Preso no guarda roupa, o PT vai emagrecer?

“Memória e angústia fundem-se num branco / cavalo manco numa rua torta” (Luiz Bacellar. Noturno do Bairro dos Tocos. 1963)

por José Ribamar Bessa Freire, em Taqui pra Ti

Se não me falha a memória (ela anda falhando ultimamente), é a primeira ver que revelo este segredo: tudo o que aconteceu ou acontecerá no mundo já teve como palco o antigo Bairro dos Tocos, em Manaus, hoje Bairro de Aparecida. Lá, ao entardecer, as famílias colocavam cadeiras nas calçadas dos becos e narravam histórias, umas de um tempo mítico, outras recentes, todas elas mensageiras de lições de vida e de política.

Exemplo disso foi o episódio vivido, em 1992, por meu sobrinho Rodrigo. Com apenas 6 aninhos, o Pão Molhado – esse é o seu apelido – brincava de esconde-esconde com sua irmã Paula de Tarso, de 4 anos, assim batizada, porque minha irmã Preta era devota do apóstolo Paulo. A coincidência das iniciais do nome da criança com a sigla partidária é mera coincidência? O fato é que o ocorrido no passado está acontecendo, agora em 2023, com o PT.

Esconde-esconde

Há mais de 30 anos, Paulinha viveu um acidente causado indiretamente pelo então presidente Collor de Mello, condenado por outro crime mais recente, nesta quinta (17), pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a 33 anos, dez meses e dez dias de prisão em regime fechado. Bem feito! Collor prejudicou milhões de pessoas, entre elas minha irmã. Só por isso a pena devia ter sido prolongada por mais dez horas, dez minutos e dez segundos de reclusão. Rimava.

Mas voltemos à vaca fria. Foi assim: a Preta guardou uns trocadinhos no banco para comprar um guarda-roupa novo. Sua poupança, porém, foi confiscada pelo Collor. A família permaneceu com o móvel velho, todo escangalhado e esse foi o lugar escolhido por Paulinha para se esconder do irmão. Lá, a prateleira corroída pelo cupim se desprendeu, a menina, gordinha e fofinha, ficou entalada e imprensada pela madeira. Ofegante, sem poder sair, começou a chorar escandalosamente.

Lá da cozinha, a Preta, que preparava o almoço, deu um esporro no filho e berrou, caprichando no “c” de Octávio:

– Rodrigo Octávio Freire de Souza, ajuda tua irmã!

Na sua fala, o Pão Molhado sempre muda o ponto de articulação da consoante “s”, pronunciada não atrás dos dentes, mas com a língua roçando entre os incisivos. Parece que o uso prolongado de chupeta provocou essa flacidez na língua. É o que a fonoaudiologia denomina de “sigmatismo” e o povão chama de “síndrome de Romário”.

Espinafrado pela mãe, Pão Molhado se justificou, dizendo que já havia orientado a irmã encalacrada para ela encolher a barriga, o que lhe permitiria sair daquele sufoco:

– Mãe, eu já “diçe” pra ela: “çe emagreçe”, Paulinha, “çe emagreçe”, mas ela não “çe emagreçeu”… – farfalhou ele romariamente, espalhando cês cedilhados interdentais por todos os lados, aqui registrados como uma liberdade ortográfica.

Se emagrecendo

Eis o que eu queria dizer: o PT está entalado no guarda-roupa do poder. Lula também romariamente já recomendou ao partido para “çe emagreçer”, advertindo que o atual governo não é exclusivamente da legenda pela qual se elegeu, mas de uma coligação com outros partidos. No entanto, a gula oportunista de uns por cargos e o desejo sincero ou não de outros de cultivar a imagem de “revolucionário”, não estão permitindo que o PT encolha a barriga.

Não precisa ser cientista político para observar que não vivemos situação pré-revolucionária, como se as massas estivessem cercando o Palácio de Inverno. Aqui, foram os fascistas que invadiram o Palácio do Planalto. Lula sabe muito bem que o tal mercado financeiro está se lixando para as desigualdades sociais do Brasil, mas propôs uma trégua e se comprometeu com o ajuste fiscal, levando em conta a atual correlação de forças. Não esqueçamos que 300 picaretas dominam o Congresso Nacional.

No entanto, uma ala rebelde do PT resiste ao emagrecimento. São 10 parlamentares liderados por Lindbergh Farias, que em algum momento, segundo o Portal Metrópoles, manifestaram disposição de votar, nesta semana, contra as regras de controle dos gastos públicos do arcabouço fiscal proposto pelo ministro Haddad.

Saber até onde emagrecer não é fácil. Recomendo aos rebeldes a leitura dos Cadernos do Cárcere: Maquiavel, notas sobre o Estado e a Política”.  Lá, Gramsci discute o conceito de correlação de forças, que é sempre um “equilíbrio instável” e problematiza a formação de alianças em momentos de crise, cuja compreensão é vital para as lutas emancipatórias.

Não se trata de propor a desmobilização do MST, dos movimentos sociais, das lutas sindicais, nem de renunciar às pressões legítimas sobre o poder constituído. Ao contrário. Tudo o que fortalece a organização popular, deve ser estimulado. Mas na atual conjuntura é preciso negociar e refletir sobre cada passo dado, respeitando o cessar-fogo.

Pau-não-cessa

A proposta de cessar fogo aconteceu também lá no beco onde nasci, cujo nome mudou, antes de ser celebrado nos versos do nosso poeta maior Luiz Bacellar:

No beco do “Pau-Não-Cessa”,

há muito que o pau cessou

porque se o pau não cessasse

o beco do “Pau-Não-Cessa”

Não teria morador.

É isso aí. Diante dos arroubos de uns e outros só nos resta agir para mudar a atual  correlação de forças  e recomendar, por enquanto, o prudente conselho do Pão Molhado:

 “Çe emagreçe, Lindinho, çe emagrece”.

P.S. – Ih, a memória me falhou sim. Lembrei agorinha que já expus trocentas vezes o Bairro dos Tocos como lugar de memória do que aconteceu e ainda vai acontecer no mundo. Peço desculpas antecipadas, porque essa não será a última vez.

Créditos: Ilustração de Roberto Bessa, o Tuta do bairro de Aparecida.

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