O Supremo: de avalista a anteparo do avanço autoritário

Por Carlos Frederico Guazzelli, em Terapia Política

No final do ano passado, como já ocorrera em outra ocasião, o ministro Alexandre de Moraes foi ovacionado intensamente na cerimônia de diplomação dos eleitos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), após o discurso histórico que proferiu em defesa do sistema democrático, da regularidade das eleições e da segurança das urnas eletrônicas – bem como reiterando o propósito de perseverar nas apurações e repressão aos crimes cometidos pelos acólitos do governante em fim de mandato, inclusive os atos terroristas por eles praticados ainda naquele mês de dezembro.

A transformação de um juiz do Supremo Tribunal Federal em verdadeiro superstar midiático deve-se à série de decisões firmes que tomou nos procedimentos abertos ali e no TSE para investigar diversos atos antidemocráticos praticados por então integrantes do governo federal, ou seus adeptos – antes, durante e depois da última eleição presidencial. E esta louvável atuação teve continuidade, logo ao início do novo mandato presidencial, em face da tentativa inaceitável de golpe de estado patrocinada pela horda neofascista, inspirada por sua patética liderança.

Conforme se sabe, o grotesco putsch gorou, diante da pronta e efetiva reação coordenada pelo presidente da República, o ministro da Justiça e a Suprema Corte, já a partir do final da tarde de 8 de janeiro. Em consequência, com inédita rapidez e eficácia, e preservadas as garantias constitucionais, foram presas mais de mil pessoas que participaram, direta ou indiretamente, dos crimes investigados e contra as quais foram instaurados inquéritos que originaram ações penais e civis, visando à sua punição e à reparação dos danos causados.

Ressalvada a louvável firmeza com que aquele ministro vem desempenhando seu papel, deve-se salientar a atuação de todo o Supremo Tribunal, neste período em que se tornou o principal – por vezes até único – anteparo institucional aos arreganhos autoritários do tosco personagem guindado à curul presidencial em 2018.

Entretanto, feitas estas justas ressalvas à relevante e decisiva postura da Suprema Corte para o restabelecimento da normalização democrática do país, isto não impede que se faça a retrospectiva crítica sobre a contribuição – também relevante e decisiva – das instituições judiciárias na produção do processo autoritário que resultou na condução à chefia da nação de um notório fascista.

E para melhor compreender esta trajetória, convém retroagir ao recente processo de reconstrução do sistema de justiça nacional, durante a elaboração da Carta Constitucional de 1988 – quando os Constituintes erigiram, como um dos alicerces do novo pacto político, a garantia e a defesa dos direitos individuais e coletivos, sociais, econômicos e políticos.

Daí se seguiu o fortalecimento no novo texto constitucional, não apenas dos órgãos dos Poder Judiciário propriamente dito – juízes e tribunais –, mas também das instituições ditas “essenciais à função jurisdicional” – ministério público, advocacia e defensoria pública –, elevadas à posição de instrumentos precípuos para a afirmação e efetivação dos direitos e deveres da cidadania, bem como para fixação de limites e condições ao exercício dos poderes estatais. Destarte, foi restabelecida a própria dignidade das instituições judiciais como um todo, sabido que, durante o período ditatorial, elas foram controladas e instrumentalizadas em favor das ações criminosas do sistema repressivo político estatal.

Neste passo, cabe lembrar que nas democracias contemporâneas de tipo liberal, as agências do Poder Judiciário cumprem importante papel político – no sentido verdadeiro do termo – consistente na mediação e solução dos conflitos individuais e sociais sob as pautas constitucionais e legais. Por isso, seus membros são tratados na Carta Magna como “agentes públicos”, dotados de prerrogativas que os demais servidores não têm – como inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade.

