História recente do país mostra: a ultradireita capitaliza sujeitos reativos enquanto esquerda aposta na conciliação. Arrogância de insistir em pautas justas, mas sem conexão com as maiorias, pode frustrar qualquer rebelião popular
Vladimir Safatle, em entrevista à Cult
Na votação para formar uma nova assembleia constituinte no Chile, ocorrida no último domingo (7/5), a direita obteve 34 dos 51 assentos, garantindo maioria no processo para redigir uma nova Carta Magna.
O Partido Republicano, do ultra-direitista José Antonio Kast, derrotado por Gabriel Boric na eleição presidencial de 2021, garantiu 23 assentos e a Chile Seguro, coalizão de partidos de centro-direita e direita, obteve 11.
Como explica o filósofo Vladimir Safatle, isso significa que o processo de transformação que o país vivia “simplesmente foi perdido e definitivamente enterrado”, pois os vitoriosos na nova assembleia foram contrários, desde o início, a modificar a Constituição. “Há o paradoxo de um partido contrário a reescrever a Constituição liderar o processo de escrita constitucional”, afirma.
Após a vitória da esquerda chilena com Boric, praticamente 80% da população se mostrou favorável a uma nova Carta Magna, que substituiria aquela elaborada durante a ditadura de Pinochet. No entanto, o texto formulado pela Constituinte Chilena foi rejeitado por 62% da população em plebiscito ocorrido em 4 de setembro de 2022.
Para Safatle, o partido governista chileno não soube lidar com as inseguranças e medos gerados pela situação de mudança social. “A esquerda tem um certo tipo de arrogância que lhe é própria de achar que, como estamos diante das proposições mais corretas em relação à sociedade, todas as reações a ela são deletérias”, assevera o filósofo.
A partir do caso chileno, Vladimir Safatle comenta a situação da extrema direita no mundo, o enraizamento histórico do fascismo na América Latina, o fim das democracias liberais e provoca: “é preciso acabar com a ilusão de que ela [a esquerda] pode ser a gestora de um grande processo conciliatório nacional”.
Quatro anos após os protestos que incendiaram o Chile e culminaram, no fim de 2021, na eleição de um presidente sustentado por uma coalizão de esquerda, como explicar o refluxo da direita e da extrema direita no cenário institucional chileno?
Eu diria que não há uma razão única para um processo tão complexo, e sim um sistema multifatorial de razões. Mas há algumas coisas que podemos levantar e que são relevantes. A primeira é que a esquerda, talvez, não leve muito em conta que todo processo insurrecional imediatamente produz aquilo que poderíamos chamar de “sujeitos reativos”. É um processo no qual é preciso lidar com uma série de reações que não vêm só dos setores, digamos, regressivos da sociedade, mas também são expressões de certas desconfianças e de certas inseguranças que se fazem muito naturalmente presentes em situações de mudança social.
Ou seja, esse processo que o Chile tentou implementar procurava realizar algumas mudanças que iam desde a estrutura do Estado, a definição do que é o Estado, à determinação das famílias, dos modelos de acolhimento social, então são modificações que podem gerar, para certos setores da sociedade, uma insegurança de que talvez a esquerda também esteja produzindo novas formas de hierarquia. A esquerda não entende que nos momentos significativos de transformação é necessário também saber fornecer sistemas de garantias para a população: garantias de que essas novas configurações de hierarquias não serão realizadas. Mas existem várias outras questões, como uma articulação entre o processo constitucional e os impasses do governo de coalizão liderado pelo Boric, um governo que começou complicado.
Na série de matérias que escrevi para a Cult, os leitores e leitoras vão se lembrar de uma em que eu dava voz para vários atores da coalizão do Boric, que se colocaram muito frontalmente contra os modelos de conciliação que a coalizão tentava realizar, como no caso do pessoal do Partido Comunista, de Daniel Jadue que foi entrevistado. Esses setores criticavam a guinada ao centro que o governo Boric fez desde seu primeiro dia de governo, vide seu ministro da economia, no máximo um socioliberal
E há, de fato, uma extrema direita que é forte em todo o continente, não apenas no Chile, como na Argentina, Brasil e Paraguai. Lembremos que o governo Boric ganhou a eleição, mas seu oponente, José Antonio Kast, à frente agora do processo constitucional, perdeu com 45% dos votos, ou seja, ele teve quase metade dos votos. Isso mostra algo muito sério para todos, pois o processo constitucional chileno foi um fracasso histórico, e é necessário nomear as coisas tal como elas são, sem apagamentos. O fracasso demonstra que as dinâmicas com as quais a esquerda precisará lidar para fazer suas transformações sociais foram menosprezadas no sentido mais forte do termo.
As direitas – tradicional e extrema – obtiveram assentos suficientes para propor dispositivos constitucionais sem veto da esquerda. Que direitos fundamentais, hoje garantidos, estão em jogo nessa Constituinte?
