‘CPI do MST é a CPI dos grileiros e nós deveríamos investigar a grilagem de terra no País’

Gilmar Mauro, da Coordenação Nacional do MST, avalia o início dos trabalhos da CPI, que considera ser voltada para criar factoides políticos

Por Luís Gomes, Sul21

Iniciativa de setores da direita bolsonarista e de parlamentares ligados ao agronegócio, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST iniciou os trabalhos nesta semana. Nesta sexta-feira (25), a reportagem do Sul21 conversou com Gilmar Mauro, membro da Coordenação Nacional do MST, para entender como o movimento avalia os estágios iniciais da comissão e o que espera dos trabalhos.

Para Mauro, a CPI, presidida por Luciano Zucco (Republicanos-RS) e tendo em sua relatoria Ricardo Salles (PL-SP ), tem um claro objetivo político de criar factoides e tentar desgastar a imagem do MST e do governo federal. Contudo, ele avalia que a CPI tem ainda outro objetivo, que é tentar tirar o foco das denúncias que serão apresentadas em outra CPI, a dos atos golpistas, contra lideranças de direita e ruralistas que financiaram os bolsonaristas que vandalizaram as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro.

“Agora, eles mandam completamente na CPI. Nós não temos incidência forte sobre a CPI propriamente, porque a participação dos setores progressistas, de esquerda, é minoritária lá. Nós evidentemente vamos fazer, através de mobilização, de articulação com amplos setores da sociedade, a possibilidade de que se investigue de fato os principais problemas que esse País enfrenta. As queimadas, o tema da grilagem, é uma CPI dos grileiros, essa é a verdade. Nós deveríamos investigar a grilagem de terra no nosso País”, diz Gilmar Mauro.

Por outro lado, ele avalia que a CPI está sendo realizado em um “momento bom” para o MST, uma vez que o movimento ganhou apoio com ações realizadas durante a pandemia de covid-19, quando doou, segundo informa, cerca 9 mil toneladas de alimentos saudáveis e mais de 10 mil cestas básicas para aplacar a crise de fome, distribuiu mais de 2 milhões de marmitas para famílias em situação de rua e formou mais de 50 mil agentes populares em saúde do campo para fortalecer o enfrentamento à pandemia.

“Vê que nós saímos da pandemia com um índice alto de apoio popular, fruto daquela linha política que adotamos da resistência ativa de, mesmo no período da pandemia, continuar produzindo, distribuindo comida, fazendo comida pras populações urbanas mais carentes, etc.”, diz.

Confira a seguir a entrevista com Gilmar Mauro, da Coordenação Nacional do MST, sobre a CPI que investiga o movimento sem terra.

Sul21: Qual é a avaliação do MST sobre a CPI? Quais podem ser os desdobramentos e quais as possibilidades que o MST ganha a partir da visibilidade que ela traz para o movimento?

Gilmar Mauro: Olha, primeiro uma velha história, porque vai ser a quinta CPI, sem um objeto concreto. Então, no fundo, no fundo, a nossa interpretação é que é uma CPI política, que cumpre vários interesses. Um deles é tentar fazer um contraponto, vamos dizer assim, em termos de protagonismo dos ruralistas, fazendeiros, em relação à CPI do 8 [de janeiro], que é do golpe. Várias figuras que estão aí são investigadas, tanto o Zucco, a Polícia Federal está investigando, como todos nós sabemos da postura do Salles em relação ao MST lá atrás, mas também enquanto ministro do Bolsonaro, e que há uma série de processos.

Mas tem um ingrediente que o Salles é candidato também a prefeito em São Paulo. Então, além de mudar foco, porque agora não é mais CPI do MST, mas das invasões, a nossa avaliação é que ele quer puxar o MTST pro centro do debate, porque a disputa em São Paulo também se dará com o Boulos. Então, é uma CPI sem sentido para gastar dinheiro público, sem sentido para nós. Obviamente, e não tem nenhum objeto concreto. Agora, qual é o problema que eu acho? Eu brinco que estou mais preocupado com a minha gripe do que com a CPI. Mas eles vão tentar criar factoides, esse é o nosso problema. Criar factoides, ir para as regiões, pegar algum tipo de declaração fake que possam encontrar por aí para tentar desmoralizar o MST. Essa vai ser a tônica, porque não tem nenhum objeto concreto de investigação.

Agora, eles mandam completamente na CPI. Nós não temos incidência forte sobre a CPI propriamente, porque a participação dos setores progressistas, de esquerda, é minoritária lá. Nós evidentemente vamos fazer, através de mobilização, de articulação com amplos setores da sociedade, a possibilidade de que se investigue de fato os principais problemas que esse País enfrenta. As queimadas, o tema da grilagem, é uma CPI dos grileiros, essa é a verdade. Nós deveríamos investigar a grilagem de terra no nosso País. Agora, isso nós vamos ter que fazer em paralelo, é um processo de mobilização com amplos setores da sociedade, seja os povos indígenas, seja os quilombolas, seja os sem terra por todo o Brasil.

