Companhia Docas se aliou à ditadura para monitorar funcionários no Porto de Santos

Documentos obtidos com exclusividade pela Pública revelam a relação da empresa com o DOPS na repressão aos trabalhadores

Por Dyepeson Martins, Agência Pública

No Porto de Santos, uma embarcação da Marinha se tornou também um símbolo da violência da ditadura militar: o navio-prisão Raul Soares, que atracou nas docas em 24 de abril de 1964, menos de um mês depois de os militares tomarem o poder. O local serviu de espaço para torturas físicas e psicológicas. Os presos ficavam incomunicáveis e viviam em condições insalubres, sem acesso a banheiros e alimentação adequada.

Foi lá que Ademar dos Santos, conhecido como “Ademarzinho”, ficou detido. Ele, um ex-eletrotécnico da Companhia Docas de Santos (CDS), conta que realizava as necessidades fisiológicas em frente a um guarda armado com metralhadora, era obrigado a limpar as latrinas e chegava a ficar quase 12 horas em interrogatórios. “Não podia dormir”.

Segundo Ademarzinho, o motivo da prisão foram suas relações políticas e sindicais. “Uma foto minha em um jornal, na terceira fila de um evento político no Rio de Janeiro, onde se encontrava o cabo José Anselmo, que se envolveu em luta armada, foi um dos motivos alegados para a minha prisão. […] Queriam saber qual era a ‘missão’ que o partido comunista tinha dado para mim”, contou o ex-sindicalista ao Diário do Litoral, em 2013. Ele tinha 80 anos à época da entrevista.

Além de ser o local que abrigou o navio-prisão da ditadura, a Companhia Docas de Santos também teria atuado ativamente a favor do regime e contra os perseguidos pelos militares, revelam documentos acessados com exclusividade pela Agência Pública.

Um deles, de 14 de março de 1965 (um ano após o golpe), traz uma ordem direta da Docas aos seus funcionários: cessar qualquer coleta de doações às famílias de trabalhadores presos ou demitidos pela empresa. A ordem veio de cima e dos militares, da Capitania dos Portos, da Marinha do Brasil. Na época, os operários buscavam dinheiro para o básico, como alimentação e despesas da casa, comprometidas pela ausência de salário e dificuldades para retornar ao mercado de trabalho.

“Ultimamente vários elementos sindicalistas, principalmente nos dias de pagamento, faziam correr listas angariando fundos sob o pretexto de auxílio àqueles que haviam sido demitidos dos empregos ou presos. Agora o Sr. Capitão dos Portos do Estado de São Paulo, capitão do Mar de Guerra Roberto Coutinho Coimbra, vem de baixar a seguinte circular coibindo tal prática”, informava o documento. Quatro anos depois, em 1969, Roberto Coutinho foi empossado presidente da Coordenação dos Serviços Portuários de Santos, que funcionava na Docas.

A ordem aos funcionários, apurou a Pública, foi uma dentre várias ações para fragilizar a atuação sindical diante da repressão no litoral santista — cenário de torturas, perseguições e violações de direitos trabalhistas. Boa parte das prisões ocorriam a partir de monitoramentos realizados pela CDS em parceria com os militares, mostram os documentos. Um ambiente de “terror”, assim narram alguns ex-funcionários da Companhia. A reportagem analisou centenas de relatórios que revelam como os doqueiros ou trabalhadores de capatazia — assim eram divididos de acordo com o tipo de contrato — foram monitorados e classificados como criminosos.

A empresa se manteve no monopólio das operações por 94 anos até deixar a concessão em 1980, quando o Governo Federal criou a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp).

Os documentos são parte da pesquisa “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, realizada por 55 pesquisadores e conduzida pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O projeto é uma parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.

Docas teria atuado junto ao DOPS para perseguir “subversivos”

Para chegar aos “subversivos”, a Docas teria o apoio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), usado pela ditadura na repressão a movimentos sociais, políticos e sindicais. A troca de informações sobre a vida dos funcionários intensificou-se a partir da criação do Departamento de Vigilância Interna (DVI), em 27 de janeiro de 1966, no governo de Castelo Branco. A CDS, segundo o relatório da Unifesp, utilizava a estrutura do DVI para visitar casas, investigar as vidas pessoais e os comportamentos dos trabalhadores. Eles teriam sido enquadrados em crimes que não cometeram.

Inicialmente, o DVI surgiu como órgão interno com a função de garantir a segurança das mercadorias armazenadas nos depósitos. Gradualmente, no entanto, tornou-se uma unidade de repressão, sendo constituída por agentes pagos pela concessionária. Na época do regime militar, trabalhavam por lá quase 14 mil pessoas.

Havia resistência mesmo com o intenso monitoramento. Um mês após a criação do DVI, funcionários mantinham a “Operação Tartaruga” para protelar e comprometer o andamento dos trabalhos. Como consequência, a Capitania dos Portos interviu com um Inquérito Policial Militar (IPM). Os IPMs eram de iniciativa das Forças Armadas, mas teriam contado com a cooperação ativa do DVI. O relatório reservado nº 29, de 18 de fevereiro de 1966, diz que o comandante responsável pela investigação, Jorge da Purificação, tinha função exclusivamente fiscalizadora e não interviria nos assuntos administrativos relacionados ao funcionamento do porto — a CDS permanecia à frente.

No relatório, o encarregado pelo IPM também cita a prisão de duas pessoas e a busca por um terceiro trabalhador considerado foragido. O inquérito refletiu, aponta a pesquisa da Unifesp, na criminalização e perseguição dos trabalhadores da baixada santista, acusados de crimes de subversão e contra a segurança nacional. Os indiciados neste IPM foram absolvidos ao final dos processos diante da “fragilidade das acusações, ausência de crime e desrespeito ao devido processo legal”, destacam os pesquisadores. O tempo de espera para a absolvição, porém, foi longo — os processos foram julgados somente em 1972, sete anos depois da instauração do inquérito.

“Praticamente a DVI assume a função do RH [Departamento de Recursos Humanos]. Então todas as informações dos trabalhadores que eram do RH são veiculadas para os órgãos repressivos e vice-versa. Tem centenas de listas com os nomes dos trabalhadores, passando essas informações, trocando essas informações sobre eles”, detalhou a pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Vera Lucia Vieira.

Uma dessas listas foi o pedido de buscas 001 de 16 abril de 1973. Carimbado como urgente e confidencial, solicita informações sobre quase cem nomes de trabalhadores, informando previamente data de nascimento, filiação, números das carteiras de identidade e de trabalho. O documento requer: “antecedentes criminais, ideologia política e outros dados julgados de importância”.

Entre os nomes listados está o de Silvio Roque de Souza Loubeh, descrito no pedido com o sobrenome “Louceu”. A Pública entrou em contato com familiares, conferiu dados e apurou que se trata da mesma pessoa: um ex-conferente de cargas que atuou no Porto de Santos durante décadas. Em 1973, Silvio tinha 33 anos, mas já estava na mira das equipes de repressão há pelo menos sete. Segundo uma autuação de novembro de 1966, Silvio e outras 14 pessoas foram enquadradas pela atuação política e sindical. Silvio tem hoje 83 anos, mas, segundo a família, não pode falar sobre o assunto por estar se recuperando de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ocorrido em maio deste ano.

Um trecho da autuação diz que a cidade de Santos, “localizada na orla marítima do Estado de São Paulo, sendo um dos maiores portos do país”, sofreu a influência “maléfica” da política do ex-presidente João Goulart e que as forças sindicais estavam sendo manobradas por comunistas. O documento chama ainda o golpe de 1964 de “revolução” e confirma que houve intervenções em órgãos de classe para “afastar líderes sindicais esquerdistas”.