O Partido Republicano, o que mais ganhou assentos na nova constituinte, 23 sobre 50, colocou-se desde o início contra a modificação constitucional, ou seja, há o paradoxo de um partido contrário a reescrever a Constituição que vai liderar o processo de escrita constitucional. Então é muito difícil saber o que efetivamente vai acontecer, mas é provável que não vá acontecer nada, no sentido de que eles vão tentar preservar ao máximo a Constituição existente, modificando uma ou outra coisa muito pontual. Insisto nesse processo, pois se trata de um grande fracasso histórico.
O Chile tinha sido o primeiro país, dentro de uma sequência insurrecional que atravessa o mundo desde a Primavera Árabe, a fazer uma passagem da insurreição à instituição, ou seja, conseguiu sair de uma dinâmica de luta social na rua para impor uma exigência de transformação institucional da sociedade pela via de um processo constitucional. Mas esse processo simplesmente foi perdido e definitivamente enterrado, pois o que deve sair dele, volto a insistir, é, na melhor das hipóteses, a preservação da Constituição e de seus pontos fundamentais. Na pior, uma regressão ainda mais autoritária, pois, afinal de contas, um partido de extrema direita que tem ainda toda uma quantidade de constituintes de direita com os quais pode negociar mostra, de certa forma, que está em uma situação de completa liberdade.
O Chile tem hoje uma Constituição herdada da ditadura de Pinochet, aprovada em plebiscito em 1980. Em 2020, os chilenos votaram em massa por uma nova constituinte que fosse capaz de superar o paradigma do “Estado subsidiário”, que marca o texto hoje em vigor. Neste momento, é possível vislumbrar uma nova Carta ainda mais apartada do Estado social, aprofundando o neoliberalismo no Chile?
Retomando a questão anterior, diria que sim. A ideia de um Estado solidário, que substituiria esse Estado subsidiário, aparece cada vez mais distante. Mas preciso insistir em um ponto importante: quem retomar os artigos e entrevistas que eu fiz para a revista no ano passado, verá que existiam vários setores, sindicais, das lutas sociais, que tinham muita desconfiança em relação ao tipo de hegemonia que estava sendo criada no interior do processo constitucional, que não levava em conta, entre outras coisas, a centralidade das questões trabalhistas nesse debate e a necessidade de colocá-las à frente de todo debate constitucional.
Para exemplificar o que estou a dizer: um dos elementos que foi mais questionado dentro do processo constitucional foi a transformação do Estado nacional em Estado plurinacional. Sou a favor disso, fui candidato no ano passado, fiz campanha e esse foi um tópico da campanha. Mas é fato que uma transformação como essa está longe de ser evidente e clara para toda a população, e longe de não produzir uma série de inseguranças em relação a qual seria a relação dos cidadãos com o território a partir de então.
É claro, portanto, que para fazer algo como isso, em uma sociedade como a chilena, que tem 12% de população indígena, muito diferente da sociedade boliviana com 60% de população indígena, é preciso de um desenvolvimento etapista do processo, fazer uma espécie de ensaio em um território específico para que se possa mostrar paulatinamente à população o que efetivamente significa, quais são as condições de implementação, para que se saiba lidar com esse sistema de insegurança.
Nada disso foi feito. Ao contrário, a esquerda tem um certo tipo de arrogância que lhe é própria de achar que, como estamos diante das proposições mais corretas em relação à sociedade, todas as reações a ela são deletérias. E agora teremos uma regressão ainda maior.
O que é hoje a direita chilena? Que semelhanças ou diferenças mantém em relação à direita no Brasil?
A direita chilena, hoje, passa por um processo muito parecido com a direita brasileira. Diria que a política mundial foi para os extremos: a tendência é que o centro não exista mais, ou seja, cada vez mais é uma política colonizada pelos extremos. Nesse processo, a direita saiu na frente e radicalizou suas posições antes da esquerda.
No caso do Chile, é evidente que a extrema direita virou a primeira força política do país, é a força da direita que vai puxar toda a direita para a sua agenda. Isso aconteceu no Brasil, é o fenômeno do bolsonarismo, que quebrou a direita brasileira, tradicional, oligárquica, do modelo tucanato, e a fez desaparecer. Todo o resto vai se organizando a partir dela como seu centro de gravitação.
É uma tendência, insisto, mundial, que diz respeito à desagregação das forças internas à democracia liberal, ao fim da democracia liberal, da democracia parlamentar, que está se extinguindo por si mesma. Lembraria o que aconteceu na França há um mês, quando Emmanuel Macron impôs uma reforma da previdência por decreto, quebrando o princípio elementar da democracia parlamentar. Ou seja, os verdadeiros coveiros da democracia parlamentar são aqueles que juraram defendê-la.
Dentro desse processo, a direita já fez sua transição, mas a esquerda ainda não e, por isso, torna-se um pouco o partido da ordem, da defesa de uma legalidade que simplesmente não existe mais dessa forma. Então, ela fica cada vez mais em uma situação de reatividade política, enquanto a direita toma a frente do processo.
A Constituinte será guiada pelos votos de quem recusava a mudança constitucional. O que isso significa para o processo?
