Nas ruínas de Velho Airão, memórias do Amazonas. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Quem nos dá notícias da cidade fantasma de Velho Airão, berço da colonização portuguesa no Amazonas? Se dependesse do atual governador Wilson Lima, o primeiro povoado fundado às margens do rio Negro, no séc. XVII, distante 200 km de Manaus, abrigaria hoje uma adega para vender vinhos e ventiladores aos curiosos turistas que por lá chegarem. Ele está vagando e andando para a história da região. 

As ruínas de casarões e sobrados abandonados cobertos de telhas trazidas de Lisboa, a capela colonial cujo teto desabou há dez anos, o cemitério com suas lápides e um armazém invadidos pela floresta, os cacos de porcelana francesa e os petróglifos, testemunhas silenciosas da história, são tão importantes para a Amazônia quanto Porto Seguro para o Brasil.

Por isso, um grupo de historiadores, coordenado por Victor Leonardi, da UnB e por Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, da Universidade do Amazonas, depois de visitar o lugar m agosto de 1994, pediu seu tombamento ao Ministério da Cultura então sob a direção de Francisco Weffort, contado com o apoio do INPA – Instituto de Pesquisas da Amazônia e do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ.

Viagem pelo tempo

 

A história deste lugar abandonado, usado pela Marinha do Brasil como alvo para treino de tiros de seus navios, foi resumida na coluna Taquiprati, em 1995, para chamar a atenção de Francisco Weffort, de passagem por Manaus. Mas Velho Airão só foi tombado em 2005 no governo Lula, abandonado depois por Michel Temer, que extinguiu o Ministério da Cultura, o que foi confirmado por seu sucessor, o Coiso.

Não sei se Margareth Menezes, ministra da Cultura, conhece a história dessa cidade documentada por técnicos do IPHAN a partir de 2010, inclusive com fotos. Fundada em 1669 com o nome de Aldeia do Jaú por Pedro da Costa Favella, algoz dos indígenas, o povoado transladou-se, em 1694, para o local hoje deserto. O motivo desta primeira mudança é relatado por Alexandre Rodrigues Ferreira em sua Viagem Filosófica ao Rio Negro no séc. XVIII:

– Contam alguns índios antigos, que era tão grande a perseguição dos morcegos e tanto o estrago que eles faziam nas crianças, que para evitarem esse e alguns outros inconvenientes se viram obrigados a mudarem-se d´aquelle para este sitio”.

Os viajantes dos séculos XVII e XVIII, entre eles o vigário geral do Rio Negro, José Noronha e o ouvidor da Capitania, Ribeiro Sampaio deixaram relatos sobre a aldeia “uma das mais populosas e nomeadas”, que na época do Marquês de Pombal recebeu o nome de Airão (meu irmão em língua semita). Para lá foram descidos à força indígenas de várias etnias: Tarumã, Juma, Mura, Aroaqui, Manaú e Baré.

Airão se tornou um “depósito de índios” explorados pelo trabalho compulsório na produção de café e na coleta das drogas do sertão: cacau, salsa, breu e madeira, na pesca de pirarucu, do peixe-boi e da tartaruga, assim como na fabricação de redes de algodão.

Formigas de fogo

Mas a população foi dizimada, devido ao brutal sistema de trabalho implantado e às epidemias de sarampo e bexiga. Em 1840, os moradores estavam reduzidos a 440 almas em 50 fogos, segundo Lourenço Amazonas, em seu Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo da Comarca do Alto Amazonas. Foram organizadas, então, tropas armadas para trazerem indígenas de outras áreas.

Cem anos depois, teve um surto de “progresso” durante 2ª Guerra Mundial, mas logo entrou em decadência, ao deixar de ser o centro de coleta e exportação da borracha para os países aliados. Seus moradores abandonaram definitivamente a cidade, desceram o rio e fundaram Novo Airão. O colapso econômico, que motivou a fuga, está registrado na documentação escrita. No entanto, documentos orais indicam outras razões: a invasão de formigas.