As investigações do DOPs detalhavam principalmente o histórico sindical e político dos trabalhadores. Uma delas foi enviada em novembro de 1973 e respondeu às solicitações que constavam no pedido de busca 049. No relatório, um dos nomes tem ao lado a classificação — em caixa alta e sublinhada — de “ ELEMENTO – COMUNISTA”; abaixo do nome, o complemento: “Membro do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários da C.D.S Santos. Um outro operário é classificado como “terrorista” preso durante operação realizada por homens da C.O.D.I, que era o Centro de Operações de Defesa Interna, órgão de inteligência subordinado ao Exército.

Os relatórios eram elaborados com o apoio da Delegacia de Arquivos e Registros Criminais (Darc) e continham em anexo dossiês de alguns dos investigados. Todos os históricos criminais que constam nos documentos aos quais a Pública teve acesso abordam crimes políticos ligados a movimentos de oposição e resistência à ditadura. Na resposta ao pedido de buscas 049, por exemplo, há o histórico de um sindicalista indiciado por “subversão, como pertencente a uma organização comunista da Vila Traribe, na Bahia”.

“Não oprimas teu irmão”

A repressão aos trabalhadores do Porto de Santos e em outras regiões de São Paulo tomou proporção e foi discutida durante a Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil realizada entre os dias 27 e 30 de outubro de 1975. Do evento saiu a carta intitulada “Não oprimas teu irmão” — uma mensagem clara e direta aos casos de tortura, mutilações, mortes e descumprimento da lei.

A carta afirma que os atos de repressão provocaram um clima de insegurança entre as famílias. Ela também repudiava que princípios cristãos estavam sendo utilizados para justificar ações violentas. O texto cita também as omissões na “defesa permanente dos direitos da pessoa humana” e é taxativa ao identificar como ilegais as situações vivenciadas no porto, assim como as atuações da justiça. “NÃO É LÍCITO privar os acusados de seus direitos de ampla defesa ou prejudicá-la mediante ameaças”, diz um trecho.

A carta faz um convite à missa que seria realizada em 2 de novembro de 1973, nas catedrais das dioceses, “por intenção dos desaparecidos, dos que sofrem nos cárceres e por alma dos que morreram vítimas de qualquer tipo de violência”.

Os protestos crescentes, contudo, não amenizaram os atos de violência nos anos seguintes. Em 24 de agosto de 1979, o Jornal Cidade de Santos noticiou que a CDS apurava uma denúncia de espancamento e que o assunto se esgotaria no âmbito da empresa. A reportagem relata que Raul Serafim Campos voltava para casa quando foi alcançado por agentes armados do DVI, que atiraram à queima roupa, dominaram a vítima, a algemaram e a torturaram. Os agentes só teriam parado de dar socos e pontapés após o operário confessar um crime que não havia cometido. Ele foi acusado de se apoderar de alguns pregos da empresa.

Os atos de repressão aconteceram em meio a excessivas jornadas de trabalho, ondas de demissões em massa e atividades exaustivas entre guindastes e despejo de toneladas de grãos, reforçam os pesquisadores. Em agosto de 1975, o Serviço Nacional de Informação (SNI) informou que 870 operários haviam sido demitidos no período de 8 meses. O impacto na vida das famílias santistas foi de “insegurança” — dizem os relatos coletados pela Unifesp — gerada pela vigilância policial.

O material descrito nesta reportagem será enviado ao Ministério Público Federal e deve servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. Para a pesquisadora Vera Lucia Vieira, o levantamento ajuda a esclarecer mitos na historiografia sobre o regime no Brasil. “Parece que você tinha ali uma discussão que se compara a ditadura brasileira com outras ditaduras latinoamericanas, como a chilena e as da Argentina …Então parece que aqui a nossa ditadura teria sido ‘branda’. […] e quando você pega esse material você fala que na realidade ela só aparenta ter sido branda por que para o universo dos trabalhadores ela foi terrível. É uma coisa absurda, é como se a gente voltasse quase ao sistema de escravidão”.

Imagem: Porto de embarque da Companhia de Docas em Santos; local foi palco de repressão contra funcionários – José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP/Wikimedia Commons

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