A tese do marco temporal e a consagração da violência contra os povos indígenas; mobilização indígena contínua
Genebra (13 de junho de 2023) – Um especialista da ONU expressou hoje grande preocupação com o provável impacto negativo da doutrina do “marco temporal” que pode ser aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do país em sua decisão no caso do povo indígena Xokleng e do Estado de Santa Catarina. O caso tramita na Justiça desde 2021, a partir de recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai). O Relator Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, José Francisco Calí Tzay, emitiu a seguinte declaração:
“O ‘marco temporal’ limita o reconhecimento da terra ancestral dos povos indígenas apenas às terras que eles ocupavam no dia da promulgação da constituição, 5 de outubro de 1988. A doutrina da ‘marco temporal’ teria sido usada para anular processos administrativos de demarcação de terras indígenas, como no caso da comunidade Guyraroka do povo indígena Guarani Kaiowá. Foi contestado em diversas ocasiões por organismos internacionais, povos indígenas e defensores dos direitos humanos por desrespeitar o direito dos povos indígenas às terras das quais foram violentamente expulsos, particularmente entre 1945 e 1988 – um período de grande turbulência política e violações generalizadas dos direitos humanos em Brasil, incluindo a ditadura.
“O marco temporal limita o reconhecimento da terra ancestral dos povos indígenas”
O julgamento pode determinar o andamento de mais de 300 processos pendentes de demarcação de terras indígenas no país. Exorto o Supremo Tribunal Federal a não aplicar a referida doutrina no caso e decidir em consonância com os padrões internacionais existentes de Direitos dos Povos Indígenas.
Estou muito preocupado com a aprovação em 30 de maio pela Câmara dos Deputados do Brasil do Projeto de Lei 490/07 que, se aprovado pelo Senado, aplicaria legalmente a doutrina do “marco temporal”.
Se a tese do ‘marco temporal’ for aprovada, todas as terras indígenas, independentemente de sua situação e região, serão avaliadas de acordo com a tese, colocando todas as 1.393 Terras Indígenas sob ameaça direta. É particularmente preocupante que o Projeto de Lei 490/07 indique explicitamente que sua regulamentação seria aplicável a todos esses casos pendentes, agravando a situação ao prolongar ou potencialmente obstruir o processo de demarcação e expor os Povos Indígenas a conflitos, contaminação relacionada à mineração, escalada de violência e ameaças aos seus direitos sociais e culturais.
“A adoção do marco temporal é contrária aos padrões internacionais”
A adoção do ‘marco temporal’ é contrária aos padrões internacionais. Espero que a decisão do Supremo Tribunal Federal esteja em consonância com os padrões internacionais de direitos humanos aplicáveis e que proporcione a maior proteção possível aos povos indígenas do Brasil.
A decisão precisa garantir reparações históricas para os povos indígenas e evitar a perpetuação de mais injustiças. Peço ao Senado brasileiro que rejeite o projeto de lei pendente.
Exorto o Governo do Brasil a tomar todas as medidas para proteger os povos indígenas, suas culturas e tradições, de acordo com a Constituição Federal Brasileira e as obrigações internacionais de direitos humanos.”
FIM
O Sr. José Francisco Calí Tzay é o Relator Especial sobre os direitos dos Povos Indígenas
Os Relatores Especiais, Peritos Independentes e Grupos de Trabalho fazem parte do que é conhecido como Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos. Procedimentos Especiais, o maior corpo de especialistas independentes no sistema de Direitos Humanos da ONU, é o nome geral dos mecanismos independentes de investigação e monitoramento do Conselho que abordam situações específicas de países ou questões temáticas em todas as partes do mundo. Os peritos em Procedimentos Especiais trabalham de forma voluntária; eles não são funcionários da ONU e não recebem salário por seu trabalho. Eles são independentes de qualquer governo ou organização e atuam em sua capacidade individual.
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Julgamento do marco temporal no STF – dia 7 de julho de 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi