O parecer técnico de Rodrigo Agostinho, presidente do IBAMA, no dia 18/05, negando a licença ambiental para a Petrobras no caso da Perfuração do Bloco 59 na Foz do Amazonas, destampou um panelão de interesses e pressões políticas, especialmente no seio do Governo Lula 3. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, senador pelo Amapá, reagiu indignado e rompeu com Marina Silva, figura central da Rede Sustentabilidade e Ministra do Meio Ambiente. O ministro de Minas e Energia também protestou. Estamos diante de uma crise política na coalizão governamental? Sem dúvida![1] Isto num momento de muitas negociações para a aprovação do novo arcabouço fiscal no Congresso.
No entanto, cabe exclusivamente ao IBAMA, como órgão do Estado, com autonomia, sem interferência política, fazer a avaliação da proposta e dar seu parecer técnico no caso de licenciamento ambiental. Afinal, a Petrobras não apresentou estudo técnico dos possíveis impactos para a integridade do complexo sistema ecológico na Bacia da Foz do Amazonas, o maior rio do Planeta. Até hoje nunca foi feita uma avaliação da sua complexidade, levando em conta todos os sedimentos que joga o Rio Amazonas no Oceano Atlântico equatorial, com seus corais, grande biodiversidade e correntes marinhas. Enfim, o IBAMA fez o que lhe cabe: avaliar riscos ecológicos à integridade do sistema e demandar os estudos necessários para, se for o caso, poder conceder a devida licença ambiental de exploração.[2]
Dá para entender os interesses em jogo e o que representaria para o Amapá, de Randolfe Rodrigues, uma nova frente exploração de petróleo liderada pela Petrobrás. Afinal, Randolfe pretende ser candidato a governador e sua aposta conta com os grandes investimentos que a exploração do petróleo, neste Governo Lula 3, pode representar para o seu Estado. No entanto, a encrenca é muito maior: estamos diante de uma questão complexa que pode definir o próprio rumo do Governo Lula e o quanto a democracia brasileira poderá avançar num caminho de reconstrução e renovação, com uma proposta ecossocial transformadora.
O petróleo, o carvão e o gás, grandes fontes de energia fóssil, foram essenciais para a própria revolução industrial e até hoje movem a máquina do capitalismo globalizado. Neste sentido, continuam sendo recursos estratégicos, especialmente petróleo e gás, estando no centro das grandes questões geopolíticas e das guerras que movem o capitalismo. Mas estas fontes de energia fóssil são o grande vilão da mudança climática, que pode nos levar a uma catástrofe planetária e até à inviabilidade da vida. Tão ameaçador e complexo assim!
Meu objetivo não é entrar no debate técnico e econômico em si, pois nem tenho qualificação para tanto. No entanto, reconheço que a questão petróleo está profundamente imbricada nos caminhos e descaminhos de nossa história econômica e política, pelo menos, no último século. Foi uma memorável campanha na sociedade civil – “O petróleo é nosso!” -, nos anos 1950, que levou o governo Getúlio Vargas a criar a PETROBRAS em outubro de 1953. Foi num período de industrialização do Brasil com grande protagonismo do Estado.[3] A PETROBRAS se tornou a mais importante empresa brasileira e, hoje, uma das mais importantes petrolíferas a nível mundial. Não cabe aqui entrar em seu complexo desenvolvimento no centro de lutas políticas que marcam a história do Brasil. O fato mais importante é seu avanço tecnológico e as descobertas das Bacias de Campos e do Pré-Sal. É um grande patrimônio nacional, indispensável para a questão estratégica da energia. A questão é que energia fóssil está com os dias contados, dada a necessidade de profundas mudanças em tal matriz para enfrentar as mudanças climáticas. O problema reside no fato que o petróleo não é renovável e é um dos vilões mais centrais em termos de emissões de CO².
