Lições de Florestan para o antirracismo radical

Um dos principais intérpretes do Brasil, o sociólogo viu a emancipação social dos negros, fruto de sua própria luta e coragem, como “pedra de toque da revolução democrática brasileira”. E anteviu: “a solução gradual não levará a nada”

por Ronaldo Tadeu de Souza, em Outras Palavras

Os casos de violência contra negros e negras abundam na sociedade brasileira contemporânea – e esse fenômeno parece ter se intensificado com o governo de Bolsonaro e seu projeto de país. São dos mais variados. Verbais, xingamentos, preconceito e discriminações sutis e veladas, agressões físicas, extermínio pela polícia militar de todos Estados da federação, fome, falta de emprego e morte pela pandemia da Covid-19. E em todos os lugares, nas casas parlamentares, na recepção de edifícios particulares e comerciais, no transporte público, na rua, na praia, no emprego e nas residências da elite. Ainda assim, houve mudanças significativas na situação do negro nos últimos anos. Ascensão e mobilidade social, acesso a profissões destinadas outrora para as elites (medicina, engenharia, arquitetura, moda, ensino superior universitário público, comunicação e psicologia), melhor moradia, aquisição de bens de consumo com certa sofisticação e construção de autoestima (subjetividade orgulhosa de si). Como é possível a convivência desses dois Brasis? Da existência se dois momentos e/ou grupos negros relativamente distintos? Nesse aspecto, novamente a obra e o pensamento social e político de Florestan Fernandes podem nos apresentar algumas flechas retiradas da aljava da sociologia rigorosa e engajada para nos auxiliar a entender esse fenômeno.

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Falar de Florestan, mais uma vez, tratando da questão do negro e da luta contra o racismo nos dias de hoje? O que pode ser dito, ainda, sobre esses problemas não resolvidos, ou “resolvidos” parcialmente para um estreito setor de negros e negras que “ultrapassaram” a barreira e os obstáculos colocados no seu caminho? E vejam, notem, falar do negro, seus problemas, o racismo, tendo a obra florestaniana num contexto de mudanças significativas, e podemos dizer, de grandes mudanças na paisagem dos estudos, das pesquisas, dos novos e das novas pesquisadoras negras e negros nas ciências humanas, com a publicação de uma bibliografia relativamente nova; e em um contexto de 10 anos de políticas de ações afirmativas. Com um vocabulário novo: como lugar de fala, racismo estrutural, representatividade, branquitude, privilégio branco, feminismo negro. (Vocabulário esse que é um paradoxo, ou mesmo contraditório em se tratando da obra do Florestan Fernandes, pois são alheios ao pensamento dele, e ao mesmo tempo, no mesmo movimento interpretativo da compreensão que apresentou ao Brasil, o entendimento dele da sociedade brasileira e da questão do negro, contempla.)

Ora, ainda assim o pensamento, a obra, os escritos de Florestan são um dos mais importantes, completos, coerentes e consistentes entendimentos acerca do Brasil e dos problemas do racismo. Para usarmos uma formulação de Antonio Candido as ciências sociais brasileiras nos seus diversos campos de investigação, dentre eles a compreensão do racismo, giraram em torno do eixo da sociologia e do pensamento de Florestan Fernandes. Tendo essas duas considerações, sobretudo a de Antonio Candido, apresento e/ou argumento a partir de três momentos sobre o aspecto fundamental e imprescindível da interpretação do Florestan sobre a questão do negro e a luta contra o racismo no Brasil. Primeiro, procuro fazer um breve percurso do Florestan enquanto construtor de nossas ciências sociais, intelectual público e estudioso do negro no Brasil; em segundo lugar, trato de um ensaio fundamental dele sobre a compreensão do racismo, a saber, Sociedade Escravista, um texto pouco mobilizado por vezes da sociologia florestaniana; e, terceiro ponto: gloso, comento, algumas respostas que Florestan apresentou já no fim da década de 1980 para a luta contra o racismo, particularmente as contidas no conjunto de textos e intervenções reunidos no Significado do Protesto Negro. (E aqui diálogo, brevemente, com dois conceitos que estruturam, vertebram, a linguagem dos “movimentos negros”, no sentido amplo das lutas antirracistas: são eles os conceitos de racismo estrutural e branquitude.)

