos. Em sua fala, destacou a necessidade da defesa dos territórios e dos direitos dos povos sobre esses, onde já viviam antes dos não indígenas chegarem.

Sobre os projetos que ameaçam as comunidades e territórios, afirmou que “não vamos concordar com a construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) em terra indígena. Não vou concordar com o trabalho dos garimpeiros e madeireiros em terra indígena. O desmatamento é problema. A floresta ameniza a temperatura para a gente sobreviver, se derrubar tudo, pode haver problemas maiores, pode ter mais inundação e problemas ambientais. Nós vamos ter problema se continuar assim”.

Raoni participou também da reunião entre lideranças da Fepoimt e governo estadual, ocasião em que foram apresentadas as demandas dos povos.

Segundo o documento final do 1º ATL MT, os objetivos principais da mobilização foram: “promover e unir as forças indígenas, compartilhar os debates sobre as demandas dos povos originários nos seus territórios, promover o diálogo com as instâncias do governo estadual e com parlamentares sobre os empreendimentos que nos impactam, sobre a exclusão dos direitos adquiridos”.

Destacou-se a necessidade da consulta prévia, livre e informada, em consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) frente às propostas de construção de hidrelétricas, estradas e outros empreendimentos que afetam as terras e povos indígenas no estado.

O ATL teve sua abertura, no dia 10 de abril, com a realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, ocasião em que o secretário de estado de Educação atendia a convocação feita pelos deputados para tratar do tema da Educação Escolar Indígena.

Entre as cobranças feitas, a de que o governo estadual assine o convênio para a abertura de mais uma turma da Faculdade Intercultural, da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) – já anunciada em 2022, mas que segue sem atendimento. As lideranças se revezaram no púlpito, cobrando do secretário a garantia da plena participação dos povos originários nas decisões que lhes afetem.

Lembraram da necessidade de que os materiais didáticos sejam adequados a cada realidade, além de reafirmarem que cada povo tem, e nisso devem ser respeitadas, dinâmicas e pedagogias próprias; fatos que não vêm sendo considerados pela Seduc na implementação da política de educação, inclusive com a ameaça da instalação de ponto eletrônico nas escolas das aldeias, o que foi rechaçado por diversas lideranças.

Em outro momento no ATL, um alerta foi trazido pelo povo Rikbaktsa, que denunciou a presença de empreendimento minerário em seu território e lembrou que as ações para desarticular a exploração por garimpeiros ilegais na TI Yanomami (RR) têm provocado um avanço destes invasores sobre territórios indígenas em Mato Grosso.

Os Rikbaktsa também denunciaram, durante o acampamento, as manobras de empresas que vêm buscando implementar usinas hidrelétricas (UHEs), como a UHE Castanheira, desrespeitando ou burlando os processos de consulta previstos pela legislação.

Em documento protocolado na Secretaria Estadual de Meio Ambiente, os Rikbaktsa pedem o arquivamento do processo de licenciamento. Questionam que “o Estudo de Componente Indígena considerou a usina inviável por conta dos impactos negativos aos nossos povos e territórios. Por que o licenciamento não foi arquivado com tantos erros?”

A mesma denúncia foi apresentada por lideranças do povo A’uwê-Xavante, no caso das PCHs Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes, cujo empreendedor está realizando reuniões nas aldeias e considerando-as como consulta prévia. Este método, desrespeitoso dos processos de consulta próprios de cada povo, afronta a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT, a qual determina que a consulta deve se dar de forma prévia, livre e informada. Infelizmente, outros empreendimentos hidrelétricos, estradas e ferrovias, voltados mormente ao benefício de um setor econômico do estado, reverberam a mesma prática.

Realizado duas semanas antes do 19º Acampamento Terra Livre nacional, que reúne mais de cinco mil indígenas na capital federal entre os dias 24 e 28 de abril, o ATL Regional em Mato Grosso antecipou muitas das pautas que mobilizam os povos originários em Brasília.

Entre elas, um dos temas discutidos foi o julgamento do caso de repercussão geral sobre a demarcação de terras indígenas, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. O processo, em análise pelo  Supremo Tribunal Federal (STF), deve definir o futuro dos povos e de seus direitos territoriais.

Durante os debates no 1º ATL MT, diversas lideranças indígenas apontaram a necessidade de que o STF reafirme o direito originário dos povos sobre seus territórios e rechaçaram a tese do marco temporal.

A realização desta mobilização é colheita e semeadura, 49 anos após a primeira assembleia e 23 anos após a Marcha e Conferência Indígena, que se realizou na Bahia e contou com expressiva participação de povos de Mato Grosso

Bebendo na fonte: 49 anos

Em abril de 1974, em pleno “milagre brasileiro”, anos de chumbo da ditadura militar, duas dezenas de indígenas se reuniram embaixo de algumas mangueiras, em Diamantino (MT). Era abril. Uma comemoração diferente. Fato que viria marcar profundamente a luta dos povos indígenas no Brasil. Se lançavam as sementes de um novo movimento indígena no país. Nos dez anos seguintes, foram mais 50 Assembleias Indígenas em todo o país. (HECK, 2014).

Ver os povos originários de Mato Grosso reunidos em Cuiabá, nos remeteu a um princípio: as primeiras assembleias indígenas. No livro “O Movimento Indígena no Brasil”, organizado por Egon Heck e Clovis Antonio Brighenti, lemos o seguinte trecho:

“A primeira assembleia ocorreu de 17 a 19 de abril de 1974, em Diamantino (MT). Apesar dos parcos registros, essa assembleia é um marco do movimento indígena contemporâneo no Brasil. Uma pequena nota publicada no Boletim do Cimi afirmava que os indígenas também tinham o direito de se reunir.”

É justamente na esteira deste processo histórico que representou a realização do primeiro ATL; em um contexto novo, fora da ditadura, iluminado pelos direitos conquistados em 1988 – aliás, resultado deste processo de assembleias e da articulação do movimento indígena –, sem o peso da tutela que impunha limites até ao deslocamento das lideranças e com um número incomparável aos primeiros 20 participantes.

Parafraseando o teólogo Paulo Suess, a realização desta mobilização é colheita e semeadura, 49 anos após a primeira assembleia e 23 anos após a Marcha e Conferência Indígena, que se realizou na Bahia e contou com expressiva participação de povos de Mato Grosso.

Colheita, pois a juventude que nestes tempos assume com firmeza a luta por direitos, bebe na fonte fecunda que segue entre nós, representada na pessoa de Raoni, mas também em tantos e tantas que se mantiveram fiéis às lutas e coerentes na defesa dos povos; semeadura, pois na mirada para o futuro, seja nas crianças que corriam pelo acampamento ou embaladas ao colo de suas mães, nas falas livres e empolgadas de jovens lideranças, na disposição em construir espaços coletivos, vislumbra-se a resiliência do sempre renovado movimento indígena.

Liderança Mebengokrê durante o 1º Acampamento Terra Livre de Mato Grosso. Foto: Gilberto Vieira/Cimi

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