O que precisamos enfrentar é um debate mais espinhoso sobre o petróleo em si e a base energética do Brasil, levando em conta o próprio mote do Governo Lula 3:”cuidar de gente e da natureza”. Temos uma grande base hidrelétrica para geração de eletricidade, vista como algo virtuoso no contexto mundial, apesar dos enormes e desastrosos impactos ecossociais nas populações e territórios em que foram instaladas as usinas, com as suas grandes e destrutivas barragens. Povos indígenas e tradicionais, pescadores e pequenos agricultores familiares tem sido sistematicamente agredidos e expulsos de seus territórios em nome de um bem comum maior. Sem dúvida, hidrelétricas produzem energia de qualidade, mas o balanço ecossocial final não é tão favorável. Para não ir muito longe, lembro a tragédia ecossocial em curso com a implantação de Belo Monte, na grande curva do Rio Madeira, no Amazonas, atingindo milhares de indígenas e acabando com a própria integridade do rio, base de seu sistema de vida. Não seria possível um outro modelo hidrelétrico, sem as grandes usinas, mais adequado à fantástica diversidade territorial e do sistema de rios, e respeitando as populações locais e seus modos de vida?
Hoje, é de saudar a ampliação rápida e sistemática da base eólica e solar na produção de eletricidade. Algo também visto como virtuoso, pois renovável. Mas fora dos territórios em que são instaladas as grandes unidades de produção, solares e eólicas, pouco se sabe de seus impactos nos territórios e suas populações. No caso, novamente, será que os grandes empreendimentos – verdadeiras “fazendas” de energia, a seu modo invasoras e excludentes, como o agronegócio – são a melhor solução? Ou algo mais descentralizado seria mais integrado e respeitoso com a população local, seus territórios e modos de vida?
O certo é que água, sol e vento, como forças vivas e renováveis, são melhores do quer queimar petróleo, gás ou carvão, reservas fósseis naturais formadas a milhões de anos, em processo de destruição sistemática. Queimar tais recursos tão complexos e não renováveis é como comprometer o amanhã de seres vivos, humanos e não humanos, assim como o complexo sistema ecológico do Planeta que nos dá a vida. Lamentavelmente, devido aos problemas climáticos que mais frequentes e intensos, para não sofrer o temido “apagão”, o Brasil ainda vem aumentando as usinas elétricas a gás (menos mal que óleo ou carvão).
O petróleo é central para mover o sistema de transporte no Brasil nos dias de hoje. Para favorecer a industrialização – no caso, a produção industrial interna de caminhões, ônibus e veículos de passeio – desde meados dos anos 1950 foi sendo sucateada e abandonada, ao invés de modernizá-la, a importante malha de transporte ferroviário de cargas e até de passageiros que tínhamos. Pior, como as frentes de expansão econômica vão no sentido Centro, Oeste e Norte, tudo se fez na base de rodovias, com caminhões para carga e ônibus para passageiros. Também se expandiu a malha de aeroportos. Tudo movido a derivados de petróleo. Os sinais de insustentabilidade de tal opção já vem de longe. Custos de transporte de carga por caminhão, movidos a óleo, pesam enormemente no custo final das mercadorias, sem contar o próprio custo de ampliação e manutenção das rodovias. Nas grandes cidades os engarrafamentos são quase diários, dadas a prioridade de cidades feitas para caros e não para o bem comum coletivo. O transporte coletivo urbano virou um drama pela superlotação e o alargamento dos tempos de descolamento, especialmente para a população pobre das grandes periferias Nas grandes metrópoles, com um atraso enorme, lentamente, vem se expandindo a malha de metrô, longe de ser satisfatória.
Uma exceção no quesito transporte de cargas são algumas ferrovias de mineradoras. O grosso da safra do agronegócio é deslocada para os portos via rodovia. Claro, algumas iniciativas surgiram, como o transporte fluvial, mas ainda pouco importante levando em conta o monumental sistema de bacias hidrográficas do país. Hoje, é na Amazônia onde o transporte fluvial ainda é dominante para grandes distâncias.