Os analfabetos da oralidade, para quem “só vale o que está escrito”, falam de “lenda” para desqualificar os relatos orais sobre os ataques das formigas de fogo, dizendo que não existe comprovação. Mas o seu Santino, um marceneiro do bairro de Aparecida, ex-morador de Airão, trazia no corpo as marcas de picadas da tocandira, formiga enorme maior oito vezes do que a saúva. Sua picada dolorosa dura dois dias e provoca alucinações.

“É pior do que ferimento de bala” – dizia seu Santino, que depois ficou surdo. O certo é que os formigueiros tomaram conta da cidade e não houve veneno capaz de exterminá-los. Se a documentação oral for correta, a Mama Pacha usou insetos para repelir a invasão de seu templo pelo bicho homem, como antes havia apelado para os morcegos na defesa do paraíso ecológico.  Velho Airão se tornou uma cidade morta.

A história morre

 

A cidade, hoje em ruínas, com construções tomadas pela floresta, se tornou um ponto de turismo alternativo, sem qualquer medida de política cultural por parte do estado. A iniciativa de zelar pelo patrimônio público é particular. O nipo-brasileiro Shigeru Nakayama, nascido em 1943, em Fukuoka, no Japão, aos 20 anos de idade se mudou de suutsu keesu (maleta) e negoro (tigela laqueada) para a Amazônia e subiu o rio Negro, agora de mala e cuia, até Airão.

Nakayama, que adotou as ruínas do Velho Airão, em 2001, entrevistado por Melina Castro e Lucas Amorelli da BBC Brasil, declarou com um sotaque carregado:

– Meu sonho desde criança era viver na floresta amazônica. Se eu sair daqui a história morre.

Durante vinte anos, o guardião japonês foi o único morador de Velho Airão, lá residia em modesta casa de madeira de três cômodos e chão de terra, alimentando-se do que plantava na roça.  Dormia em uma velha cama de solteiro. Montou pequeno museu com objetos históricos, telhas portuguesas, garrafas holandesas, cerâmica indígena, ossada de animais, visitado por eventuais turistas, de quem não cobra um centavo, aceitando doações voluntárias.

O passeio de Novo Airão até às ruínas dura cerca de três horas. O barqueiro cobra R$1.500,00 pela viagem, um valor dividido entre os participantes. Se houver cinco pessoas, sai R$300,00 por cabeça.

Já com quase 80 anos de idade, Nakayama “se aposentou” e deixou Airão sob a guarda de uma família, que não cuida das trilhas e “demonstra pouco conhecimento da história local, além de cobrar uma taxa de vinte reais por visitação”, segundo um turista de São Paulo, que lá esteve em novembro de 2021.

A visita às ruínas é como se o turista estivesse entrando em um cenário de filme fantástico. Aliás, Velho Airão está implorando por um bom documentário de Aurélio Michilles, por um poema de Luiz Pucú e pela atenção do Ministério da Cultura, que não pode permitir que lá se instale adega de vinhos para vender ventiladores e isso apenas é uma forma de falar sobre o descaso do governo estadual.

Confesso e é dificil esconder que torci pelos morcegos e depois pelas formigas, que nos legaram essas ruínas históricas, hoje objeto de peregrinação. Não perguntei a ele, mas aposto que seu Santino também torceu, pelo menos neste caso, pela derrota do bicho homem e pela vitória da floresta.

Referências:

1.Japonês eremita toma conta de cidade abandonada na selva amazônica. Melina Castro e Lucas Amorelli. De Airão Velho (AM) para a BBC Brasil. Dezembro 2015.  https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151216_airao_nakayama_hb#:~:text=A%20cidade%20de%20Air%C3%A3o%20Velho,se%20na%20partida%20dos%20moradores

2.Jornal do Comércio – Amazonas. https://www.jcam.com.br/noticias/novo-airao-aposta-no-velho-airao/

 

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