A luta contra a tese anti-indígena esteve entre as principais pautas do acampamento; povos pedem ao STF que conclua o julgamento, previsto para ser retomado em junho deste ano
O direito mais fundamental dos povos indígenas, o direito à terra, é garantido pela Constituição Federal de 1988. No entanto, recentemente, este direito passou a ser duramente atacado e corre o risco de sofrer um duro retrocesso. É o que ruralistas e outros setores econômicos tentam fazer por meio da tese do marco temporal, sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF).
Desde dezembro de 2016, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina – tramita na Suprema Corte. Um pouco mais de dois anos após o protocolo do processo, no dia 22 de fevereiro de 2019, o STF, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral do caso. Ou seja, a decisão tomada neste julgamento terá consequência para todos os povos indígenas do país.
Em 2021, Brasília foi palco de um momento histórico: seis mil indígenas acompanhavam, na capital federal, o começo do julgamento no STF. A maior mobilização pós Constituinte só não esperava que o processo seria interrompido por mais de um ano. Em setembro daquele mesmo ano, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista – e, desde então, o julgamento está paralisado. Agora a previsão, segundo Rosa Weber, ministra e presidenta do STF, é de que o caso volte para a discussão no próximo dia 7 de junho.
Marco temporal no ATL 2023
Em meio à esperança e, ao mesmo tempo, à angústia, indígenas e indigenistas retomaram o assunto na 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que ocorreu entre 24 e 28 de abril deste ano. No penúltimo dia do acampamento, foi realizada a plenária “O julgamento do marco temporal e suas implicações nos direitos dos povos indígenas”. O momento contou com a participação de lideranças indígenas, advogados e juristas apoiadores da causa.
No palco da tenda principal do evento, Tucum Xokleng, cacique da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãnõ (SC) – TI que é centro do caso de repercussão geral – compartilhou com o público os desafios, e até assédios, vividos pelo povo Xokleng diante da morosidade do julgamento.
“Nos últimos anos, a gente está quase todo mês em Brasília lutando pelos nossos parentes. O governo do nosso estado [Santa Catarina] está tentando negociar com a gente. Nos ofereceram uma proposta para pegar uma terra em outro lugar. A ideia deles [estado de Santa Catarina] era que o julgamento fosse suspendido. Mas nós não estamos lutando apenas pelo povo Xokleng, estamos lutando pelos parentes do país inteiro, e por isso não aceitamos”, explicou.
“Mas nós não estamos lutando apenas pelo povo Xokleng, estamos lutando pelos parentes do país inteiro”
Na última manhã do Acampamento, o presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, reforçou seu compromisso com a demarcação de terras indígenas no Brasil.
“Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos”, garantiu o presidente ao público, composto por indígenas, servidores e apoiadores. “Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”.
“Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos”
Apesar do compromisso assumido e reafirmado pelo mandatário, o cacique-geral do povo Xokleng denunciou, na plenária do dia 27, que integrantes da Advocacia-Geral da União (AGU) têm atuado numa linha oposta à do próprio governo.
“Dentro do governo há gente que é contra os povos indígenas. Tivemos uma reunião em março [deste ano] na AGU, e dois procuradores fizeram uma proposta para negociar a terra, fizeram uma mesa de conciliação para receber indenização da nossa terra. Mas eu disse ‘eu não quero dinheiro, doutor. Eu quero minha terra, a terra do meu povo’. Então hoje [27 de fevereiro de 2023] voltamos à AGU para pedir a revogação do Parecer 001 [2017]. Estamos na luta contra o marco temporal. Estamos lutando pelo povo do Brasil inteiro”, concluiu cacique Tucum.
“Dentro do governo há gente que é contra os povos indígenas”
No mesmo dia, além da revogação do Parecer 001/2017, publicado durante o governo de Michel Temer e atualmente suspenso pelo STF, os Xokleng cobraram da AGU que reverta a posição do órgão no caso de repercussão geral na Suprema Corte.
Sob o governo de Jair Bolsonaro, a AGU posicionou-se a favor da tese do marco temporal – e, portanto, contra os Xokleng e os direitos dos povos originários. A posição do órgão federal entrou em contradição, inclusive, com a manifestação inicial da Funai no processo, que recorreu da ação possessória contra os Xokleng.
Apesar da mudança de governo, a AGU ainda não reformulou sua posição oficial no âmbito do julgamento – e foi cobrada pelos Xokleng, em reunião, para que faça isso antes que o julgamento, previsto para retornar no dia 7 de junho, seja retomado.
Ainda durante a plenária do dia 27, Jocemar Kaingang, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas na Região Sul (ArpinSul), lembrou que a tese do marco temporal foi construída na contramão da Constituição Federal de 1988.
“Nós, juristas indígenas, consideramos essa tese [marco temporal] esdrúxula. Uma tese que tenta legalizar a ilegalidade. Ou seja, tornar legal o que, segundo a Constituição, é inconstitucional. Os povos indígenas sempre tiveram o direito à terra, que é o que diz a tese do indigenato. Não tem como deixarmos vingar o marco temporal, não tem como deixar que seja aprovada, porque seria o fim das demarcações de terras indígenas”, clama Jocemar.