Enfim, este panorama grosseiramente assinalado, mostra como o país não pode andar hoje sem petróleo, especialmente óleo, gasolina e querosene. Apesar do avanço em termos de produção e uso do álcool, a partir da crise de petróleo dos anos 1970, e depois o biodisel, a realidade é que não podemos prescindir do petróleo. Num certo sentido chegamos à autossuficiência em termos de produção, mas a desastrosa política seguida depois da Lava Jato e do Golpe de 2016, com ameaça de privatização e com a paridade de preços ao valor do barril no mercado mundial, a PETROBRAS se tornou uma extrativista exportadora de petróleo bruto e importadora de refinados. E cresceu a fatia do setor privado na própria extração, com os leilões de lotes de exploração. Uma tragédia comprometedora do futuro do país que não podemos ignorar! Aliás, por mais petróleo no mundo nos compromete com mais emissões, mesmo que não sejam aqui. Só os financiadores privados ganharam vultosos dividendos com os lucros da Petrobras. Cadê o projeto de industrialização? Viramos uma economia primária exportadora de commodities do extrativismo mineral e do agronegócio. Podermos fazer justiça social e ecológica com esta base?
De todo modo, o desafio hoje, em nome da democracia e da justiça ecossocial é fazer uma profunda revisão e, sobretudo, mudança de rumos. Será impossível “cuidar de gente e da natureza” com a base econômica destroçada e reprimarizada que temos, a serviço de um punhado de especuladores nacionais e internacionais. Mais, precisamos de outra economia, pois não podemos depender desta que destrói territórios comuns e exclui as maiorias deste país. Nesta equação o petróleo ocupa um dos lugares centrais. Não é a “tábua de salvação nacional”, algo festejado nesta nossa democracia de “conciliação” com predadores de todos os tipos. A tarefa é gigante e em muitas frentes.
Não tenho dúvidas sobre o quanto o petróleo é estratégico, mas não podemos tratá-lo somente ou prioritariamente como combustível. Ele é fonte de muitos recursos, até de medicinas. Claro, para realizar uma transição na questão energética muita coisa precisa ser feita, mas não pode ser adiada. Além disto, qualquer transição tem necessariamente impactos ecossociais que precisam ser levados em conta, pois necessitam de recursos naturais, seja água, sol e vento, como extração de minerais para painéis e baterias.[4] Enfim, a vida se faz na relação com a natureza e dela depende. Importa o modo como estabelecemos tal relação.
É neste panorama que situo o embate em curso desencadeado pela negativa do Ibama na demanda de licença ambiental para a perfuração de um poço exploratório da Bacia do Foz do Amazonas.O buraco e a ameaça é muito maior! O quadro em que a questão petróleo precisa ser colocada é dos engajamentos do Governo Lula quanto ao enfrentamento democrático da inadiável agenda ecossocial para o país, dados os problemas de exclusão, miséria, fome e desigualdades que temos e os processos de invasão e destruição de matas e áreas protegidas. Além disto, é inegável a importância do território brasileiro, sua biodiversidade e sua população em termos regionais e planetários, pelo tamanho e vibrante capacidade cultural do que somos como povo para construir o Brasil que nós precisamos e o mundo precisa.
[1] Climainfo. “Petróeo na foz do Amazonas é primeiro ‘teste de fogo’ da política climática do governo Lula”. Disponível em: Combate Racismo Ambiental. 22 de maio de 2023. Ed. Matinal.
[2] Giovana Girardi. “Licença não pode ser no Grito, diz ex-presidente do Ibama sobre petróleo no Amazonas”. Agência Pública. Disponível em Combte Racismo Ambiental. 22 de maio de 2023. Ed. Matinal
[3] PETROBRAS junto com ELETROBRAS, BNDES e SUDENE se constituíram como agências do Estado para a industrialização do Brasil, especialmente no período de 1950 a 1980.
[4] Bruno Milanez. “Transição Energética. Existe uma iluão de que a ‘tecnologia’ vai encontrar um caminho e as economias poderão crescer indefinidamente”. Em entrevista para Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Newsletter IHU. São Leopoldo, 11.05.2023