Sul21: Como tu falou, aumentaram o escopo da CPI para tratar de invasões. Como está a realidade hoje das ocupações do MST? Como está esse movimento e uso dessa estratégia de ocupações?

Mauro: As ocupações são parte de uma luta do MST para garantir que o estado brasileiro, em particular o governo, cumpra um preceito constitucional que está estabelecido desde 88, que a terra que não cumpre com a função social deveria ser desapropriada para fins de reforma agrária. E estabelece que, para cumprir a função social, a terra precisa produzir racionalmente, respeitar a legislação trabalhista e respeitar a legislação ambiental. Ora, se você somar a quantidade de áreas com desrespeito ambiental…vou dar um exemplo concreto. A Vale do Rio Doce derruba duas barragens na cabeça do povo, com um monte de mortes criminosas, e nenhuma área da Vale do Rio Doce foi arrecadada para fins de reforma agrária. Contaminou dois rios, contaminou um monte de lugares. Trabalho escravo, no Rio Grande do Sul mesmo, mas em outras fazendas de café, etc, pelo Brasil afora. Essas terras deveriam não só ser desapropriadas, deveriam ser expropriadas, porque é um crime. Se somar essas áreas improdutivas, com problemas ambientais, com problemas trabalhistas, aqueles que são devedores do INSS, são muitos, devedores do Banco do Brasil e do BNDES, são muitos, e o governo cobrar, obviamente que arrecadaria terras para fazer um monte de assentamentos. Como o governo não faz isso, o estado brasileiro não faz isso, o sem terra tem o direito de fazer pressão. Então, a ocupação é um método, não é o único, mas é um jeito. Aqui e acolá se usa desse recurso como tática. Eu comparo a greve, em um determinado momento você faz greve, em outro momento você faz passeata, em outro momento você faz outro tipo de luta, assim é o MST na tática política. A ocupação é uma tática de pressão para fazer avançar a reforma agrária e, obviamente, que vamos sempre recorrer a essa tática. Mas não é uma decisão de escritório, não é uma decisão dos dirigentes, é uma decisão do povo que se organiza para lutar pela reforma agrária.

Sul21: A CPI vai lançar um foco sobre o MST e isso também traz uma visibilidade ao movimento de conceder entrevistas e ocupar espaços que ele não tinha acesso. Tu achas que vai ser uma oportunidade de fazer esse enfrentamento, fazer o contraponto, em espaços que o MST antes não tinha acesso?

Mauro: Claro que vai abrir espaço. Eu acho que pega o movimento sem terra num momento bom. Vê que nós saímos da pandemia com um índice alto de apoio popular, fruto daquela linha política que adotamos da resistência ativa de, mesmo no período da pandemia, continuar produzindo, distribuindo comida, fazendo comida pras populações urbanas mais carentes, etc. Se você pegar um comparativo, eu acompanhei todo o processo em 1996, 1997, de grande impacto e repercussão na luta pela reforma agrária. Foi um momento que nós fomos profundamente atacados, pega por exemplo o massacre de Eldorado de Carajás, nós respondemos com a Marcha a Brasília. Aí vem novela ‘O Rei do Gado’ na época, coincidentemente tá passando a novela ‘Rei do Gado’ de novo agora, só um paralelo histórico, que abriu portas para o MST ser conhecido, principalmente nos espaços urbanos naquela época. E eu acho que, hoje, a CPI também abre esse espaço. Evidentemente que não é aquele espaço que nós gostaríamos. Nós gostaríamos de estar discutindo outras coisas, como se resolve os problemas do assentamentos, da pequena agricultura, da produção, como é que resolve o problema da fome, da miséria e assim por diante. Vamos ter que levar um tempo nos defendendo de ataques, mas também criando oportunidades de falar.

Eu sou da época que eu falava na imprensa lá, e depois fiquei um tempão sem falar. Abre espaço, sim, mas são questões normalmente muito parecidas com aquelas daquela época. Então, obviamente que nós não estamos em busca de espaço, agora a CPI, contraditoriamente, coloca o MST em evidência e vai abrir um debate que é interessante nós fazermos com toda a sociedade, sem dúvida nenhuma.

Sul21: Tu falastes do risco dos factoides, mas eu queria te perguntar se a CPI pode prejudicar as reivindicações do MST junto ao governo, de políticas públicas, de demarcação de terras. Daqui a pouco pode travar um pouco esse processo ou a relação com o governo federal vai permitir que uma coisa não afete a outra?