“Não tem como deixarmos vingar o marco temporal, porque seria o fim das demarcações de terras indígenas”
A luta não pode parar
Na ocasião, Deborah Duprat, jurista e ex-subprocuradora geral da República, enalteceu a luta dos povos indígenas e reforçou a importância de manter o movimento vivo até a data prevista da retomada do julgamento pela Suprema Corte.
“Esse julgamento não está seguro, digo isso com muita tristeza, porque eu queria pensar que o STF tivesse incorporado essa luta e a potência do movimento indígenas. Mas eu não tenho certeza disso. Para que a gente tenha um resultado positivo, os ministérios, como o Ministério dos Povos Indígenas, por meio de Sônia Guajajara, e a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], presidida por Joenia, precisam marcar audiências com os ministros [do STF] para mostrar a real importância do tema. Não podemos deixar esse julgamento correr solto. Quem puder, fique em Brasília até lá”, afirmou Deborah.
“Esse julgamento não está seguro, digo isso com muita tristeza, porque eu queria pensar que o STF tivesse incorporado essa luta e a potência do movimento indígenas”
A jurista enfatizou também o quanto a resistência dos povos foi essencial ao longo dos últimos anos.
“É importante lembrar como a luta indígena começou a neutralizar, e muito, a tese do marco temporal. Inclusive no próprio Supremo Tribunal Federal”, afirmou Duprat, referindo-se aos casos das TIs Limão Verde, dos Terena, e Guyraroka, dos Guarani Kaiowá – ambas no Mato Grosso do Sul.
Em ambos os casos, as demarcações foram anuladas de forma irregular pela Segunda Turma do STF, em 2014, com base na tese do marco temporal. Apesar de ainda não terem sido revertidas definitivamente, os povos indígenas conseguiram obter vitórias contra ambas as decisões na Suprema Corte.
“Além disso, o movimento conseguiu com que o Alto Comissário da ONU [Organizações das Nações Unidas] mandasse um parecer contra o Projeto de Lei [PL 490/2007] para a Câmara Federal”.
Após a plenária, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) fez um chamado para o acampamento contra o marco temporal, novamente em Brasília. A data está marcada, inicialmente, para os dias 5 a 9 de junho.
O que é o marco temporal
O marco temporal é uma tese que tem como objetivo inviabilizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras originárias, a tese diz que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
De acordo com a avaliação de indigenistas, lideranças indígenas, juristas apoiadores da causa e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese considerada perversa, porque legaliza e legitima as violências a que os povos indígenas foram submetidos até a promulgação da Constituição Federal de 1988, especialmente durante o período da Ditadura Militar – momento em que ocorreu duras violências contra os indígenas e o esbulho de seus territórios.
Para Jorge Tabajara, advogado e cacique do povo Tabajara de Poranga (CE), a interpretação feita por advogados ligados ao agronegócio e aliados é “pequena e forçada”.
“Eles fazem uma interpretação forçada do artigo 231, da Constituição Federal de 1988, quando pegam o verbo ‘ocupar’ para dizer que, a partir dele, só teríamos direito às terras se estivéssemos nela ou reivindicando no dia 5 de outubro de 1988. Se não estávamos em nossos territórios, onde estávamos? Se não estávamos lá, para onde fomos? É uma tese absurda, mas queremos acreditar que o STF, como guardião da Constituição, cumpra com seu dever de defender a Constituição em sua forma original”.
“Se não estávamos em nossos territórios, onde estávamos? Se não estávamos lá, para onde fomos?”
É preciso ressaltar, ainda, que a tese do marco temporal ignora também o fato de que, até 1988, os povos originários eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos.
Marco temporal em outras esferas
A tese do marco temporal não aparece, exclusivamente, no Poder Judiciário. Ela se faz presente também nos Poderes Executivo e Legislativo. Na Câmara Federal tramita o PL 490/2007, originalmente proposto pelo deputado Homero Pereira – parlamentar já falecido.
Na prática, com a redação dada pelo relator Arthur Maia (União Brasil-BA), o projeto inviabiliza a demarcação dos territórios de todo o país, por meio da aplicação do marco temporal, e abre as terras já demarcadas para diversos empreendimentos econômicos – como agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas.
A proposição foi aprovada, em junho de 2021, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) – por 41 votos a 20 – e agora aguarda ser apreciada pelo plenário da Câmara Federal.
Já no Poder Executivo, a tese passou a ser aplicada por meio do Parecer 001/2017 da AGU, suspenso. A medida determina que toda a administração pública federal adote uma série de restrições à demarcação de terras indígenas. Entre elas, estão as condicionantes do caso da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, de 2009, e a própria tese do marco temporal.
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Indígena do povo Karajá carrega cartaz com pedido de demarcação durante marcha do ATL 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi