“A tese do marco temporal por si só é uma tese violadora de direitos”, diz assessora jurídica da Terra de Direitos
O assassinato e a morte de defensores e defensoras dos direitos humanos no país estão associados à luta pelo direito à terra, ao território e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, afirma Alane Luzia da Silva, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos e integrante da coordenação da pesquisa “Na Linha de Frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil”, realizada pela organização em parceria com a Justiça Global. As ocorrências de violência são maiores da região Norte e Nordeste e estão associadas à exploração territorial ilegal. “O forte contexto de conflitos fundiários na região da Amazônia Legal (…) possui relação direta com esta violência”, comenta. Neste contexto, adverte a entrevistada, se aprovado, o marco temporal “irá acirrar ainda mais o contexto de ataques nos territórios indígenas, já que deixará ainda mais difícil a demarcação de terras indígenas, pois são os indígenas que precisarão comprovar a ocupação antes da constituição de 1988”.
O enfrentamento desta situação, segundo Alane, depende da instituição do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH, como lei capaz de instituí-lo como política de estado. “Para fazer o real enfrentamento da violência sofrida por quem defende os direitos humanos no Brasil, é essencial que o atual governo priorize o fortalecimento do PPDDH via institucionalização como lei, garanta orçamento adequado, paridade entre Estado e sociedade civil em seu Conselho Deliberativo e atue sob as especificidades das realidades e dos defensores (e defensoras) ameaçados, garantindo uma política adequada para a realidades de mulheres, homens da cidade, do campo e da floresta, que defendem os direitos humanos”, frisa. E acrescenta: “Nossa expectativa é que a nova gestão federal assuma os compromissos acordados durante o governo de transição, priorizando o PPDDH, e atue sobre as raízes da desigualdade que intensifica os conflitos que vitimam defensores e defensoras de direitos humanos”.
Alane Luzia da Silva é formada em Direito pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Proveniente de família Sem Terra, assentada da reforma agrária pelo MST, atua como advogada popular no Programa Direitos e Políticas da Terra de Direitos.
Confira a entrevista.
IHU – O relatório do Terra de Direitos aponta 1.171 casos de violência contra defensores e defensoras dos direitos humanos no Brasil durante o governo Bolsonaro. Quais são as causas da violência?
Alane Luzia da Silva – A eleição de Jair Bolsonaro (PL) resultou em um período de extrema deterioração e sucateamento das estruturas governamentais de garantias de direitos e acentuou um ambiente hostil, de violência e ódio voltados especialmente contra grupos historicamente marginalizados.
A política do governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022, contribuiu para fortalecer grupos de extrema-direita alinhados com o fascismo. Esse governo elegeu como inimigos declarados indígenas, quilombolas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadoras e trabalhadores – especialmente sem-terra – e defensores e defensoras de direitos humanos de forma geral. A manifestação diária do governo de não reconhecimento de direitos destes segmentos gerou uma autorização de práticas violentas por outros atores sociais, como garimpeiros e milícias.
Foram quatro anos marcados pelo fechamento dos espaços institucionais de participação social e pela ausência de transparência governamental, por uma política baseada na desinformação, pelo ataque às vozes dissonantes e pela criminalização da luta pelos direitos humanos e de quem se opunha à política em andamento. Além disso, não houve um avanço no enfrentamento de questões estruturais que resultam em violência contra quem defende os direitos humanos, como enfrentamento à concentração fundiária e garimpo ilegal, demarcação de territórios indígenas, titulação dos territórios quilombolas, entre outros.
IHU – Qual a situação do Brasil comparado à violação dos direitos humanos na América Latina?
Alane Luzia da Silva – Na pesquisa “Olhares críticos sobre mecanismos de proteção de defensores de direitos humanos na América Latina”, desenvolvida também pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global sobre a situação dos programas de proteção a defensores de direitos humanos, com ênfase no Brasil, e analisando os programas de Colômbia, Honduras e México, é possível identificar que, pelo fato comum destes países terem desigualdades sociais históricas e serem fundados na opressão da população negra e povos originários e estas desigualdades não terem sido superadas, as realidades dos defensores e defensoras de direitos humanos é de intensa violência, deslegitimação por alguns setores e criminalização pelo Estado, especialmente em gestões mais autoritárias. Esses países também possuem programas de proteção à defensores de direitos humanos, mas com importantes fragilidades.
Importa destacar que a emergência de governos autoritários na América Latina na história recente e um não acerto com o passado de ditadura civil-militar por vários países contribuem para um acirramento das tensões sociais e de violência contra defensores.
IHU – Qual é o perfil dos defensores e defensoras atacados, violentados e assassinados?
Alane Luzia da Silva – A pesquisa identificou que o perfil dos defensores e defensoras assassinados entre 2019 e 2022 está na média de 41 anos de idade. Dos 169 assassinatos, foi possível identificar raça ou cor em 89 das vítimas. Dentro desse universo, os indígenas são as maiores vítimas deste tipo de violência (50), seguido de negros (30).
Demais dados da pesquisa:
140 defensores e defensoras assassinados lutavam pelo direito à terra, ao território e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado; esse é o tipo de luta de 78,5% dos defensores e defensoras vítimas de qualquer tipo de violência identificada pelo levantamento;
a média de idade das pessoas assassinadas é 41.87 anos, pouco acima da média de 39.27 para as demais violações;
gênero: foram registrados 292 casos de violações contra defensoras mulheres (cisgênero, transexuais e travestis);
nos casos que envolvem mulheres cis, ameaças são mais frequentes com 161 casos de 253 registros contra elas;
a população transexual e travesti registrou 40 casos de violência, sendo 10 casos de assassinatos;
a cada cinco assassinatos, quatro foram de homens defensores de direitos humanos.