Mauro: Eu espero que não e acredito que não, porque a CPI também tem um viés, que é atacar o governo, que é desgastar o governo através do MST, e tentar quebrar articulação política, digamos assim. Porque nós apoiamos o governo Lula, nós fizemos a eleição do Lula, ajudamos a eleger o Lula e, portanto, o governo Lula podemos dizer, entre muitas aspas, que é nosso também. Agora, como movimento popular, e assim nos definimos, evidentemente uma organização que não responde às necessidades concretas da sua categoria não tem sentido de ser. O MST foi construído pela categoria sem terra e desde os primórdios do MST nós optamos por ser um movimento autônomo, frente ao estado, frente ao governo, frente aos partidos, frente à igreja e assim por diante. E essa característica nos forjou como movimento, diferente inclusive da esquerda clássica tradicional, europeia principalmente, que via movimento social e sindical como uma espécie de correia de transmissão da linha política dos partidos. Nós nunca caímos nessa toada, continuamos defendendo a nossa autonomia e vamos continuar sendo autônomos. Agora, evidentemente que nesse momento, em tempos de crise econômica planetária, crise ecológica, crise política e ascensão do fascismo, nós ao mesmo tempo temos que pressionar o governo para atender as pautas da classe trabalhadora que o elegeu, inclusive da nossa categoria em particular, mas não podemos cair na toada de jogar água no moinho da direita. Então, é uma situação de que vai haver negociação, vão haver pressões ao governo, mas ao mesmo tempo nós temos que ter esse cuidado de que isso não signifique fortalecer a direita fascista, que continua existindo com um grau de força no nosso país. Então, tô te dizendo tudo isso para dizer o seguinte: eu acho que não vai afetar as negociações em relação ao governo, porque isso é um compromisso também que o Lula assumiu. Não só conosco, mas com toda a sociedade. E eu espero que as questões principais de demandas da nossa categoria sem terra sejam de fato atendidas, e acredito que serão.

Sul21: Como se evita tanto da parte do MST, mas especialmente da parte do governo e dos seus representantes, essas cascas de banana que a direita vai certamente tentar lançar nessa CPI?

Mauro: Eu acho que tem que ter muita maturidade política e fazer um diagnóstico bastante amplo, sem deixar de levar em consideração as particularidades prementes. Para dar um exemplo, o movimento sem terra tem que levar na sua pauta cotidiana todas as necessidades prementes da sua categoria e da classe trabalhadora. Tá faltando lona no acampamento, tem que lutar por lona. Tá faltando crédito, tem que lutar por crédito. Mas não dá para separar a pauta reivindicatória corporativa da luta política, é um erro. É um erro estratégico que as organizações cometeram no passado de separar a luta econômica, como se fosse movimento popular e sindical faz luta econômica e partido faz luta política. Ou movimento social e sindical vira puramente economicista ou o partido vira uma burocracia se não estiver vinculado às questões concretas do povo, e nós também. Então, a análise política deve guiar também a luta econômica concreta. Isso deve ser feito com muita maturidade, com muita tranquilidade, sem fígado. É preciso colocar pauta? É. É preciso lutar por ela? É. Sem, entretanto, cair nas cascas de banana que, ou vão desgastar o governo – nesse momento não nos interessa, não é isso que a gente quer -, ou desgastar o próprio movimento sem terra. Então, unidade contra a direita fascista é a palavra de ordem.

Sul21: Algo a acrescentar?

Mauro: É importante nós ficarmos muito atentos, todos os setores progressistas, tanto na CPI do MST, quanto na luta política atual. Eu acho [que] a CPI é um factoide criado por setores direitistas para tentar nos atacar e atacar o governo, e tentar escamotear os verdadeiros crimes. Você pega por exemplo as queimadas, mas a quantidade de agrotóxicos que são destinados ao tal agronegócio. Lei Kandir, por exemplo, que isente do pagamentos impostos os exportadores. Tudo isso impacta sobre o uso do solo no Brasil. Um exemplo simples, quem produz arroz para o mercado nacional paga imposto, quem produz commodities não precisa pagar imposto. É óbvio que isso vai exercer uma pressão brutal sobre o uso do solo brasileiro, encarecendo a comida, os alimentos, e beneficiando os fazendeiros. E os grandes fazendeiros moram na Faria Lima ou nem moram no Brasil, moram em Miami, não geram emprego e tal. Então, tentar escamotear isso criando factoides como a CPI do MST é parte de uma lógica de narrativa, vamos dizer assim, para não enfrentar os reais problemas do nosso País.

Foto: @olivia_godoy

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