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Florestan Fernandes é um clássico do pensamento social brasileiro. E como todo clássico a cada vez que o lemos, relemos, retomamos, averiguamos o que disse, o trazemos para o debate, meditamos com ele sobre a realidade – tem algo a dizer. Seja para relembrarmos de circunstâncias negativas e mesmo as positivas a qual vivemos, seja para apontar novos modos de refletir (e agir) sobre dadas situações. E retomar o percurso dos clássicos é sempre uma variável para entendê-los melhor. O percurso do Florestan Fernandes é algo de extremo louvor, ele foi como disse certa vez Antonio Candido um grande homem. E muito da trajetória biográfica dele corresponde ao seu comprometimento com as ciências sociais, com a educação (ponto que é um capítulo à parte e merece a atenção de todas e todos que estão nessa área), com a luta dos de baixo, os subalternos (em linguagem gramsciana) e especialmente os negros. Florestan deixa de ser filho de uma empregada doméstica, que por vezes não tinha muito para comer, e se torna o maior intelectual brasileiro, professor no Canadá (Universidade de Toronto) e arquiteto da sociologia brasileira. Ele foi um dos grandes intérpretes do Brasil ao lado de pensadores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior e Celso Furtado. Com a diferença de que ele pensa uma ciência social para os de baixo – seu olhar de pesquisador não é o das elites, das oligarquias, como era, por exemplo, o do Gilberto Freyre e sua obra monumental Casa-Grande e Senzala. E assim ele constrói sua obra em vários momentos – mas sempre pensando os problemas brasileiros em conexão com desenvolvimento da luta política e social dos deserdados. Além disso, ele sempre vai pensar, refletir e agir tendo a matéria social e histórica específica brasileira (digo isso porque é uma debilidade dos atuais debates sobre os vários “movimentos” negros, seus e suas intelectuais e representantes mais destacados). Não pensam a partir da particularidade da matéria brasileira – a literatura racial que circula hoje no Brasil, e que, de certo modo, de alguma maneira, tem predominância, é, direta e indiretamente, norte-americana. (E isso é um problema.) Voltando à nossa exposição sobre os passos de Florestan. Com efeito; mesmo nos estudos e pesquisas mais acadêmicas, como o Relatório-Projeto sobre Brancos e Negros em São Paulo a pedido da Unesco (feito em parceria com Roger Bastide) até seus últimos textos sobre marxismo, o PT, o socialismo e a Constituição de 1988, essa será a distinção da obra de Florestan Fernandes: a preocupação e envolvimento com os miseráveis, e particularmente, os de pele preta. E nesse sentido haverá uma fusão nas ideias e intervenções florestanianas – a saber, o problema do negro e o marxismo e, consequentemente, a relação entre teoria e prática.

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Do ponto de visa estritamente teórico, o pensamento de Florestan Fernandes terá ao menos três grandes obras sobre o problema racial no Brasil: 1) a pesquisa “Brancos e Negros em São Paulo”, nos anos 1950 (junto com Roger Bastide); 2) A Integração do Negro na Sociedade de Classes (tese de cátedra defendida em 1964 e publicada em forma de livro em 1965 já no contexto da ditadura civil-empresarial-militar); 3) e Sociedade Escravista no Brasil, ensaio escrito por ocasião de simpósio em Nova York na Academia de Ciências em 1976. Não será necessário para os objetivos do argumento que apresento expor o primeiro trabalho de Florestan. Aqui apenas exponho de passagem o segundo e concentro-me na afirmação central do Sociedade Escravista no Brasil. Passando na sequência para o texto que, eventualmente, explicitará os desdobramentos prático-políticos da interpretação de Florestan sobre a questão racial entre nós, qual seja, o Significado do Protesto Negro.