IHU – A que atribui o fato da violência ser mais frequente nas regiões Norte e Nordeste, em especial na Amazônia Legal, e menor na região Sul?
Alane Luzia da Silva – Pelo mapeamento, identificamos que o defensor de direitos humanos que reivindica o direito à terra, ao território e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado foi o mais violentado no período. O forte contexto de conflitos fundiários na região da Amazônia Legal (grilagem de terras públicas, invasões em terras indígenas, desmatamento, mineração ilegal) possui relação direta com esta violência.
IHU – Qual a mentalidade que fundamenta os casos de violência contra defensores e defensoras dos direitos humanos no país?
Alane Luzia da Silva – Tanto um contexto de deslegitimação – inclusive por autoridades públicas, especialmente na gestão de Jair Bolsonaro – da atuação e importância do trabalho de defensoras e defensores de direitos no país como um quadro de criminalização e uma ideia geral de impunidade contribuem para a noção de que existe uma permissão tácita, dada pelo poder público, para o ataque a essas vidas e para a ocorrência de números alarmantes de violência contra quem defende os direitos humanos no Brasil.
IHU – Como esses casos de violência contra defensores e defensoras dos direitos humanos repercute na sociedade brasileira? Qual é a mentalidade e o imaginário social em relação a esses casos?
Alane Luzia da Silva – Na sociedade há um movimento crescente de percepção do trabalho de defensoras e defensores de direitos humanos. No último quadriênio, em razão da deterioração das políticas sociais e estruturas de governo, a população pode sentir – em especial os grupos mais socialmente vulneráveis como mulheres, crianças, periféricos, campesinos, comunidades e povos tradicionais, entre outros – a retração na garantia dos direitos.
Em paralelo, as contínuas denúncias no cenário nacional e internacional e a reivindicação permanente por direitos contribuem para uma ampliação do reconhecimento da importância dos direitos e de quem os reivindica. A reivindicação por medidas de auxílio à população de baixa renda e por políticas de enfrentamento à pandemia, a distribuição de alimentos, como a realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, em todo o país, entre outros, foram reconhecidas pela sociedade. Assim, ainda que grupos de extrema-direita tenham sido fortalecidos no último período, há também um cenário de percepção social da importância do trabalho de quem defende os direitos humanos e o seu reflexo direto para o conjunto da sociedade.
IHU – Em que consiste o Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH? Que contribuições o plano pode dar no enfrentamento da situação?
Alane Luzia da Silva – O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH foi implementado em 2004 no Brasil, mas segue, até hoje, sem previsão em lei capaz de o instituir como política de Estado. A ausência de uma Lei Federal que torne o programa uma política de Estado impacta na falta de obrigação dos estados em implementá-lo. No modelo atual, é uma discricionariedade dos governos federal e estaduais promoverem a execução do programa.
Para fazer o real enfrentamento da violência sofrida por quem defende os direitos humanos no Brasil, é essencial que o atual governo priorize o fortalecimento do PPDDH via institucionalização como lei, garanta orçamento adequado, paridade entre Estado e sociedade civil em seu Conselho Deliberativo e atue sob as especificidades das realidades dos defensores (e defensoras) ameaçados, garantindo uma política adequada para a realidades de mulheres, homens da cidade, do campo e da floresta, que defendem direitos humanos.
IHU – Como a discussão em torno do marco temporal e a decisão a ser tomada poderão impactar na violência contra os defensores e defensoras dos direitos humanos e contra as comunidades?
Alane Luzia da Silva – A tese do marco temporal por si só é uma tese violadora de direitos. No entanto, se confirmada, ela irá acirrar ainda mais o contexto de ataques nos territórios indígenas, já que deixará ainda mais difícil a demarcação de terras indígenas, pois são os indígenas que precisarão comprovar a ocupação antes da constituição de 1988. Isso possibilita o avanço da grilagem de terras, do desmatamento e da mineração. Não existe nenhuma coincidência no fato de as regiões onde há mais assédio aos territórios ser também as regiões onde mais se matam defensoras e defensores.
IHU – Como avalia o tratamento do marco temporal no judiciário?
Alane Luzia da Silva – O poder judiciário tem em mãos uma das decisões mais importantes do nosso tempo, que pode garantir justiça aos povos indígenas constantemente atacados desde a colonização. No entanto, o Supremo Tribunal Federal – STF tem prolongado por tempo demais o julgamento, com repetidos pedidos de vista. Estávamos em situação de empate entre a tese do marco temporal e a tese do Indigenato até o último dia 7 de junho, quando o ministro Alexandre de Morais votou e gerou muita discussão sobre a alternativa que apresenta. Isso porque, ao mesmo tempo que o ministro fala da injustiça dessa tese, que não considera a expulsão e os assassinatos dos povos indígenas ao longo da história, legitima a grilagem de terras e adiciona fases para o reconhecimento do território, o que pode atrasar ou impossibilitar a demarcação.
IHU – Qual a expectativa em relação ao tratamento desta questão no governo Lula?
Alane Luzia da Silva – Nossa expectativa é que a nova gestão assuma os compromissos acordados durante o governo de transição, priorizando o PPDDH, e atue sobre as raízes da desigualdade que intensifica os conflitos que vitimam defensores e defensoras de direitos humanos.