E não bastasse isso, nas últimas décadas registrou-se um notável avanço das corporações jurídicas em busca de vantagens funcionais, em processo que se deu paralelamente a outro fenômeno, ao qual se costuma designar como judicialização da política. Não se trata da mera utilização da Justiça, por parte de diferentes atores, para a obtenção de ganhos nas disputas por poder – mas sim de fenômeno mais complexo ligado ao relacionamento estabelecido nas últimas décadas entre os Poderes Judiciário e Legislativo. A hipótese aqui considerada – que de resto não é original, aceita por outros estudiosos do tema – parte da constatação de que o sistema de justiça ganhou logo notável impulso, a partir do novo desenho institucional que lhe foi dado pelos Constituintes, passando a fortalecer seus órgãos e aperfeiçoar continuamente suas carreiras funcionais, mediante negociações permanentes com o Congresso Nacional, no âmbito federal, mas também junto aos Parlamentos estaduais.

As Casas Legislativas, por sua vez, sempre se mostraram sensíveis às demandas institucionais e corporativas de magistrados e procuradores, ávidos na busca de prebendas as mais diversas, junto à União e aos Estados. Esta, pois, a lógica de mão dupla que se estabeleceu entre os integrantes destes Poderes: de um lado, o contínuo recurso às Cortes, especialmente as Superiores, para dirimir disputas entre os atores políticos; e de outra parte, a concessão de espaços de poder e vantagens funcionais aos agentes daquelas instituições e corporações.

A primeira, e mais importante consequência destes movimentos, é o contínuo deslocamento do centro das decisões políticas para a arena judicial. Diga-se desde logo que a apreciação pelo Judiciário de demandas com conteúdo político não é vedada, desde que seu exame se limite à legalidade dos atos impugnados – jamais sobre sua conveniência e/ou oportunidade. O que se tem visto, no entanto, mostra que este limite tem sido desrespeitado rotineiramente, o que, se é danoso para a cidadania, também o é para a própria integridade institucional dos órgãos judiciais. Isto porque a intromissão do Judiciário no mérito das questões políticas importa na distorção da indispensável “autonomia” de que se devem revestir suas decisões, como condição da percepção de sua legitimidade.

A respeito, cabe lembrar dois episódios paradigmáticos, indicativos de como, nas duas últimas décadas, o debate político nacional foi deslocado de seu âmbito adequado – parlamentos, governos, eleições – para os tribunais, com resultados deletérios para a democracia. O primeiro é a Ação Penal nº 470, instaurada no STF ao final do primeiro governo de Lula, na sequência de investigação de casos de corrupção nos Correios – tendo como principal réu o Chefe da Casa Civil, José Dirceu, acusado com outros políticos e servidores de crimes contra a administração pública.

O processo recebeu espalhafatosa cobertura da dita grande imprensa, que batizou o caso de “mensalão” – denominação, aliás, imprópria, uma vez que a acusação não versava mesada a parlamentares, como ocorrera anos antes, durante a votação da Emenda Constitucional da reeleição, no governo de Fernando Henrique Cardoso. E desde a denúncia – acusação formal que inicia a ação – até o acórdão – isto é, a sentença coletiva proferida pelo Plenário do Supremo ao seu final –, foram tomadas decisões inusitadas, em frontal desrespeito a regras e princípios básicos do processo penal, asseguradores do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

A ilegalidade mais gritante cometida naquele julgamento foi a adoção de interpretação absolutamente distorcida da “teoria do domínio do fato”, expediente mediante o qual se buscou justificar a condenação do ex-ministro José Dirceu, figura forte do governo de Lula – sem que houvesse qualquer prova de conhecimento de sua parte dos atos criminosos imputados a seus subalternos e/ou correligionários.

O próprio autor daquela teoria, o jurista alemão Claus Roxin, veio ao Brasil, deu palestra, concedeu entrevistas e escreveu artigo apontando a grosseira distorção feita à mesma, pois em hipótese alguma ela autoriza dispensar, no reconhecimento de prática delitiva, a ciência, pelo autor, da conduta de seus apontados comparsas. Não escapou ao famoso penalista que, ao condenar o principal auxiliar de Lula – e, desta forma, também o atingir politicamente – o Supremo terminou consagrando, em matéria criminal, a responsabilidade objetiva, ou sem culpa, em lamentável e perigoso precedente, que logo seria seguido.

Aberta a porteira das ilegalidades praticadas em nome da “luta contra a corrupção”, pelo próprio Pretório Excelso, foi criado o clima perfeito para a perpetração do mais odioso e violento caso de lawfare deste século, seguramente, não apenas no Brasil. Trata-se da série de inquéritos e ações penais com base neles instauradas, sob a coordenação do então titular da 13ª. Vara Criminal Federal da capital paranaense, em conluio com equipe de procuradores, delegados e policiais federais, organizados na famigerada “força-tarefa da operação lava jato”. Tratou-se a mesma de entidade criada sob inspiração alienígena, de modo frontalmente contrário à institucionalidade legal vigente no país, que trata de diferenciar rigorosamente as funções de investigar, acusar e julgar.

Tem-se assim que, quem investiga, não pode acusar; e quem acusa, não pode julgar. Pois, para indignação da comunidade jurídica nacional, que já o intuía, e da chamada opinião pública, que veio a sabê-lo graças ao escândalo do “vaza-jato” – a revelação feita por um hacker das conversas dos componentes daquela organização criminosa, como a chamou o ministro Gilmar Mendes – foi escancarado o contubérnio entre o juiz Moro, o procurador Dallagnol e seus colegas, que combinavam entre si as investigações, os seus alvos e objetivos pré-estabelecidos, as medidas restritivas a serem tomadas, inclusive prisões e apreensões, tudo de forma frontalmente inconstitucional e ilegal.

Instituída que foi ilegalmente a task force – cujos protagonistas logo foram alçados à condição de heróis nacionais pela pressurosa mídia oligopólica – assim agiu ela desde sempre. Para começar, ao processar e julgar todo e qualquer caso de alegada malversação de verba pública envolvendo a Petrobras: é que a indevida extensão da competência daquele juízo para apreciar fatos praticados em lugares diversos, sem comprovada ligação com aqueles ali originalmente apurados, importou em ofensa gritante ao denominado “princípio do juiz natural” – vedação constitucional a que seja a cidadania submetida a juízo de exceção.

Embora a maioria dos juristas do país o tenha sempre denunciado, os tribunais, inclusive o Supremo, convalidaram esse gravíssimo vício, emparedados pela campanha midiática em favor da desditosa operação. Os efeitos perversos das ações comandadas pelo ex-magistrado e seus asseclas, mesmo depois de desmascarados, infelizmente ainda se fazem sentir – a começar, pelo enorme abalo à economia brasileira, com a tentativa de destruição da Petrobras e do setor da construção pesada, em que o país vinha se destacando há anos. Aliás, eram estes os principais objetivos da operação: a participação ativa dos agentes do FBI e do Departamento de Justiça norte-americano na constituição e funcionamento da força-tarefa curitibana, não foi gratuita – e está na origem da entrega, na bacia das almas, de partes da Petrobras às empresas estrangeiras do setor.

Mas, em que pese a magnitude daquelas gravíssimas consequências, interessa aos propósitos deste artigo salientar os enormes prejuízos causados pelas desastrosas ações das vestais de araque curitibanas ao próprio Judiciário. O termo que melhor sintetiza estas perniciosas sequelas, paradoxalmente, é “corrupção” – a palavra invocada qual sagrado mantra pelos falsos moralistas, na sua hipócrita campanha contra a política, como atividade, e os políticos, em especial os de esquerda.

Efetivamente, cabe recuperar aqui a acepção histórica do vocábulo, a designar não propriamente os atos atentatórios à administração pública, mas sim seus efeitos prejudiciais ao corpo social e ao Estado. Portanto, mais importante que os males causados diretamente por tais comportamentos é o estado de degeneração moral que provocam nos organismos públicos e na sociedade. Por isso, o emprego desta palavra aqui – como sinônimo de putrefação, apodrecimento, corrosão.

Esta acepção da palavra se aplica perfeitamente aos danos provocados pelos “jovens turcos” da autointitulada República de Curitiba ao sistema judicial brasileiro, que restou verdadeiramente corrompido por suas tropelias e abusos, cometidos em favor dos poderes internos e externos que os sustentaram, com escusos propósitos de destruir o “sistema político”. (Publicado no Sul 21 em 23 de maio de 2023)

Ilustração: Mihai Cauli  Revisão: Celia Bartone

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