Na tese de cátedra, Integração… o Florestan está fundamentalmente preocupado com a passagem da ordem escravocrata-estamental para a ordem social competitiva. De certa forma ele está preocupado com a efetiva democratização da sociedade brasileira a partir da nova era do pós-escravidão. Para usar um termo sociológico mais técnico, ele está atento à democratização das estruturas de organização da sociedade brasileira. Mas a pesquisa justamente demonstra os bloqueios estruturais à democratização. Então a integração do negro é uma não-integração social – com todos os problemas que daí derivam (e que atravessam a sociedade brasileira até os dias de hoje com implicações políticas, históricas, sociais, econômicas e culturais de graves consequências para a vida dos negros). Em termos socioanalíticos, a socióloga Élide Rugai Bastos, comentando o livro de Florestan, afirma que na integração pós-escravidão um dos traços importantes foi o representado pelo papel que o imigrante branco europeu assumiu na indústria paulista deixando o negro restrito a ocupações marginais ou acessórias do sistema de produção capitalista. Assim, não eram os modos comportamentais e/ou padrões psicológicos não adequados ao trabalho moderno – o que consequentemente permitiria aos negros e negras se autopossibilitarem ao longo do tempo e para gerações vindouras mobilidades sociais ascendentes na estrutura mesma da ordem capitalista – e, bem entendidas as coisas, Florestan não estava a defender qualquer aspecto do capitalismo como condição positiva de resolução para o racismo, era um diagnóstico sociológico-crítico que ele ofertava em A Integração do Negro na Sociedade de Classes: sim, o sistema social, a própria dinâmica da ordem social burguesa que levava à situação pobreza e miséria dos ex-escravos. O argumento florestaniano, então, é o de uma sociedade que se orienta social, cultural, política e economicamente contra a democratização – portanto contra os negros.

Uma década depois, Florestan Fernandes escreve A Sociedade Escravista no Brasil. Aqui já é um Florestan que não pensa mais o negro no mundo dos brancos, ou nas expectativas de integração-democratização que não ocorre dado o tipo de mudança social da ordem escravocrata para a ordem social competitiva. Com efeito; a sociedade brasileira, sobretudo, sua elite dominante, a classe burguesa, os grupos políticos de direita e conservadores e setores das classes médias altas, se ergue sobre os ombros dos negros e assim se reproduzem. Há um efeito multiplicador da escravidão que constitui a estrutura social de nosso país. Em que de um lado nós teremos e temos um núcleo central formado pela raça branca dominante, um grupo restrito, violento, ganancioso, hierárquico, cínico, que detém toda a riqueza nacional; e de outro lado a nação negra – formada por negros, mestiços, não-brancos trabalhadores (nas várias metamorfoses que o trabalho adquire hoje) que produzem todo aquele capital. (Notemos que nesse texto é um Florestan – absolutamente radical, marxista, aqui o marxismo e seus autores não são um paralelo na constituição de sua sociologia e pensamento, mas constituem o intelectual público Florestan refletindo, meditando (e agindo) sobre a transformação da ordem social, econômica e política do Brasil.) Essa “ordem escravista” no âmbito da construção do sistema social brasileiro requer funcionamento. Ela exige operatividade, dinâmica, sustentação e reprodução. Vejamos e reflitamos sobre a lapidar afirmação de Florestan Fernandes, então: “o estrato dominante da minoria branca estava […] empenhado na defesa sistemática do monopólio da dominação racial e de classe”. Mas como isso se dá, essa dinâmica de defesa da classe dominante branca? (Além da própria força político-estatal, e da posse da propriedade dos meios de produção da vida material) ocorre nos termos da intepretação de Florestan a criação da imagem do negro como o inimigo doméstico da nação – o inimigo público da sociedade brasileira que deve ser combatido. Dois aspectos são necessários para a efetivação de referida dinâmica de dominação do estrato branco superior sobre os negros:

1. o primeiro a conformação de uma argamassa militar e/ou paramilitar, quer dizer, na medida em que os indivíduos negros  (potencialmente insurretos) são a maioria da nação – ultrapassando os 50% da população brasileira (que hoje chega próximo a 220 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE) – haveria , e há, a necessidade de um exercício de poder altamente violento por parte das organizações políticas em dois níveis: no nível legal (polícias, sistema judiciário) e no nível intrínseco do cotidiano, com a construção de um exército privado de defesa da ordem social branca vigente (Florestan lembra ainda que esses dois grupos estariam dispostos a defender a classe dominante branca por motivos psicológicos que articulam solidariedade (de projeção) com distinção de ódio para com o grupo negro inferiorizado);

2. o segundo diz respeito à constituição de um código rígido de moralidade, qual seja, você identifica e inferioriza o negro pelos seus costumes, usos, vestimenta, condutas etc. Com efeito – a sociedade escravista no Brasil se ergue, se sustenta, se operacionaliza, se reproduz e se autorreferencia a partir dos seus nexos imanentes constitutivos. Essa foi uma das mensagens de Florestan Fernandes no ensaio A Sociedade Escravista no Brasil.

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No fim dos anos 1980, Florestan publica um conjunto de textos e entrevistas de intervenção tratando, especificamente, das possibilidades de resistência do negro no Brasil. Esses pequenos trabalhos foram reunidos no livro O Significado do Protesto Negro. Nesse momento, o pensamento florestaniano vai apostar em algumas variáveis. Ao menos quatro podem ser destacadas: 1) a crítica à suposta democracia racial existente entre nós; 2) o negro como símbolo da transformação radical da sociedade brasileira; 3) a ira e rebeldia dos negros mais inconformistas; 4) a aposta na articulação entre o negro como símbolo da transformação radical, da ira e rebeldia negras, com os partidos de esquerda. (Essas considerações do mestre da Maria Antonia o farão propugnar dois tipos de revolução no Brasil.) O que cada uma dessas variáveis nos diz.

Sobre a democracia racial Florestan afirma que:

[os negros e negras trabalhadoras, mais do que quaisquer outros grupos subalternos, precisam] revitalizar a República democrática […] [e] completar o ciclo da revolução social […] [É que essa] para ser ativada pelo negro e pelo mulato, a negação do mito da democracia racial, no plano prático exige uma estratégia de luta política corajosa, pela qual a fusão de “raça” e “classe” regule a eclosão do povo na história […] [E] o negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário (1989).

Não há em Florestan nenhuma condescendência com a noção de democracia racial que vigorava, e ainda vigora, entre nós. Pois ele havia atinado que, mais do que uma formulação teórica e conceitual implícita na obra Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre, abordar a sociedade brasileira como assentada em uma racialidade democrática era, isto sim, ocultar intencionalmente “todo um complexo de privilégios” (1989) da elite e classes brancas dominantes. O mito havia sido construído, não por Gilberto Freyre a rigor, como dispositivo de controle da fúria negra em busca de sua real libertação. Além disso, a construção de um símbolo de país em torno da convivência harmônica entre as raças era o modo pelo qual o obstinado privilégio da classe dominante branca brasileira protegia sua autoconsciência (cínica) da “cruel […] estratificação racial extremamente desigual” que fundava nossa sociedade. Florestan é preciso aqui: “os fatos – e não as hipóteses – confirmam que o mito da democracia racial continua a retardar as mudanças estruturais […] as elites [e a burguesia] se apegaram a ele […]” (1989). Uma das preocupações de Florestan Fernandes ao criticar a ideia de democracia racial, era com o efeito de estabilizador da impetuosa subjetividade negra diante de sua condição de ex-escravizados: a sistemática conformação mental – “a tenacidade do mito” – de que se vive no Brasil uma concertação pacífica entre brancos e negros objetivava a “estabilidade da ordem [burguesa branca vigente]” (1989). Com efeito; o culto do compartilhamento igual de condições de vida defendido pela elite branca dominante necessitava de um espírito e sagacidade de luta política e social que fundisse “raça e classe” (1989) permitindo a “eclosão do Povo [insurreto] na história [brasileira]”. Por outras palavras, o negro tinha e tem a potencialidade de se tornar no vulcão político que convulsionaria a ordem social burguesa e racista no entre nós.

