Três anos depois, condenada por morte de filho de empregada doméstica segue em liberdade. Uma de tantas injustiças e desigualdades que deveriam ter parado o Brasil, assim como a morte de George Floyd parou os EUA
por Nina Lemos, em DW
Há três anos o mundo estava em uma das fases mais críticas da pandemia. Não existia vacina, as aulas estavam suspensas, e a população era orientada a ficar em casa. O bom senso também dizia que o mínimo que quem tinha empregada doméstica em casa (um mal do Brasil, o país com mais domésticas do mundo) deveria fazer era dispensá-las (e pagá-las, é claro) para que elas também não se arriscassem.
A então primeira-dama do município de Tamandaré, Pernambuco, Sarí Corte Real, filha da elite pernambucana, o retrato perfeito de uma “sinhá”, não fez nada disso. Em 2 de junho de 2020, Sarí recebeu uma manicure em casa, em um condomínio de luxo no Recife. E também sua empregada, Mirtes Renata de Souza, que trabalhava para a família há anos. Como as aulas estavam suspensas, Mirtes levou o filho Miguel Otávio, de 5 anos, para o trabalho.
O resto da história é terrível, mas não pode nunca ser esquecido.
Uma história de terror e simbolismo
Durante a manhã, Sarí pediu que Mirtes passeasse com o cachorro da família. Miguel ficou sob os cuidados de Sarí. Em algum momento, o menino ficou impaciente e chorou pedindo a mãe, como qualquer criança de sua idade faria.
O Instituto de Criminalística de Pernambuco concluiu que Sarí permitiu que Miguel ficasse sozinho no elevador. No nono andar, Miguel saiu do elevador e foi procurar a mãe. Ele caiu e morreu mais tarde no hospital. Mirtes voltava do passeio com o cachorro quando encontrou o filho no chão.
Tudo nessa história de horror é muito simbólico. Sarí, filha da elite escravocrata, não ligou para a quarentena e priorizou fazer as unhas e continuar contando com os serviços da empregada. Mirtes teve que largar o filho com a patroa para passear com o cachorro da família, que parecia ser, para os Corte Real, mais importante que o filho da empregada.
E, infelizmente, essa história é também um retrato da impunidade do Brasil. Sarí Corte Real foi indiciada em 2020 e condenada em 31 de maio de 2022 a oito anos e meio de prisão por abandono de incapaz que resultou em morte. Segundo a sentença da 1° Vara dos Crimes contra a Criança e o Adolescente do Recife, ela deveria iniciar a pena em regime fechado, mas poderia recorrer em liberdade.
Em julho de 2022, o Tribunal de Justiça de Pernambuco indeferiu um pedido de prisão preventiva para a ex-primeira-dama. Resultado: Sarí nunca foi presa. Provavelmente segue levando sua vida e achando que permanecerá impune. Do que, infelizmente, pode estar certa.
Brancos ricos e poderosos como ela e sua família raramente pagam por seus crimes, ainda mais quando esses crimes são contra pobres e negros, mesmo se eles forem crianças.
Luta por justiça
“E se fosse o contrário? E se fosse eu que fizesse isso com o filho da patroa?”, pergunta Mirtes há três anos. Ela sabe a resposta, e a gente também: a ex-empregada doméstica estaria presa, sem direito algum.
Mirtes é uma mulher muito forte e inteligente. Desde que o filho morreu, não parou de lutar por justiça. Ao contrário, decidiu estudar Direito para ajudar outras mães vítimas do mesmo tipo de barbárie.
No dia em que Miguel completaria oito anos, ela escreveu no Instagram: “Hoje era para ser um dia de felicidade, um dia de festa, uma comemoração ao aniversário do meu filho Miguel Otávio. Enquanto a criminosa Sarí Corte Real está solta e teve o privilégio de comemorar o aniversário de sua filha, eu choro por não ter o meu filho no colo.”
Mirtes, familiares e apoiadores, assim como entidades de direitos humanos e contra o racismo se reunirão em frente ao prédio da tragédia no dia 2 de junho, para pedir justiça e homenagear Miguel. “Não descansarei enquanto a culpada não for presa”, ela sempre afirma.
Nós também não deveríamos descansar. Esse crime é um retrato de tantas injustiças e desigualdades que deveriam ter parado o país, assim como a morte de George Floyd parou os Estados Unidos.
Deveria servir também como uma grande tomada de consciência por várias mulheres que tratam “suas empregadas” (falar assim, com o pronome possessivo, já é horrível) como se fossem sua propriedade e agem com descaso até em relação aos filhos dessas mulheres.
Será que você não conhece alguém que agiria como Sarí?
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“E se fosse o contrário? E se fosse eu que fizesse isso com o filho da patroa?”, pergunta Mirtes, mãe do menino Miguel (Foto: DW)