Diria, simples e claramente, que significa o fim do processo constitucional. Ele fracassou, ou seja, a primeira tentativa de passar de um processo insurrecional para um processo institucional, de institucionalizar uma força insurrecional, do ponto de vista das forças progressistas da sociedade, fracassou. É importante deixar isso claro e meditar, de maneira calma, depurada e analítica sobre as condições das causas desse fracasso.
Que repercussões essa vitória da direita traz à América Latina e que sinais envia às coalizões de esquerda que obtiveram sucessos eleitorais recentes no continente?
A vitória da extrema direita chilena explicita algo que talvez não queiramos ver no Brasil: o fato de que a força eleitoral e popular da extrema direita é um fenômeno de longa duração. Não é algo que vai se resolver com algumas prisões de líderes, com uma ação do judiciário, como se fosse uma espécie de desvio de rota. Não é em absoluto isso.
São processos que estão profundamente enraizados em dinâmicas históricas, na história do nosso continente, na história de nossos países. Vamos pegar o caso brasileiro: o Brasil tem uma história do fascismo que vem desde os anos 1930, com o maior partido fascista fora da Europa, com um milhão e duzentos mil membros na Aliança Integralista Nacional, e essa história não se apaga. A Nova República criou a ilusão de que essa não era uma história presente no nosso horizonte, mas tal ilusão se dissipou. E isso não é apenas um apanágio brasileiro.
A história do Chile é marcada por uma adesão forte às estruturas da extrema direita e do neoliberalismo autoritário, que é inventado no Chile pelo Pinochet. A Argentina tem, agora, um candidato de extrema direita com mais ou menos um terço dos votos, o Milei, e isso mostra claramente que se trata de uma dinâmica continental, de um problema continental.
Nesse horizonte, qual sinal é emitido para a esquerda? Diria que, dentro de um processo de radicalização da política, de determinação da política pelos extremos, não cabe à esquerda fazer outra coisa senão, mais uma vez, ir para o extremo. É preciso acabar com a ilusão de que ela pode ser a gestora de um grande processo conciliatório nacional, ilusão que de certa forma o Boric teve, pois seu governo já começou como um governo de coalizão, seu ministro da economia está longe de ser de esquerda no sentido forte do termo. Isso produziu uma série de questões desde o início, e o resultado está aí, um governo que tem uma política de segurança, de combate às drogas absolutamente medonha sob qualquer perspectiva esclarecida de esquerda.
Tudo isso mostra que os sinais conciliatórios emitidos ao centro e à direita não deram em nada e não vão dar em nada, pois, com o fortalecimento da extrema direita, ela vai se tornando mais sedutora para os setores da sociedade. Penso que precisamos acompanhar bem o que está acontecendo na Colômbia, onde Gustavo Petro tem uma situação parecida, de criar algum tipo de estrutura de aliança e, quando vê que essa estrutura não garante a base parlamentar para as reformas que quer implementar, ele rompe com a aliança, dá uma guinada à esquerda e diz que vai tentar lutar através das ruas. É interessante, pois é um modelo de ação que não foi adotado pela esquerda latino-americana; ele é o primeiro a fazer e precisamos ver até onde vai e qual será seu resultado.
Após a vitória de Gabriel Boric, você escreveu, em artigo para a Cult, que o Chile se tornara “um dos poucos lugares no mundo onde a imaginação política tem espaço institucional para entrar em ação, para pensar outras formas de vida social”. Com a derrota da primeira proposta de texto constitucional – orientado pela expansão de direitos sociais – em setembro do ano passado e a vitória da direita na formação da Constituinte, como você avalia os espaços de ação política no Chile hoje?
Não acho que a afirmação estivesse errada, apenas que isso mostra que o espaço, a efetivação da imaginação social não vai ser feita sem angústia. O fato de se ter uma imaginação social em movimento não significa que você não deva lidar com a angústia social produzida justamente pelas dinâmicas de transformação social.
Saber lidar com isso é fundamental, mas a esquerda não sabe lidar e demonstrou novamente que não tem a menor condição de lidar, a menor ideia de como fazê-lo. Veja, o processo constitucional poderia ser feito de uma forma completamente diferente. Por exemplo, quando se percebe que a sociedade tem dificuldade em discutir certas questões, que podem colocar todo o edifício constitucional em risco, seria muito mais inteligente separar essas questões e trabalhá-las depois, uma por uma. Aprovar primeiro as partes do texto que são mais consensuais para, depois, trabalhar as outras, o que não foi feito.
Por isso insisto: o desenvolvimento de uma imaginação social e política em marcha não significa a ausência de angústia social, para vários setores. Devemos saber como lidar com isso. Há vários setores que têm desconfiança de nosso discurso, do que ele realmente quer realizar e do que é capaz de realizar. Desconfiança de que nossa igualdade vai ser realmente uma igualdade, e não apenas uma consolidação de outras formas de hierarquia. Desconfiança de que nossas demandas parem em questões econômicas e vinculadas ao mundo do trabalho absolutamente centrais, para as quais não temos respostas, que não são colocadas na frente, então é muito importante que a gente saiba lidar com isso daqui para frente.