Posto que a democracia racial era um mito forjado com o intuito de atender às classes dominantes brancas nacionais, Significado do protesto negro se propõe algumas indagações políticas gerais e de caráter particular quanto ao sujeito da ação social da transformação. Politicamente a questão complexa “dos dilemas enfrentados pelos negros” (1989) repousava no problema da democracia. Se a ideia de democracia racial era um engodo bem tramado contra o negro, então, nos termos de Florestan, a primeira coisa a ser feita, sobretudo no contexto de transição da ditadura civil-militar, era a “transformação simultânea de relações raciais e de relações de classes, nas quais se acham envolvidos” os negras e negras que aqui vivem – trata-se isto sim de fazer desabar com radicalidade, até o espírito insurrecional, as barreiras sociais, econômicas e materiais, bem como as barreiras raciais que marcam a pele preta como um elemento para a atroz discriminação, preconceito e racismo. O mestre da Maria Antonia estava a dizer, nesse ponto de suas intervenções, contra os que afirmavam que o “preconceito de cor” era eminentemente de classe, que essa consideração resultava em profundo equívoco em se tratando do modo pelo qual se constituiu a ordem capitalista brasileira. Pois aqui o negro sofre um duplo bloqueio racial – são duas as barreiras que o negro tem de atravessar, a de classe e (articulada a ela) a de raça. Assim, em O negro e a democracia, artigo publicado em 1987, presenciamos nosso sociólogo sugerir ao negro aquilo que Marx havia sugerido para a classe trabalhadora em geral; na mesma medida em que o autor do Manifesto comunista afirmou que a libertação-emancipação coletiva dos trabalhadores tinha de ser realizada pelos próprios trabalhadores, Florestan dirá que “essa afirmação também [seria] verdadeira com referência aos negros” (1989). Ora, em um momento em que parte significativa, não a massa negra insurreta (e fundamentalmente periférica), de setores do movimento negro avança formulações como empatia de pessoas brancas (“e repensar o privilégio branco”, “a branquitude tem de pensar seus privilégios”), e de como isso por vezes passa à prática não-autêntica, a asserção florestaniana é precípua para as reflexões dos negros e negras que lutam contra o racismo hoje.

Não havia dúvida para Florestan Fernandes de que o negro era (e é…) a “pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira” (1989). Entretanto, sua posição não era de simples diagnóstico impessoal, positivista e bem-pensante. Em que medida? Na medida em que não só os negros, eles sobretudo, mas toda a sociedade brasileira estava sob o mesmo signo amargo e em certos momentos angustiante: “ou o negro avança a sangue frio com toda a coragem de que puder dispor” (1989) ou a democracia brasileira continuará a ser um mito violento e rude. E mais: “a solução gradual não levará a nada” (1989). Diz Florestan (aqui mudei o tempo verbal da passagem do Significado do protesto negro),

Os negros e mulatos têm de tomar a si – sem apoio externo – a tarefa de modificar essa situação. Os movimentos sociais no meio negro devem pretender esse objetivo ambicioso, contra todos e contra tudo. Na verdade, se alcançarem êxito, terão limpado a sociedade brasileira das sequelas do mundo colonial e da sociedade escravista. Através de uma revolução dentro da ordem [se possível contra a ordem] podem conquistar o que lhes fora negado [e a outros subalternos] (1989)

Daí o negro ter de se transformar em insígnia da real transformação social entre nós.

Mais do que um trabalho que de alguma maneira sintetizava, com nuanças é certo, os estudos sociológicos sobre raça, o construtor das ciências sociais nacionais e as intervenções intelectuais de Florestan como publicista dos de baixo, Significado do protesto negro é um manifesto político-programático para a luta de milhares de negros e negras contra o racismo que vigora na sociedade brasileira. Pois nele estamos a presenciar um Florestan Fernandes preocupado em estabelecer articulações teóricas e organizativas com a ira e o inconformismo social dos ex-escravizados. Para ele, essas duas circunstâncias da vivência negra tornariam os negros a vanguarda das mudanças estruturais que o Brasil tanto necessitava. Os negros e negras é que teriam as reais condições de eliminar “a exorbitância da persistência do passado” (1989) entre nós. A política tinha de ser, aqui é um Florestan eminentemente radical, marxista mesmo, um dispositivo em que os negros conseguissem a auto-organização da rebeldia na oposição contumaz à “concentração racial da riqueza, da cultura e do poder” (1989). No Brasil ou insurreição negra ou “reacionarismo das classes dominantes [brancas]” (1989). Com efeito, o negro e a negra teriam de se autoconformarem como classe trabalhadora; quer dizer, não tratava para o Significado do protesto negro de que negro e trabalhador fossem dois agentes sociais distintos que em um dado momento teriam de se encontrar na luta política, nem mesmo que o negro se conscientizasse como trabalhador e esse, ao contrário,  se visse como negro – era no próprio impulso de sua teorização, ação política e organizativa que o sujeito revolucionário negro-trabalhador no Brasil conseguiria criar as condições para findar com o racismo. Lapidarmente diz Florestan: “negros e mulatos tomar[ão] a si […] a tarefa de modificar [a] situação” (1989) social, econômica, política e cultural entre nós.

Atento às armadilhas sutis de uma sociedade em que seus modos de ser e suas manifestações de existência (Marx) são precipuamente racistas, parte dos artigos que compõem o Significado do protesto negro estão preocupados com algo que nos dias de hoje presenciamos de maneira cristalina, qual seja: a problemática formação de uma elite negra de classe média, que transforma a luta material de classes contra o racismo em expedientes de reivindicação estética, artística, cultural e epistemológica. Por outras palavras, ao avançar tal compreensão não escapava ao fundador da Escola Sociológica Paulista o processo de “acefalização das raças dominadas” – provocado pelo “êxito [individual] na competição inter-racial numa sociedade multirracial […] [em que] a modernização generaliza-se às elites em formação do meio negro […]” (1989).

O mestre da Maria Antonia; o fundador de nossas ciências sociais; o sociólogo marxista; o leitor apaixonado de Lênin; o intérprete verdadeiro e solidário da questão racial no Brasil nos legou a seguinte lição – “ao movimento negro uma radicalidade revolucionária” (1989) é decisiva na luta e destruição do racismo, à construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.

Bibliografia

Bastos, Elide Rugai. Sessenta anos da Publicação de um Relatório. Sinais Sociais, v. 10, nº 28, 2015.

Fernandes, Florestan. Significado do Protesto Negro. São Paulo. Cortez Editora/Autores Associados, 1989.

_________________ Sociedade Escravista. In: Fernandes, Florestan. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo. Globo, 2010.

Nota do autor: Esse texto resulta de uma palestra proferida no Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política e Sociedade-EHPS da PUC-SP em 03/05/2022. Agradeço, imensamente, ao convite do professor José Geraldo Silveira Bueno, e a seu grupo de orientandas e orientandos (Wagner Aguino, Camila Rosa, Carla Cazelato, Rogério Barrios, Carol Sampietri, Felipe Q., Antonio Soares, Corina Albuquerque e Isis Santana de Freitas e Marcela Souza) que estiveram presentes na discussão e muito contribuíram para essas reflexões.

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